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Passos N.56, Novembro 2004

50 anos de CL / Educação

1) Propor adequadamente o passado
Conhecer a tradição e preparar o futuro

por Sebastian Hügel e Alberto Savorana

O professor Nikolaus Lobkowicz intervém a respeito do primeiro fator de Educar é um Risco: “Conhecer o passado ajuda a compreender e enfrentar racionalmente o presente”

Qual valor tem o passado na trajetória educativa que a escola e a universidade deveriam percorrer?
A educação não consiste somente na “socialização”, embora a implique, enquanto integração na cultura na qual nascemos e vivemos. Se essa socialização fosse só um conformar-se ao presente, seria cega, permaneceria totalmente superficial. Nos dias de hoje, quando se vive tudo às pressas, isso vale mais ainda, porque vivemos numa sociedade pluralista; conseqüentemente, os jovens são bombardeados por princípios, ideais e convicções que não se conciliam uns com os outros, ou melhor, até se contradizem muitas vezes. Alasdair MacIntyre descreveu esse fenômeno em seu livro Depois da Virtude. Conhecer o passado é uma ajuda irrenunciável à reflexão e, por isso, para se enfrentar racionalmente o presente. Se aprofundarmos o passado, começaremos a entender e, em seguida, também a distinguir. Aos poucos se descobrem critérios, à base dos quais se pode julgar o presente – e desse modo se descobre qual é o modo mais racional de agir.

Numa época em que os adultos parecem viver o presente imediato sem qualquer memória, de onde se deve partir para comunicar aos jovens uma tradição?
Aquilo que o senhor diz dos adultos não me parece totalmente correto: o interesse pela história nunca foi tão vivo como agora. O problema está no fato de que o conhecimento do passado é inevitavelmente seletivo (para evitar isso deveríamos viver de novo o passado), e que é preciso identificar os critérios de escolha “justos”. Com esse objetivo é preciso ter uma espécie de “perspectiva”, sobretudo que não seja abstrata, mas “existencial”, uma perspectiva que me permita reconhecer aquilo que realmente me diz respeito. Por isso, não se trata de deixar para trás uma tradição qualquer, mas é preciso buscar aquela “que faz mais sentido”, isto é, que permite compreender a história tal como ela é – olhada do ponto de vista da própria história. Para se obter isso é preciso “entender o homem”, que, apesar de todas as mudanças culturais, permanece sempre o mesmo, porque é caracterizado por aquilo que chamamos de “ser”. Eu creio que a melhor estrada para transmitir aos jovens uma tradição seja despertar neles a necessidade de compreender, a necessidade de compreender a si mesmo no presente.
E também recordar que nós todos sonhamos com uma “morada”. Só se aceita e se aprofunda uma tradição se encontramos a chamada “pátria espiritual”.

No mundo que dizemos “globalizado” e sem pontos de referência, o que significa afirmar que um jovem deve ser ajudado a conhecer e verificar a tradição em que nasceu?
Considero todos esses discursos sobre a globalização conversa fiada; excetuado o campo econômico, nós estamos bem longe de viver num “mundo globalizado”.
O que acontece é que nós – comparando com nossos avós e até com nossos pais – sabemos muito mais coisas e muito mais detalhes de culturas diferentes da nossa. Embora possa ser superficial, o turismo, o viajar freqüentemente, deu a isso uma contribuição fundamental. Certamente não chegamos ainda ao ponto de, por exemplo, ensinar história européia nas escolas; até agora, o ensino de história é transmitido a partir do ponto de vista de cada país: história alemã, francesa, italiana; é uma herança do infeliz fenômeno do nacionalismo, que considero o pecado do século XIX. Conheço só um livro, uma obra imponente, que procura apresentar de modo unitário a história européia, de Gibraltar a Moscou, da Islândia a Malta, dos seus albores até à reunificação da Alemanha: trata-se de um livro publicado em Oxford em 1996: Europe. A History, do historiador inglês Norman Davies, que, inclusive, é católico.
Agora, quanto à sua pergunta, não é possível enquadrá-la na cultura. Um jovem cresce católico, protestante, judeu e também ateu não apenas num determinado país, mas também numa determinada região e numa certa cidade. Para a socialização cultural se deve ter um ponto de partida; mesmo que depois essa cultura concreta venha a ser abandonada, haverá sempre uma certa gratuidade no fato de a termos conhecido e sermos confrontados com ela. O ponto de partida continuará a ser sempre a “pátria de origem”, ainda que depois possamos abandoná-la ou até mesmo tenhamos aprendido a odiá-la. Mas não deveríamos odiá-la: por mais que esteja errada ou nos leve para fora do caminho correto, ela passou a fazer parte de nós. Penso com prazer em Edith Stein, que, mesmo sendo carmelita, não deixou de ser judia e que toda manhã, quando se recolhia na capela e via a imagem de Jesus e de Nossa Senhora sobre o altar, pensava com alegria que ambos tinham “do seu mesmo sangue”. Sem uma percepção das nossas origens, o futuro não pode ser positivo...

