Publicamos o prefácio de Julián Carrón, “Passar de uma lógica de grupo para uma dimensão de consciência pessoal”, do novo livro de Luigi Giussani, Qui e ora. 1984-1985, inédito no Brasil. É o quarto volume da série “L’equipe”, em que são reproduzidas as conferências e os diálogos de Dom Giussani com os responsáveis pelos universitários de Comunhão e Libertação
“Pode um homem culto de nossos dias crer, crer realmente, na divindade do filho de Deus, Jesus Cristo?” Talvez ninguém tenha apresentado de um modo mais sintético e peremptório que Dostoievski, em Os irmãos Karamazov, o desafio diante do qual se encontra o cristianismo na modernidade.
Dom Giussani teve a coragem de medir forças com esse desafio histórico, radicalizando-o, se possível. De fato, Dom Giussani aposta tudo na capacidade de sua proposta educativa de gerar um tipo de sujeito cristão para quem, “mesmo que todos fossem embora – todos! -, quem possui essa dimensão de consciência pessoal (gerada pela fé) não pode deixar de começar tudo de novo sozinho”.
É, sem tirar nem pôr, a mesma aposta que Jesus não teve medo de fazer com os que o seguiam. O que Jesus teria feito no caso hipotético de que, diante do desafio: “Vós também quereis ir embora?”, todos os discípulos o tivessem abandonado? Ninguém tem a menor dúvida: teria começado tudo de novo sozinho.
O que é que nos pode permitir ter uma capacidade de retomada como essa, nas atuais circunstâncias históricas? Se procurarmos nos identificar com Jesus, poderemos começar a vislumbrar a resposta: o que é que poderia permitir a Ele começar tudo de novo?
Fica evidente que Ele não poderia apoiar-se numa lógica de grupo, já que, em nossa hipótese, estaria sozinho. Para poder enfrentar esse desafio, é preciso passar “de uma lógica de grupo para uma dimensão de consciência pessoal”. Jesus teria sido obrigado a apoiar tudo no conteúdo de sua autoconsciência, do fato de pertencer ao Pai.
“Qual é o conteúdo dessa dimensão de consciência pessoal? A definição do eu é ‘pertencer’. Pertencer define o que eu sou, tal como ser filho é definido pelo fato de a pessoa pertencer a seu pai e a sua mãe; e isso não é escravidão, pois esse pertencer não é extrínseco. Dizer que o eu é relação com o Infinito significa que a essência do eu, no sentido estrito da palavra, é pertencer a um Outro.”
Dessa forma, Dom Giussani indica que aquilo que poderia permitir a cada um de nós começar tudo de novo é a mesma coisa pela qual Jesus começou, no início: a consciência de pertencer ao Pai. Não é, portanto, uma capacidade nossa, uma energia nossa, uma qualidade nossa, mas é o resultado do fato de pertencermos.
O que Dom Giussani faz, assim, nada mais é que identificar a finalidade última da obra salvífica de Cristo. Cristo se fez homem, morreu e ressuscitou para que, mediante o dom do Espírito, pudéssemos viver com a consciência de filhos, como “filhos no Filho”. Tomar consciência do fato de sermos filhos, ou seja, de pertencermos ao Pai, é a meta de toda a educação cristã, cuja verdade é verificada pela capacidade de a pessoa – assim educada –poder começar tudo de novo, no caso de todos terem ido embora.
Isso esclarece o caminho que cada um de nós deve procurar percorrer: a vida deve-se tornar um caminho que nos faça cada vez mais seguros e conscientes de pertencermos. Mas essa consciência só pode ser adquirida se é verificada nas circunstâncias da vida: “O impacto com as circunstâncias, a relação com a realidade, nada mais é que o acontecimento da vida como vocação, cujo ‘sujeito’ é pertencer àquilo que nos aconteceu – Cristo, dentro da fragilidade efêmera da comunidade -, ao mesmo tempo em que o conteúdo ‘objetivo’ sobre o qual esse sujeito é chamado a agir é o encontro com o conjunto de circunstâncias orientadas que se chamam, justamente, ‘vocação’, pois Deus nada faz por acaso. O conjunto de circunstâncias solicita o sujeito, e este age de acordo com a origem totalizante que possui em seu íntimo, de acordo com o princípio formal, determinante, que foi o encontro”.
