Psicanalista reconhecido, docente universitário, jornalista e escritor, Risé conta como era padre Giussani no Berchet há 50 anos. A entrada na sala, as aulas e as perguntas atormentadoras: “O cristianismo está todo num fato, num encontro: o encontro com Jesus Cristo. O que vocês acham? Vocês O encontraram? Querem encontrá-Lo ou não? Ele era Deus, de verdade? Era um impostor, um louco? Toda a vida de vocês depende da resposta que dão a essas perguntas”
Aos 16 anos, fui estudar em uma “escola pública”. Queria ver aquele mundo de alunos e professores que as escolas um pouco protegidas onde eu tinha estudado até então tinham escondido de mim. Não faltaram experiências. Mas, em relação a dom e felicidade, uma foi central.
Lembro que o homem, no seu primeiro dia de aula, entrou na sala rapidamente, como alguém que não tem um minuto a perder. Muito diferente dos outros professores, também muito bons, que entravam na sala depois de terem subido e descido os corredores infinitas vezes, conversando entre eles e tendo dificuldade para se deixarem, prolongando ao máximo o intervalo, enquanto nós os esperávamos na sala, também conversando, mas sem fazer barulho, de modo que, para a diretoria, tudo parecesse normal.
O homem com a batina era nosso novo professor de religião, recém-chegado ao colégio Berchet, a fortaleza da burguesia laica. Olhava-nos sorrindo e podíamos perceber que queria se aproximar de nós, mas agia com naturalidade. Os meus colegas, jovens vindos da classe intelectual milanesa, olhavam-no, no início, com ar de superioridade. Era perceptível que a elegância formal e os maneirismos da burguesia culta absolutamente não lhe interessavam e que ele as via como uma forma de se defender de uma outra coisa, mais substancial.
O homem de Desio
Para mim, ao contrário, foi exatamente isso, no primeiro encontro, que me interessou. O homem de Desio, cujo nome era Luigi Giussani, tinha (inclusive no contato físico, cheio de tapas, apertões e empurrões) uma espécie de rusticidade espontânea, excepcionalmente vital e arcaica, num ambiente onde os neuróticos da hiper-civilização dividiam-se, impregnando as reuniões, as aulas, os intervalos, as amizades e os amores. Lembro-me da sua chegada, como se fosse uma espécie de ciclone depois do qual nada na escola foi como antes, nem para os outros, nem para mim. Empenhava-se sem economia para fazer bater o nosso coração, que já apresentava sinais de petrificação. Mas o seu interesse não tinha nada de materno, não estava preocupado em nos tranqüilizar ou em ter o nosso consenso. Era, antes, com toda a evidência, um jovem padre exigente, que nos incitava com paixão a deixarmos aflorar o que tínhamos dentro de nós, a sermos corajosos, a empenharmos o nosso tempo, como ele fazia. Pedia-nos para não sermos avaros porque isso levava a uma pobreza afetiva, espiritual e intelectual. “Coloquem para fora o que vocês têm por dentro”, bradava. E insistia, lembrando trechos do Evangelho que, naquela época, eram pouco populares: “Porque ao que tem, se lhe dará e terá em abundância; mas ao que não tem será tirado até mesmo o que tem” (Mt 13,12; 25,29).
Vital rusticidade
A sua insistência sobre a riqueza interior a ser exposta, a necessidade de empenhar o tempo e a sua vital rusticidade me agradavam muito. Finalmente um padre apresentava o cristianismo como uma religião da riqueza e do gasto, enquanto todos em volta o mostravam como uma espécie de gigantesca e milenar Cáritas, obcecada pela pobreza e dominada pelo imperativo da satisfação da necessidade. Um cristianismo, o oficial (muito diferente do de Giussani que, de fato, logo depois, chegou aos Estados Unidos), distante, portanto, anos luz da paixão, do desejo, que era o que me importava (mas me parecia que, também para Jesus, o ponto fosse aquele: “Não só de pão vive o homem...”).
