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Passos N.47, Fevereiro 2004

PÁGINA UM

Simplicidade, filha fácil da felicidade

por Luigi Giussani

Notas da mensagem no dia das “profissões”1 dos Memores Domini.
Milão, 24 de dezembro de 2003


Perdoem-me se acrescento um pouco da emoção que este momento desperta em mim, ignorando a voz, que me falha, e as forças, que me abandonam.
Que coisa realmente impressionante é esta que estamos realizando, que estamos pondo nas mãos do universo inteiro, do mundo inteiro, de toda a história! É um momento no qual o eu se renova, porque é recriado, como nos lembrou o nosso querido padre Pino agora há pouco; é o momento em que o eu é substituído ou - melhor dizendo - é identificado com o “tu” que se diz a Jesus, o “tu” que se diz a Cristo.
O hino a Nossa Senhora que aprendemos a meditar nestas semanas2, do grande poeta Dante, abre-nos uma passagem por dentro da confusão sempre possível, da superficialidade que sempre pode ficar como tentação ou, de qualquer forma, como ponto de vista.
“Em teu ventre reacendeu-se o amor, por cujo calor na eterna paz assim germinou esta flor”: a flor que é você, meu amigo; a flor que é você, meu irmão; a flor que, enfim, é você, homem. Toda a sua vida, amigo, companheiro e irmão, e toda a sua humanidade - por isso este é um momento sério - é invadida e revirada e arrastada rumo ao horizonte: o que Deus espera de você, o que o Mistério espera da sua vida, o que o mundo, a humanidade espera de você, o que a história espera de você é o empenho da vida inteira, como o terceto que acabei de ler nos lembrou.
“Em teu ventre reacendeu-se o amor”: o eu, se não se torna sujeito de amor, que destino tem, que destino poderia ter, que nada seria? “Em teu ventre reacendeu-se o amor [a totalidade dos seus sentimentos e os ímpetos em que você os traduz] por cujo calor [todo o calor da sua existência - todo! - está dentro deste momento, é despertado por este momento] na eterna paz [este momento em que você entra na eterna paz: na sua posição justa diante de Cristo, diante de Cristo que o abraça, de Cristo que o recria]”.
A sua vida é chamada a uma responsabilidade, a uma resposta, todas as manhãs, em todas as mudanças de atitude e de formas nas quais você exercerá sua ação criativa, na sua relação com o mundo inteiro, de forma tal que você também possa repetir com sinceridade e verdade aquilo com o qual continua o canto a Nossa Senhora: “Aqui és para nós luz meridiana [fogo ardente, em seu momento de plenitude, como o sol do meio-dia] de caridade [o seu amor já não pode ser verdadeiro e nem pode ser expressão do seu eu, da sua personalidade, não pode ser recriação, se não é caridade, se não reflete e ecoa o mistério da relação que o Eterno tem com o nada que você seria]”.
“Aqui és para nós luz meridiana de caridade; e embaixo, entre os mortais, és fonte vivaz de esperança.” É a vida, a totalidade do seu eu que se torna amor, é a totalidade da sua vida que se torna esperança. Uma esperança e, portanto, uma possibilidade de pureza e de escolha, de recuperação de cada instante. Esperança, pois você participa disso e reconhece que foi “atacado” e investido por Cristo para isso, pois você reconhece que é caridade, que se tornou caridade, participação do Mistério tal como Nossa Senhora soube ser, como Nossa Senhora descobriu, entendeu (“eterna paz”: é por isso que nela tudo foi uma eterna paz).
Mas essa consciência renovada da sua existência não implica uma capacidade estranha, diferente, não, não: o que está implicado é a sua origem, a sua origem total, o ser que olhou para você, e isso está implicado de acordo com a totalidade simples, com a simples totalidade de sentimento que você tem de si, da maneira como você já se sentiu, da maneira como você se sentiu em determinados momentos que agora estão destinados a ser o momento de sempre.