Alcançar essa consciência é o fruto de uma luta que exige de cada um de nós a disponibilidade à conversão, ou seja, a viver segundo uma outra mentalidade. A razão disso é evidente. Essa posição entra em conflito com a postura disseminada neste preciso momento histórico em que somos chamados a viver a fé, que nos penetra muito mais do que pensamos: “O homem moderno acreditou que poderia evitar tudo dizendo que ‘o homem pertence a si mesmo’, o que é a maior de todas as mentiras, uma vez que esse homem, antes, não existia; logo, tal afirmação contraria a mais clara de todas as evidências. ‘O homem pertence a si mesmo’ significa, então, que o homem se torna posse do poder, pertence ao poder, ou seja, pertence a outros homens, que o determinam”. Hoje podemos constatar mais as consequências dessa escolha do que quando as seguintes palavras foram ditas, em meados da década de 1980: “Meus amigos, vivemos numa época de uma periculosidade ilimitada. Vivemos numa época em que não trazemos os grilhões presos a nossos pés, mas, sim, à motilidade das origens primeiras de nosso eu e de nossa vida. O Ocidente, não lenta, mas violentamente, vem empurrando toda a realidade humana, inclusive a nossa, para o ‘gulag’ de uma subserviência mental e psicológica jamais conhecida. É a perda do humano, cujo sintoma mais impressionante já era assinalado por Teilhard de Chardin: a perda do gosto de viver”.
A descrição da situação histórica em que nos encontramos torna-nos conscientes da natureza desse desafio. Em tais condições, existe alguma chance de que seja gerado um sujeito cristão capaz de recomeçar do princípio? O que pode tornar possível a geração de um sujeito como esse? Para Dom Giussani, a resposta é clara: a contemporaneidade de Cristo.
“É o fascínio do alcance histórico de Cristo ressuscitado, é o reconhecimento de Cristo ressuscitado que constitui o sujeito histórico novo, diferente dos outros, ou seja, nós. E, dizendo esse ‘nós’, uma pessoa entende, maravilhada, a diferença abissal que existe entre a forma como Deus avança na história e as capacidades que a pessoa possui, o fruto de suas capacidades. [...] Este é o reconhecimento que constitui o sujeito histórico novo: o reconhecimento da contemporaneidade de Cristo. Por isso, as pessoas que iam atrás dele, os discípulos que foram atrás dele, [...] eram pobres coitados como eu e você, mas toda a novidade da esperança, a certeza absolutamente nova, a realidade nova que eles foram era aquela Presença. [...] Eu continuo a ser esse pobre coitado que eu sou, mas, com Cristo, sou alguém cheio de certeza, sou rico. [...] De fato, só na companhia d’Ele a pessoa ama a si mesma; só aquele que traz consigo essa mensagem pode expressar uma afeição a si mesmo: amor a si mesmo e, por conseguinte, amor aos outros” (pp. 67-68).
Mas onde é que a sua Presença se torna contemporânea, hoje? Nós nos lembramos de imediato das palavras de João Paulo II: “A contemporaneidade de Cristo ao homem de cada época realiza-se no Seu corpo, que é a Igreja” (Veritatis splendor, 25). Podemos encontrar o significado existencial dessas palavras nestas outras, de Dom Giussani: “O cristianismo é um fato que sobrevém. Sobrevém: ‘Estarei convosco até o fim do mundo’. [...] Ora, se Cristo – o homem que disse: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’ - sobrevém no tempo e no espaço, e ninguém mais pode detê-lo, se Cristo sobrevém, onde é que ele está? Se sobrevém, onde podemos vê-lo? Se sobrevém, onde podemos tocá-lo? Se sobrevém, onde podemos ouvi-lo? [...] O fato de Cristo sobrevir de maneira real coincide com um fenômeno visível, tangível, concreto, que é a companhia daqueles que creem, a assembleia dos que creem, Seu corpo misterioso. [...] Cristo sobrevém no tempo e no espaço porque superou a morte, venceu a morte, porque vence o tempo e o espaço, que são os prenúncios da morte. E a Sua presença, que sobrevém, possui um sinal visível, sensível, audível: é a nossa companhia; deveríamos dizer: é a grande companhia de Seu corpo no mundo, que é a Igreja. Mas a Igreja é igual a zero se não a percebemos grudada do nosso lado, nossa companheira quando nos levantamos de manhã e quando vamos dormir à noite, quando comemos e quando bebemos. Nesse sentido, dizemos: é a nossa companhia enquanto fator emergente, enquanto forma pela qual a Igreja nos toca, pela qual o mistério da Igreja nos toca” (pp. 150-153).
