Vai para os conteúdos

Passos N.56, Novembro 2004

50 anos de CL / Experiência

Você se torna amiga de cinco e alcança cinqüenta

por Laura Cioni

Início dos anos 70 na Universidade Católica de Milão. Nenhum espaço para se encontrar, para organizar uma presença cristã. Mas um grupo de jovens faz amizade com padre Giussani: “Intervindo com muita discrição, tentava nos fazer entender como era bonita a experiência cristã e como esta era a primeira coisa a ser comunicada, ao invés de combater os juízos dos outros”. Notas de um início que continua

No início dos anos 70, padre Giussani não parecia muito ocupado com a direção do Movimento. Tinha muitas manhãs livres e, por uma predileção singular, freqüentemente eu passava um tempo com ele na rua Martinengo, na pequena sala térrea que era usada como quarto e escritório, onde recebia as pessoas e os telefonemas que sempre interrompiam as várias obrigações do seu dia. Ele lia ou escrevia e eu estudava. Depois, também falávamos de muitas coisas e me surpreendia toda vez que ele respondia ao telefone. Era como se toda a sua atenção fosse concentrada sobre a pessoa que tinha diante dele. Muitos anos depois, tive a emoção de ouvi-lo dizer que me ver era como ver os filhos multiplicados por mil.
No primeiro andar estava padre Scalfi que, na metade da manhã, lhe oferecia um chai, chá à moda russa. Era bonito ver como estes dois homens, unidos pelo mesmo ideal de serviço à Igreja, desfrutavam da companhia recíproca no breve tempo de um chá. Padre Giussani chamava padre Scalfi de “superior”, porque morava no andar de cima, e se cumprimentavam nas escadas com vozes vigorosas. Fora, o jardim das irmãs era ornado de rosas e uma gloxínia subia pelo muro do convento com o seu tronco nodoso. Era bonito vê-lo florescer todos os anos. No chão, sempre havia uma poeirinha branca ao longo das paredes da sala: padre Giussani, de fato, tinha pavor de insetos e os mantinha fora, assim.

Recolocar a carne na vida cristã
Uma manhã o surpreendi lendo a Bíblia. Fechou a página na qual tinha parado e me acolheu citando um trecho do Evangelho: “Como os convidados das bodas podem jejuar quando o esposo está presente?”. E fez um comentário: “Este é o conceito cristão de penitência”, no qual penitência coincide com alegria e isto estava estampado no seu rosto. Como quando dizia que “a nossa posição recoloca a carne na vida cristã, como nunca aconteceu desde os tempos dos Padres da Igreja”. Ou como quando, avaliando o caráter de uma amiga em comum, que estava frágil, usou uma metáfora eficaz: “A ternura não são só flores, a ternura é um tronco”.
Ainda sobre a alegria, uma das lembranças mais vivas da sua presença na Universidade Católica de Milão foi o momento em que, no primeiro claustro, na altura da sala João XXIII, encontrando-se com dois namorados que o cumprimentaram, andou parte do caminho com eles, com pressa, como sempre, e aproveitou para lembrar-lhes as palavras de São Paulo: Hilarem datorem Deus diligit (Deus ama quem doa com alegria). Quase no mesmo lugar, poucos anos mais tarde, quando tornei-me responsável pela comunidade que, então, contava com quase 500 pessoas, e me perguntava como fazer para desenvolver uma tarefa tão trabalhosa, ele me deu uma orientação que desde então sempre segui, mesmo em condições de vida diferentes: “Você se torna amiga de cinco e alcança 50”. E assim foi: fiquei perto de Simone, Amicone, Intiglietta, Banterle e Fontolan e comecei a ler com eles Miguel Mañara e O Anúncio feito a Maria. Tornamo-nos amigos para a vida embora não conseguíssemos nos ver com freqüência e eles, que tinham muito mais capacidade de relacionamento que eu, dilataram aquilo que havia entre nós comunicando-o aos seus amigos. Eles encontraram, entre outros, Testori, Tobagi e muitas outras personalidades importantes daqueles anos tão engajados. Nasceu, também, um jornal, chamado Kaccomatto, que publicava Shakespeare junto com cartas dos militantes de Luta Contínua.