Em seu livro Educar é um Risco, padre Giussani escreve que é preciso propor “adequadamente” o passado. Segundo o senhor, quais são as condições que um educador – pai ou professor – deve respeitar para ser “adequado” no relacionamento com os jovens?
Na minha opinião, a única estrada praticável consiste em viver aquilo que é promissor desse passado, ou vivê-lo de tal modo que seja uma alegria ser parte dele, para as crianças ou para os rapazes. A nossa cultura, que desde os tempos dos gregos é essencialmente calcada na expressão oral e escrita, sempre ignorou o fato de que as tradições são perpetuadas não pelo ensino e pelo aprendizado, mas sim por meio dos exemplos. Isso naturalmente não exclui, mas até compreende, o fato de que pai, mãe ou educador expliquem discretamente, àqueles que perguntam, a razão da esperança que há neles, como na primeira carta de Pedro (1Pd 3,15). Isso também pode significar que, se nós falhamos em relação às próprias tradições e às próprias convicções, nós o admitimos abertamente, ao invés de abraçar – como ocorre freqüentemente nos dias de hoje – novas opiniões. Uma das tragédias da nossa cultura política está no fato de que os homens políticos jamais estão dispostos a admitir abertamente que fizeram algo de errado, um gesto que conquistaria para eles os corações dos jovens, que, ao invés, voltam horrorizados as costas para a política, à exceção daqueles que, um dia, serão também mentirosos.

No Prefácio de Educar é um Risco, o senhor fala de um cristianismo “ofuscado”, que “se move sobre trilhos que são, sim, ricos de ‘tradição’, mas ao mesmo tempo são ‘tradicionais’, e nós os percebemos, em alguma medida, como restritivos”. Se tivesse que indicar sinteticamente os elementos que definem a nossa tradição, essa que teve início há dois mil anos, quais o senhor enfatizaria?
Essa tradição é de tal modo vasta e rica que é difícil destacá-la com uma ou duas frases sem correr o risco de alterá-la ou de limitá-la. Além disso, trata-se de algo maior do que uma simples tradição; é a estrada que Deus escolheu para nos permitir fazer parte dEle. Os dois elementos absolutamente mais importantes de tal tradição são o fato de o Logos ter se tornado homem, e a presença de Jesus Cristo e do Espírito de Deus que se perpetua na Sua Igreja. Hoje a Igreja reveste-se de uma particular importância, um aspecto que só raramente é compreendido: de fato, muitas vezes ela é considerada uma obra importante, mas exclusivamente humana. Claro, uma parte das muitas tradições da Igreja é cultura e, portanto, criada pelo homem, mas se trata simplesmente de dimensões de uma “disposição que por sua natureza é divina”. E certamente a obra de Deus na história vai além da Igreja visível; mas evidentemente Deus decidiu atuar na história através da Sua Igreja.