Para o padre de Desio, ao contrário, não interessava de forma alguma que nos submetêssemos a genéricas posições morais. O cristianismo, insistia, não é uma moral, um discurso, uma filosofia ou um sistema de pensamento. Interessava-lhe, porém, algo muito mais trabalhoso, mais pessoal e que era muito mais atormentador, pelo menos para mim. O cristianismo, continuava insistindo, está todo em um fato, em um encontro: o encontro com Jesus Cristo, um homem que dizia ser Deus. E, neste ponto, nos pressionava, não estava mais disposto a largar a presa: “O que vocês acham? Vocês O encontraram? Querem encontrá-Lo ou não? Ele era realmente Deus? Era um impostor, um louco? A vida de vocês depende da resposta que dão a essas perguntas. Até porque vocês podem encontrar Jesus todos os dias, basta apenas querer”. Sobre essas perguntas atormentadoras do padre (pelo menos, eu as percebia assim) a escola se dividia. Muitos, em geral quem tinha uma sólida educação católica, aderiam com entusiasmo ao anúncio de um homem-Deus, vivo, de carne, que dava a eles a possibilidade de fazer de cada encontro humano um encontro sagrado, dotado da mesma energia e sentido. Quem vinha de uma educação laica, muitas vezes era tocado e tentava “ver”, como se jogasse pôquer, mas, mais freqüentemente, usava os instrumentos que tinha mais presente como o positivismo, o idealismo e o marxismo para liquidar as questões, como uma fábula ou uma visão patológica, que a Igreja repetia para se conservar.
No que me dizia respeito, percebia vagamente que a pergunta do professor de religião, “o Gius” (como o chamavam aqueles que se afeiçoavam a ele), tinha a ver com a utilização da luz recebida e com o encontrar, finalmente, um modo de usá-la, de colocá-la em circulação, à disposição dos outros.
Aquela pergunta insistente
Eu não tinha nenhuma dúvida sobre Jesus, de quem passei a receber a carne e o sangue assim que pude, desde a Primeira Comunhão. Porém, aquela pergunta insistente – “você, o que faz desse encontro, como o anuncia aos outros, como o coloca no centro da sua vida?” – colocava-me em grande dificuldade e me irritava, também. Tornara-se uma presença perturbadora, como uma moça pela qual você se apaixona, mas não ousa dar um passo adiante porque acha que pode ser uma história para a vida toda e, mesquinhamente, se detém. No final, em uma oscilação entre interesse e repulsa, não demorou muito para perceber que eu, simplesmente, não anunciava aquele encontro com Jesus. Tudo bem, eu não era ruim, não fazia o mal conscientemente ou, pelo menos, tentava não fazê-lo, amava a vida, os outros e, freqüentemente, também era generoso. Mas não no anúncio do meu encontro com o homem-Deus. Isto eu guardava para mim.
Ainda não tinha deixado de cultivar as minhas – ainda não reconhecidas – avarezas que, na verdade, eram os meus prazeres pessoais e egoístas aos quais não queria renunciar e tampouco desejava renunciar ao corpo de Jesus Cristo. Queria o dom e o praticava onde ele acontecia naturalmente, mas não estava disposto a me doar àquelas pessoas e nas formas que me seriam mais custosas.
A luz chegara, mas eu ainda era um jovem da classe média alta que queria, sobretudo, se divertir. O convencionalismo burguês ainda era uma estrada que me cabia percorrer até o fundo, mesmo se, no curso do tempo, aquele maneirismo mesquinho sempre tivesse me incomodado e, depois, horrorizado, a ponto de fazer com que eu dedicasse todo o meu trabalho, tanto na psicologia como nas ciências sociais, a revelar as suas patologias e a sua capacidade destrutiva.
Todavia, Carl Gustav Jung disse que ninguém pode largar o próprio copo antes de tê-lo esvaziado. Eu, certamente, não consegui bebê-lo. O problema, quando o líquido contém uma boa dose de veneno, é o de chegar a esvaziar o copo e conseguir sobreviver a isso.
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