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Passos N.55, Outubro 2004

Iraque - Entrevista com Maurizio Scelli

No meio do povo para levar
ajuda, apoio e esperança

por Alessandro Banfi

Ele foi o protagonista de um intenso esforço para levar de volta para casa os reféns italianos no Iraque. Na sua história, uma longa caminhada de fé. Fala Maurizio Scelli, o comissário extraordinário da Cruz Vermelha Italiana, a única entidade humanitária a permanecer no Iraque.

Maurizio Scelli, advogado, é o comissário extraordinário da Cruz Vermelha Italiana. Os italianos aprenderam a conhecê-lo, sobretudo por causa do seu empenho humanitário no Iraque. É o homem que levou de volta para a Itália os restos do soldade Fabrizio Quattrocchi e também procurou repatriar Agliana, Cupertino e Stefio, antes que eles fossem resgatados pelos marines americanos, em maio deste ano. Mas não foi só isso. No último ano, a Cruz Vermelha Italiana tem oferecido assistência e ajuda aos iraquianos, sobretudo no ex-Hospital Saddam.
Alguns números: são 8 mil litros de água potável engarrafados todo dia; são 35 os italianos lá presentes, entre médicos e paramédicos; 507 são os que entraram no rodízio, desde o início da missão, entre médicos, paramédicos e clínicos gerais; 92 iraquianos recebem cuidados médicos na Itália, dos quais 55 já voltaram para casa, curados.
Encontramos com Scelli, para um diálogo com os leitores de Passos, em Roma, na sede central da Cruz Vermelha.

Qual foi a motivação profunda do seu empenho, em todo esse tempo?
Quem se empenha no voluntariado deve ser guiado por uma vocação. É o estímulo vocacional que o leva a agir, a colocar inclusive em risco a própria vida, se for necessário. Mas, ao mesmo tempo, faz com que a gente se sinta útil ao dar alguma coisa aos outros. Eu fiz uma caminhada de fé cristã através do voluntariado, primeiro com a Unitalsi, a associação que há cem anos leva os doentes até Lourdes [Scelli foi o secretário geral da associação; ndr], e ali encontrei uma resposta a tantos porquês. Depois, a experiência nesta organização neutra e humanitária, na qual vivi e vivo o compromisso marcado pelo espírito de serviço por quem necessita de ajuda, de apoio, sobretudo de esperança.

Muitas outras organizações humanitárias se retiraram do Iraque, depois dos últimos atentados. Por que vocês ficaram, ou melhor, até se dirigiram para Falluja, expondo-se a grandes riscos?
Ficamos porque ir embora significaria trair o espírito da Cruz Vermelha. A Cruz Vermelha nasceu há 140 anos num campo de batalha, em Solferino, justamente para socorrer todos os feridos, sem qualquer discriminação e, portanto, não importando de qual parte do conflito eles vinham. Num contexto como esse do Iraque, acho que a Cruz Vermelha tinha motivações e tradições mais fortes do que as outras organizações, coerente com o seu passado o que, portanto, nos levou a não considerar muito os riscos a que estávamos nos expondo.

Qual a relação que vocês mantêm com a população iraquiana?
No início, os iraquianos ficaram entusiasmados, agradecidos, reconhecidos, mas depois, contaminados pela política, passaram a nos ver como amigos dos americanos, e portanto inimigos seus. Minha função, então, foi a de exercer um pouco o papel de defensor dos 56 milhões de italianos que, de um mito para os iraquianos, haviam se transformado em supostos assassinos. Sobretudo depois da batalha das duas pontes de Nassiriya. Nos diziam: “Vocês também atiraram, vocês também mataram. Por que seguem os passos dos americanos?”. Mas depois sempre fomos acolhidos, e ouvíamos sempre o apelo: “É isso que queremos da Itália. Tragam-nos médicos, arquitetos, engenheiros, o melhor que tiverem. Não nos tragam armas, porque neste momento precisamos de paz. Queremos sonhar, queremos um futuro de paz e não de violência”.

O senhor já disse que é católico; a sua fé já lhe criou problemas, inclusive pessoais, no ambiente islâmico?
A organização da Cruz Vermelha é leiga. Todavia, as minhas íntimas convicções cristãs nunca me impediram de agir num contexto em que a neutralidade precisa ser reafirmada todos os dias, em todos os seus aspectos, tanto do ponto de vista político quanto religioso. Encontrar o ponto de diálogo com o mundo islâmico não foi fácil, tivemos que suportar e superar momentos de verdadeira tensão. Por exemplo, encontrei os meus interlocutores enraivecidos pelo fato de o Papa ter recebido, no Vaticano, o presidente Bush. E eram pessoas que estavam muito bem impressionadas com a posição do Papa sobre o diálogo entre Ocidente e Islã, que se lembravam dos encontros de Assis, porém o fato de o Papa ter recebido o presidente americano parecia incompreensível, inconcebível. O Papa que havia se alinhado contra a guerra... Tive que usar de muita paciência para esclarecer que mesmo esse encontro podia ser útil para a paz e o fim da guerra.