Essa contemporaneidade torna possível, para cada um de nós, o encontro com Cristo; torna possível reacontecer agora a mudança da qual Zaqueu será para sempre testemunha: “Para Zaqueu, aquele homem tinha-se tornado o horizonte de tudo; logo, todos os seus pensamentos, todos os seus julgamentos eram expressão e consequência daquele horizonte. Aquele rosto [...], aquele olhar que o fitava de baixo para cima, aquela palavra, e ele, em seguida, correndo para casa: aquele foi o horizonte de tudo na vida de Zaqueu, de modo que tudo que julgava, pensava e realizava na vida, tinha como ponto de partida, idealmente, aquele horizonte, e era consequência daquele horizonte” (pp. 442-443).
Dom Giussani continua a nos levar à identificação com a dinâmica desencadeada por aquele encontro: “Guardando aquele olhar no fundo de seu rosto e de seu coração, guardando em seu íntimo aquele homem que havia encontrado, o que fez Zaqueu? Foi para casa e de imediato se deparou com os roubos que fazia e o dinheiro que possuía, e entrou logo em ação; e ainda se encontraria com sua esposa, e tinha seus filhos, e no dia seguinte ainda tinha de ir retirar as mercadorias, e ainda tinha de ir comprar o boi pelo qual já tinha dado um sinal, e ainda tinha de viajar até Jafa. Mas, em todas essas coisas, o que é que acontecia? Zaqueu reagia ao impacto que essas coisas tinham sobre ele [...], mas sua reação, depois daquele dia, já não era a de antes. [...] O impacto com as circunstâncias: em outras palavras, a relação que o homem que foi tocado por Cristo tem com a realidade. É nessa relação com a realidade, é nesse impacto com as circunstâncias, que se desenvolve aquilo a que chamamos ‘criatividade’. Sendo assim, a criatividade está intimamente ligada à ideia de vocação, uma vez que a palavra ‘vocação’ define de modo total e sistemático a relação com a realidade e, por conseguinte, a série de circunstâncias por meio das quais a vida é provocada e se realiza” (pp. 444-445).
Vivida na fé, a vida se transforma na oportunidade que temos de levar a novidade que invadiu nossa pessoa até os meandros da realidade mais cotidiana: “Crer em Cristo significa romper os limites de tempo e de espaço, de modo que aquilo que seria uma relação ambígua e efêmera com a mulher transforma-se no símbolo do céu, transforma-se em penhor do eterno, função do Reino de Deus; aquilo que seria uma aplicação suada e cansativa a um instrumento de trabalho transforma-se em construção [...] do eterno no tempo, e, por conseguinte, em salvação do tempo. [...] Cristo constrói empunhando a maneira como você almoça, ao meio-dia e meia, empunhando a maneira como você abraça a mulher, empunhando a maneira como você abre o livro. Você está mudado na ação que pratica, se crê, se vive a fé n’Aquele que está no meio de nós, se vive a fé, que é memória, pois se iniciou naquele fato que aconteceu [...] há dois mil anos: ‘Mestre, onde moras?’, e continuou ininterruptamente, a ponto de tomar a mim também! E não me tomou porque eu li um livro: é uma história mesmo, é algo que me aconteceu, não uma coisa que eu li” (pp. 159-160).