Uma carta para Pasolini, nunca enviada
Mas, voltando à saleta da rua Martinengo, foi muito emocionante ouvir padre Giussani ler sobre a morte violenta de Pasolini e ver sobre a sua escrivaninha o início de uma carta endereçada ao escritor que jamais foi terminada, na qual exprimia uma total consonância com as posições sustentadas por ele em muitos artigos escritos para o jornal Corriere della Sera.
Tínhamos alugado duas salas para as nossas reuniões, no sexto andar de um velho edifício na avenida Magenta. Chamávamo-nos “os guardas vermelhos”, nome de batalha, nome clandestino, que padre Giussani desaprovava. Apesar disso, subia os andares e participava das nossas reuniões e dos jantares que as acompanhavam. De fato, na universidade não tínhamos nenhum espaço para nos encontrar, para organizar a nossa presença, para fazer cartazes, para discutir: o uso da sala São João só seria autorizado mais tarde. Aqueles eram anos em que a experiência de Comunhão e Libertação era muito isolada no mundo eclesial e civil. Na Católica, o reitor Lazzati não olhava CL com simpatia, embora a presença do nosso Movimento fosse apreciada por alguns professores, sobretudo nas faculdades de Letras e Filosofia; os movimentos extraparlamentares tentavam impedir, muitas vezes com violência, todas as nossas manifestações públicas nas universidades e nas escolas. Isto fez com que nos colocássemos em uma posição de defesa que, no fim, acabava nos asfixiando. Padre Giussani, intervindo com muita discrição, de fora, procurava nos fazer compreender como era bonita a experiência cristã e como esta era a primeira coisa que devia ser comunicada, ao invés de combater incisivamente os juízos dos outros.
E nos fez corrigir um mural que tínhamos colocado fora da Católica, convencendo-nos a colocar como frase de abertura não a nossa reação à ideologia, mas a experiência positiva que vivíamos. Foi este, na minha opinião, o primeiro momento no qual a mudança de direção no Movimento que se definiu completamente em 1976, em Riccione, começou a influir no nosso modo de raciocinar. A festa ironizando os aumentos do bandejão universitário – que era um modo de protesto dos estudantes em um lugar que não admitia, por parte dos católicos, uma contestação dura – teve esta origem remota e deixou admirado todo o mundo acadêmico, dos professores aos porteiros, que viram os claustros serem invadidos pelas serpentes “anaconda”, como uma forma de reagir a uma decisão injusta de uma maneira como nunca se tinha visto ali. E os aumentos foram cancelados.

O encontro das 8h30 na Aula Magna
No início, as aulas de padre Giussani não eram muito freqüentadas pelos alunos e, estranhamente, os de CL também desertavam do encontro das 8h30 das terças, quartas e quintas na Aula Magna, quando eram dados os dois cursos sobre O Senso Religioso e sobre a Igreja. Freqüentemente se ressentia por não poder preparar os temas com cuidado por causa dos compromissos crescentes na direção do Movimento. Porém, aquelas horas eram escutadas com atenção, até porque ele constantemente nos interpelava não só a um confronto com a própria experiência, mas, também, a intervir com perguntas e observações, coisa, então, muito rara nos cursos universitários. Em uma das três horas, padre Giussani organizava uma série de seminários e a Aula Magna era dividida em grupos de estudantes que debatiam, sob a orientação de um especialista, os mais diferentes problemas relativos à exegese, à literatura, à Igreja no Leste Europeu e à educação. Padre Giussani inspecionava e intervinha quando alguém precisava de esclarecimentos. O seu olhar era muito penetrante e parecia investigar o interlocutor de tal forma que alguns ficavam amedrontados. O seu modo de falar, a despeito da sua voz rouca, era límpido e nunca perdia o fio do discurso, mesmo fazendo longas digressões. Escutar era como comer um pão bom e saboroso. E, pouco a pouco, a Aula Magna foi ficando lotada porque o “boca a boca” entre os estudantes, admirados por aqueles ensinamentos tão antigos e tão atuais, foi o método infalível de um influxo do qual, agora, todo o Movimento goza na Escola de Comunidade.
Uma lembrança muito viva é a do bloco F, onde havia um pequeno escritório reservado aos professores de Introdução à Teologia: quando era o horário reservado a padre Giussani muitas pessoas desciam e subiam os degraus do bloco F; muitas decisões definitivas também foram tomadas naquela sala. Algumas, importantes para o Movimento inteiro: a idéia de uma confraternidade, depois, de Fraternidade, nasceu ali, por causa da necessidade expressa de quem se formava e pensava em se casar, mas queria continuar a experiência dos universitários: poderia dizer o nome e o sobrenome de quem inspirou esta idéia, como também o de um amigo inteligente e cético com quem cruzei na escada quando saía da sala, depois de uma conversa com padre Giussani, e o seu rosto me tocou porque era como o de uma criança.

Uma noite, num jantar
Uma noite, aquele grupo de amigos organizou um jantar no bairro de Trezzano sul Naviglio e padre Giussani participou da festa. Éramos cerca de 30 pessoas. No momento culminante, Simone pegou, não se sabe de onde, um grande chapéu e lhe deu de presente, para surpresa divertida de todos. Depois, começamos a dançar: era realmente bonito estar juntos assim, respirava-se a amizade dos melhores momentos. A um certo ponto, padre Giussani interrompeu o baile e nos disse: “É muito bonito vê-los tão próximos e contentes esta noite. Mas, quando descobrirem, dentro da alegria do baile, uma nota de tristeza, vocês se darão conta de uma beleza ainda maior. Desejo que este momento aconteça logo”.
A última recordação me toca de um modo muito pessoal. Talvez pelas diversas responsabilidades que eu assumira, me sentia cansada e fui passar alguns dias nas montanhas para repousar e a única coisa que levei para ler foi a Bíblia. Eu a lia e a relia, até que descobri um pequeno verso do Cântico dos Cânticos que achei muito bonito: “Quem é aquela que vem do deserto, apoiada sobre o seu dileto?”. Quando voltei para Milão, falei sobre este verso a padre Giussani e ele respondeu: “Você vem do deserto da afeição – me disse – e, hoje, segue Jesus em todo lugar. O que ainda precisa reconhecer é o sinal e o sinal somos nós”. Aquele dia foi decisivo para a definição da minha vocação, se não na forma que depois tomou, pelo menos como caminho no qual seria definida.
Estes episódios que contei são momentos de verdade que estão como sementes na terra da memória e os ofereço, nesta festa dos 50 anos de CL, como contribuição de gratidão por tudo o que recebemos e como broto de esperança para todos nós.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página