O senhor teve um intenso diálogo com os Ulemás, os líderes religiosos...
É a prova de que é possível um diálogo inter-religioso, mas é preciso um grande esforço. Às vezes a religião, para os integralistas, torna-se um álibi, um biombo, um modo de aliviar as responsabilidades, um modo de justificar até os crimes mais horríveis. Nós também recorremos a Deus, mas pedindo-lhe ajuda para que guie a nossa vida. E, por outro lado, pensar que eles decapitam os reféns em nome de Deus! Dá para entender que estamos diante de algo monstruoso, diabólico. Diga-se também que para nós é mais fácil entendê-los; mas para eles é muito difícil entender-nos. O Papa está fazendo e fez coisas grandes, no diálogo inter-religioso. Esperamos que também os líderes deles sejam capazes de dar passos para frente.

O senhor foi protagonista de um intenso esforço para trazer de volta os reféns italianos. O que ficou dessa experiência?
Creio ter tido um papel importante, porque eu tinha uma carta muito boa nas mangas: a nossa credibilidade, o fato de termos atuado em tempos não suspeitos, o fato de estar ali presente desde maio de 2003, e de ter realizado coisas concretas. Foi um confronto também muito duro. Consegui o corpo de Fabrizio Quattrocchi porque os meus interlocutores sabiam que era nosso direito reavê-lo. Eu lhes dizia: em junho do ano passado, um menino doente, muito grave, que levávamos para a Itália, para cuidar dele em nossos hospitais, morreu durante a viagem e foi repatriado dentro do tempo previsto pelo Alcorão, para a sepultura. O Alcorão também prevê o culto aos defuntos. Nessa situação difícil, eu me senti o único interlocutor italiano, porque eu era visto não como alguém da política, mas como o líder de uma organização humanitária que, sob a marca da neutralidade, já era apreciada, considerada e aceita de maneira unânime pela população iraquiana. Todos os demais não eram críveis, e isso está documentado. Nos meus cotidianos colóquios com os Ulemás, além de responder afirmativamente a todos os seus apelos de caráter humanitário, lhes pedia provas de que os três sobreviventes estavam bem e seriam tratados com dignidade. Em razão da consideração que havíamos conquistado, recebi garantias de que mensagens claras tinham sido retransmitidas aos raptores: não se deviam executar os três italianos; já havia sido um erro a execução de Quattrocchi.. Tive também que suportar algumas críticas por causa de minha suposta exposição na mídia, mas eu tinha o dever de enviar mensagens positivas às famílias, mensagens de esperança e de força. Até que nos encontramos com os familiares, quando levei de volta os restos mortais de Fabrizio Quattrocchi. Eu disse às famílias dos três sobreviventes: tenham fé, tenham esperança, porque há boas possibilidades de voltarem para casa.

Agora ficamos sabendo que os raptores eram criminosos comuns...
Que esses bandidos eram estúpidos ficou oficialmente claro agora, mas eu já o dizia desde o primeiro momento, porque os Ulemás me haviam comunicado isso, e eles achavam que, politicamente, entregar os reféns italianos à Cruz Vermelha no mais breve espaço de tempo possível significaria um insulto, devido ao empenho do Governo italiano e da coalizão que atua no Iraque. O epílogo do seqüestro, com a libertação dos reféns mediante uma blitz militar dos americanos, combinada com o Governo italiano, constituiu a prova definitiva de que os raptores eram uns pobres coitados, gente que era usada também politicamente. Um deles guardava os reféns e outro explorava politicamente o seqüestro. Se tivessem permitido a atuação de uma entidade neutra como a Cruz Vermelha, teriam reforçado a exigência de mais ajuda à população iraquiana, ajuda mais sentida do que a das armas.

Como se pode sair desse pesadelo que é o Iraque?
Como pessoa neutra falei com todos, com os sunitas, com os xiitas, com o vice de Moqtad Al Sadr, e há um denominador comum em suas exigências. Se mantivermos alto o nível humanitário e houverem boas intervenções no campo do trabalho, da segurança e da saúde, automaticamente o consenso do povo quanto ao novo curso das coisas apagará o consenso dos terroristas. Os terroristas embarcam no descontentamento do povo. É preciso continuar a ajudar a população, respondendo da melhor maneira possível às suas necessidades e, portanto, ir embora seria uma loucura, significaria deixar o campo aberto para uma guerra civil sem fim, na qual as vítimas, como sempre, seriam os mais fracos e os mais indefesos.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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