Tendo-se perdido grande parte da tradição, a intermediação da fé parece, hoje, ter que se apoiar sobre aspectos elementares do cristianismo. O Santo Padre sublinhou isso recentemente (cf. Carta de João Paulo II ao padre Giussani de fevereiro de 2004: “Está precisamente aqui a intuição pedagógica original de seu Movimento: repropor, de maneira fascinante e em sintonia com a cultura contemporânea, o acontecimento cristão, percebido como fonte de novos valores, capazes de orientar a existência inteira.”). O que se segue daí, nas relações com a tradição, e qual missão cultural cabe ao povo cristão no momento atual?Acho que hoje o anúncio deva apoiar-se em aspectos do cristianismo ainda mais elementares do que o elementar. Atualmente, a nossa situação, no anúncio, me parece ainda mais difícil do que a do Apóstolo dos gentios. Paulo pregou dentro de uma cultura para a qual era natural ser “religioso”. Por isso, ligou-se às tradições hebraicas e pagãs que já conhecia ou que aprendeu a conhecer. É só pensar, por exemplo, que logo após o chamado do macedônio, que lhe apareceu em sonho, começa na carta aos Filipenses (Fl 4,8) a utilizar conceitos que não provêm da tradição hebraica, mas da língua dos gregos cultos: “nobre, virtuoso, digno de louvor”. Nós, ao contrário, temos diante de nós uma cultura que há muito tempo perdeu em geral o sentido do religioso, uma cultura que pensa e vive só na imanência. Nos vemos, pois, obrigados a despertar, antes de tudo, o senso religioso. Em seu livro O Senso Religioso, padre Giussani mostrou, de um modo maravilhoso, como se deve proceder. Há, efetivamente, a possibilidade de anunciar a Boa Nova de um modo que corresponda às preocupações e às esperanças, diria até às expectativas mais profundas, dos homens de hoje. Tudo isso requer uma grande abertura em relação ao que, em última instância, coloca o homem em movimento, mesmo que à primeira vista possa parecer fora de linha. Em vez de se irritar e de investir contra tudo isso, contra tudo o que o vai mal no mundo moderno, como infelizmente o fazem os cristãos conservadores, deve-se procurar mostrar-lhes quais são os caminhos que despertam a esperança, dão coragem, levam à paz interior. Se não estamos convencidos de que a nossa fé e as tradições que criou são a resposta pela qual anseiam os homens, ninguém nos escutará. Assim como é indubitavelmente correta a regra pedagógica – freqüentemente aplicada hoje – segundo a qual se deve buscar os homens lá onde eles se encontram, também deixa-se de lado o fato de que também devemos guiá-los para uma meta. “A inculturação do cristianismo” – sobre a qual João Paulo II retorna com freqüência desde a encíclica Slavorum Apostoli – significa também ligar-se de novo a tudo o que numa cultura é “nobre, virtuoso, digno de louvor”, e não existe cultura que esteja tão corrompida que já lhe faltem tais conceitos.

Há pouco tempo, padre Giussani recomendou, partindo da experiência pessoal da salvação em Cristo, estudar também a história da humanidade para poder melhor agradecer a Deus pela bondade do encontro com Cristo. Em que sentido o seu confronto com a história reforçou no senhor a gratidão por ser cristão?
Antes de tudo, devo dizer que a sua pergunta me faz enrubescer, porque penso muito raramente que devo experimentar gratidão por ser cristão: talvez isso depende do fato de que cresci numa família e numa atmosfera onde era óbvio que a gente devia ser “um valoroso católico num ambiente anticatólico”, ou pelo menos assim vivi a minha juventude na Boêmia. Além disso, não é muito simples responder à sua pergunta do ponto de vista metodológico. Claro, se refletimos sobre a história como cristãos, devemos observar a história da humanidade sob uma determinada luz para ter a possibilidade de ver como Deus conduziu os judeus à encarnação e, depois de se tornar homem, conduziu a Igreja passo a passo. Hegel foi, sem dúvida, muito simplista ao afirmar que a história do mundo autêntica e empiricamente compreensível está no juízo universal; no final, isso o levaria a interpretar o Holocausto como uma passagem dialeticamente necessária para o aprofundamento da compreensão dos direitos humanos (mesmo na Igreja, hoje, se fala dos direitos humanos de um modo totalmente diferente do que no período que se seguiu ao primeiro conflito mundial). T.G. Masaryk, o primeiro presidente Tchecoslovaco, formulou este conceito de um modo ainda mais incisivo: “Pravda vítezí” (a verdade vence). Agostinho o viu de um modo ainda mais preciso: em primeiro plano, no palco, está a verdadeira história do mundo, mas ao mesmo tempo, como pano de fundo, se desenvolve uma outra história, aquela da graça, na qual as aparentes vitórias que acontecem no primeiro plano são derrotas, e as derrotas são, ou poderiam ser, vitórias. A derrota terrena de Cristo é a “vitória de Deus na história”. Talvez eu possa responder deste modo à sua pergunta: refletindo sobre a história, a minha fé cristã me doou uma perspectiva que sempre foi confirmada pela análise dos nexos históricos. A esse propósito, me deu um modo de ver que, na minha opinião, me torna imune às ideologias.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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