Carmen me mandou uma poesia de Juan Ramón Jiménez na qual se celebra a simplicidade: “Ó simplicidade, filha fácil da felicidade! [filha fácil da felicidade, pois a felicidade já é uma presença. “Estou presente” 3: à sinceridade do modo como você se expressa, volta a expressar a si mesmo, corresponde a felicidade para a qual a sua existência, “você mesmo” foi criado] Nasces [diz o poeta], ó simplicidade, nasces na vida como o sol de cada dia nasce no Oriente. Tudo achas melhor, tudo achas bom, bonito e útil [acordar todas as manhãs e achar tudo bom, bonito e útil]. Simplicidade pura [a simplicidade, portanto, é a pureza da vida: a consciência com a qual você se sente, se percebe acolhido e acompanhado pela grande companhia que transformou, na paz, a sua relação com o mundo, a sua presença; a sua presença: “Estou presente!”], simplicidade que é fonte do jardim da tua alma [o jardim: expressão imediata e pura da natureza], perfume do jardim secreto da minh’alma [esse jardim cheio de ternura é também repleto de perfume, tem um perfume vivo], luz do dia sereno da minh’alma [uma luz num dia sereno, que será uma possibilidade constante]” 4.
Nossa Senhora é o nome daquela que está com você, sensivelmente, que ficará com você: “Mulher, és tão grande e tanto vales, que quem deseja graças e a ti não recorre é como alguém que desejasse voar sem asas”. Nossa Senhora, minha senhora, Nossa Senhora, és a palavra que indica aquela pela qual o mundo é feito, a história é feita, pela qual a sua vida se torna d'Ele, de Cristo.
Sendo que a felicidade, como tema último, é indicada nessa completitude da criação de Nossa Senhora - “és tão grande e tanto vales” -, isso, para o qual você é feito, para o qual a sua alma é feita (e quanto mais a sua simplicidade reconduz tudo à atitude da criança, mais você sente que é feito para isso: “Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”, não entrareis jamais, não entendereis jamais, não sentireis jamais, não sereis mais), isso que lhe é dado descobrir na sua vida como vida da vida, como audácia, como risco impetuoso, você o exprimirá num desejo, o exprimirá numa espera e o exprimirá com uma fome e uma sede de ternura e de plenitude. Tudo lhe será dado! E, com a ajuda de Nossa Senhora, na companhia de Nossa Senhora, nada do que você pedir a Deus, ao Mistério, será ignorado. Nada será negligenciado.
“Mulher, és tão grande e tanto vales [de tanto que participas do Ser, 'eterna paz'], que quem deseja graças” deve recorrer a ela, a essa Nossa Senhora na qual você é recriado até no seu corpo - até no seu corpo! -, na qual até o seu corpo é renovado. Não deverá haver nenhuma sombra de dúvida sobre o que você pedir - não há nenhuma sombra de dúvida sobre a fé, na criança -, pois aquilo que você pedir poderá ser pedido a cada momento, deverá ser pedido a cada momento, será pedido a cada momento com o respiro de Nossa Senhora. Você pedirá: esteja seguro, você está seguro, como a criança está segura sobre a mão que a acaricia, sobre a voz que a chama; como a criança, na simplicidade, pois a certeza é como o sol que se renova às suas costas fazendo o dia voltar, é como essa ininterrupta continuidade de recriação. E então poderá se tornar algo que se experimenta em você, algo veraz... fonte veraz, a sua esperança será uma fonte veraz. Que você venha a crescer com o passo de Maria, no passo de Maria.
“Em ti, misericórdia.” Poderão dizer de você: “Nela, misericórdia”, “Nele, misericórdia”, “Na sua alma, misericórdia”. “Em ti, misericórdia”: compaixão para com o limite do homem que está ao seu lado, na rua, no trabalho ou em casa. “Em ti, misericórdia [piedade perante o limite], em ti, piedade [um limite repleto de erros, como seria o seu, se não chamassem constantemente a sua atenção], em ti, magnificência, em ti se coaduna todo o bem que existe nas criaturas”.