É vivendo dessa forma cada aspecto da realidade que nós, de repente, nos vemos diante do nascimento de uma cultura nova, gerada por um método que Dom Giussani descreve assim: “O impacto com a realidade - a resposta ao impacto com a realidade, a relação com a realidade e, por conseguinte, a geração da experiência e o desenvolvimento da cultura - é algo justo na medida em que você começa de dentro do acontecimento que o colheu, ou seja, de dentro de um seguimento. [...] A expressão mais importante é: ‘Começa de dentro da consciência de pertencer a Cristo’; mas não ao Cristo que de imediato se transforma num parto da sua imaginação, do seu pensamento, e, sim, ao Cristo real, que é aquele que o tocou por intermédio de determinadas circunstâncias humanas. Por isso, a questão é pertencer a essas circunstâncias humanas, não porque nelas existem pessoas ótimas, mas porque tais circunstâncias constituem o fato do chamado que Cristo lhe fez, o fato do encontro com Cristo, em seu aspecto humano. Se não vivemos a relação com Cristo dentro da relação com as circunstâncias com que Cristo nos tocou, tal relação facilmente torna-se falsa, porque obedece àquilo que você vê. Por isso, permaneçamos no lugar graças ao qual as coisas passam a ser justas: é a imanência à comunidade em nosso trabalho sobre o conteúdo da realidade” (pp. 447-449).
Assistimos, dessa forma, a um sujeito diferente que se apresenta na história, sinal mais evidente da conveniência humana da fé. De fato, Dom Giussani observa que “o cristianismo é uma coisa diferente daquilo que naturalmente experimentamos, cujo resultado é uma nova descoberta do humano, que finalmente se transforma em algo que dá contentamento e pode ser vivido [...]. Em outras palavras, a pessoa fica em paz, a pessoa vive em paz, não porque se ilude [...] com superficialidades ou porque se deixa levar por uma presunção orgulhosa: pelo contrário, a pessoa passa a viver toda propensa a olhar para si mesma tal como é, e para as coisas tal como são, e tudo isso não constitui uma objeção para ela, não a conduz ao cinismo e ao desespero, dos quais ela só se livraria se anestesiando em tudo, tornando-se superficial, vivendo como que drogada pelas coisas imediatas” (p. 434).
Graças à diversidade humana de um eu finalmente contente e em paz, cheio de afeição a si mesmo, no qual o cinismo e o desespero não conseguem ser vitoriosos, o cristão, mesmo em sua fragilidade infinita, assiste maravilhado à “afirmação de uma positividade irresistível”, que dá testemunho de Cristo: “A linguagem da comunidade é o testemunho. E diante disso [...] já não é possível negar, pois não dá para discutir com os fatos, não é possível negar um fato que a pessoa vê. [...] O ponto de chegada de tudo já não pode ser a negatividade, mas a afirmação de uma positividade irresistível. [...] É uma outra coisa que vence o mundo; não é o fato de participarmos das ideologias – logo, não é a nossa cultura -, nem tampouco são as nossas obras, mas a afirmação de uma presença que não tem papas na língua, que fala sem nenhum medo e é incansável, que constrói obras ‘como um trator’. Mas o sujeito que se afirma não é a nossa capacidade de opinião ou a nossa capacidade de expressão; estas são arrebatadas para dentro dessa Presença, transportadas, transformadas, convertidas, convertidas com e nessa Presença: ‘Eu vivo, mas não eu, é um Outro que vive em mim’, é Algo outro que vive em mim” (pp. 135-136).
Quem é que não deseja um eu assim: livre, sem medo, cem por cento capaz de construção? Só um eu assim será capaz de recomeçar em qualquer circunstância. E cada um de nós só poderá cumprir essa tarefa na história na medida em que estiver disponível a deixar-se gerar mediante o seguimento da novidade histórica que o alcançou.
traduzido por Durval Cordas
* A edição, em italiano, de Qui e ora. 1984-1985 (BUR, Milão, 2009), pode ser adquirida no site da Itacalibri: www.itacalibri.it
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