Estas palavras queriam ser votos de felicidade e acabaram se tornando uma certeza expressa com a voz trêmula, uma juventude. Já chega. “Não te perdi. Permaneceste, no fundo/ do ser. És tu. Uma outra és, mais bela./ Amas, e não exiges ser amada: por cada/ flor que desabrocha ou fruto que cora/ ou criança que nasce, ao Deus dos campos/ e das estirpes dás graças no teu coração”5, a Jesus!

Canto.6

Cada um repita a frase que lhes foi sugerida: “Seguro da fidelidade de Deus...”7


Notas

[1] Na experiência dos Memores Domini, a “profissão” é o compromisso que se assume para a vida inteira de aderir aos ideais nos quais a Igreja tradicionalmente identificou a realização da humanidade verdadeira, gerada pela morte e ressurreição de Cristo e continuamente renovada no Batismo. Esse momento, ao final do período de avaliação, sanciona a admissão definitiva na Associação Memores Domini.
[2] “Virgem mãe, filha de teu filho, a mais humilde e sublime dentre todas as criaturas, termo prefixado de eterno desígnio, tu és aquela que a natureza humana enobreceste de tal forma, que seu criador não desdenhou fazer-se sua criatura. Em teu ventre reacendeu-se o amor, por cujo calor na eterna paz assim germinou esta flor. Aqui és para nós luz meridiana de caridade; e embaixo, entre os mortais, és fonte vivaz de esperança. Mulher, és tão grande e tanto vales, que quem deseja graças e a ti não recorre é como alguém que desejasse voar sem asas. A tua benignidade não apenas socorre quem pede, mas muitas vezes livremente se antecipa ao pedido. Em ti, misericórdia, em ti, piedade, em ti, magnificência, em ti se coaduna todo o bem que existe nas criaturas” (Dante, Paraíso, canto XXXIII, vv. 1-21; tradução livre de Filippo Santoro e Vando Valentini).
[3] Expressão pronunciada pelos aspirantes quando o seu nome é chamado durante a “profissão”.
[4] “¡SENCILLEZ, hija fácil/ de la felicidad!/ Sales, lo mismo,/ por las vidas, que el sol de un día más,/ por el oriente. Todo/ lo encuentras bueno, bello y útil,/ como tú, como el sol.// ¡Sencillez pura,/ fuente del prado tierno de mi alma,/ olor del jardín grato de mi alma/ canción del mar tranquilo de mi alma,/ luz del día sereno de mi alma! (Juan Ramón Jimenez. “Sencillez”. In: Diario de un poeta. Editorial Aguilar, 1957).
[5] “Não te perdi. Permaneceste, no fundo/ do ser. És tu, mas uma outra és:/ sem folha nem flor, sem o luzente/ riso que tinhas no tempo que não volta mais,/ sem aquele canto. Uma outra és, mais bela./ Amas, e não cogitas ser amada: por cada/ flor que desabrocha ou fruto que cora/ ou criança que nasce, ao Deus dos campos/ e das estirpes dás graças no teu coração./ Ano após ano, dentro de ti, foste mudando/ de rosto e substância. Cada dor mais sólida/ te tornou: a cada vestígio da passagem/ dos dias, uma tua linfa oculta e verde/ opuseste para repará-lo. Agora olhas para a Luz/ que não engana: no seu espelho contemplas/ a vida duradoura. E permaneceste/ como uma idade que não tem nome: humana/ entre as misérias humanas, e assim mesmo viva/ de Deus somente e só n'Ele feliz.// Ó juventude sem tempo, ó sempre/ renovada esperança, eu te entrego/ àqueles que hão-de vir: - até que na terra torne a florir a primavera, e no céu/ nasçam as estrelas quando se apagar o sol” (A. Negri. “Mia giovinezza”. In: Mia giovinezza. Milão, Rizzoli, 1995, p. 78. Cf. também: D. Rondoni. “A juventude de Ada”. Tradução de Durval Cordas. In: Litterae Communionis nº 46, julho/agosto de 1995, pp. 44-48).
[6] Prendi pure la mia vita (Toma toda a minha vida).
[7] “Seguro da fidelidade de Deus, na presença Sua e na presença da comunidade, peço a Jesus Cristo, minha única salvação, que, entre as vicissitudes da vida, o meu coração permaneça fixo n'Ele, em quem está a libertação do mundo e a verdadeira alegria. Confio esse compromisso à Virgem Maria, Mãe da Igreja, e lhe peço um amor cada vez maior pelo povo dos fiéis”. Fórmula lida pelos aspirantes durante a missa das “profissões”.

 
 

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