E me dei conta, enquanto entrava, que eu tinha
atravessado campos que não faziam parte de propriedades terrenas.
(Patrick Kavanagh, Mattino di trebbiatura)
Acontece frequentemente, a nós missionários, sair para visitar a miséria dos outros. Falamos a respeito, escrevemos a respeito, fazemos coisas a respeito, mas raramente ficamos ali. Muito vezes voltamos para casa com alguns comentários deploráveis aos quais se seguem alguns sonhos de resgate, sonhos de vingança, mas raramente ficamos sofrendo aquele destino. E se o fazemos, no melhor dos casos, o fazemos por meio expediente.
Recentemente, percorri cem quilômetros de moto. Estradas pedregosas, arrozais a perder de vista e de esperança, vilarejos animados pela vitalidade de centenas de crianças. E poeira, muita poeira, que faz com que tudo e todos se tornem da mesma cor, a cor da terra. Os estudantes da escola estão de férias e aproveitamos para fazer visita às famílias de oito deles. Partimos de manhã e, em seguida, de casa em casa, visitamos a sua miséria. Voltei profundamente comovido, feliz e grato. Porque se é verdade que, em cada um daquelas casas, não falta o sinal da miséria, não faltou também o sinal de uma grande dignidade que não estava a espera do meu dinheiro nem das minhas soluções. Ou melhor, aquela dignidade me consolou, me fez companhia, da mesma forma como senti como companheira aquela miséria. Senti-me parte dela, sem o direito de me distanciar. Cem quilômetros de arrozais e vilarejos, para me dar conta de “que tinha atravessado campos que não faziam parte de propriedades terrenas”. Aqui, somente a palavra do poeta me ajuda a ver aquilo que, de outra forma, fugiria dos meus olhos, presa do esquecimento. Pelo contrário, sinto o Espírito trazer luz e “gotejam certezas que ultrapassam os sentidos, / átimos solitários e indescritíveis, luminoso alvorecer da transcendência” (Ugo Foscolo).
Este é o período mais quente e mais seco do ano. As lagoas, os pântanos, os canais, os riachinhos, tudo lentamente seca e as crianças tiram proveito. A diminuição do nível das águas expõe os peixes, faz vir à tona crustáceos de todo tipo, que se tornam presa fácil para as mãos rápidas, magras e esfomeadas das crianças. Vi dezenas delas, semi-nuas, imersas nos pântanos, confundindo-se com a lama, com as mãos em concha tentando pegar algum peixinho para levar para a mesa do jantar. Cem quilômetros de arrozais, para poder ver que “Deus está aqui, no meio dos pântanos (...). Uma cena humilde num lugar afastado / Onde nunca pousou um olhar importante”.
Já perto de casa, minha consciência inquieta, meu empreendedorismo e criatividade, os objetivos já alcançados no passado, obrigavam a planejar rapidamente alguma solução para os problemas encontrados no caminho. Eu tinha visitado a família de Sokhuan, um dos nossos melhores estudantes, para ver se é possível ajudá-lo também a ingressar na universidade, e o pai, ex-militar, às vezes bêbado, como ontem e anteontem, não apenas não conseguia acompanhar meu discurso, como também se dizia preocupado por ter que ir para a fronteira com a Tailândia para proteger o Camboja das pretensões dos vizinhos invasores. Disse-lhe que é mais sábio para ele ficar em casa e proteger sua família. Já seria um grande milagre. Alguém cuidará do Camboja...
De casa em casa, entendi que é preciso estar com estas pessoas por mais tempo e sofrer a suas vidas por mais tempo, sem delegar a projetos no papel a possibilidade e a urgência de seguir os seus passos. Sempre sou tomado por uma certa pressa, mais pelo medo, pelo constrangimento, do que por motivos reais. Eles, pelo contrário, precisam de tempo, eu preciso de tempo e nunca conseguimos nos fazer entender no espaço de tempo de uma visita. É preciso mais e tenho medo de que seja isso que Jesus pediu ao homem rico no Evangelho de Marcos (Mc 10, 21): “Só te falto uma coisa: vai, (...) e terás um tesouro no céu, depois vem e segue-me”.
Não tenho mais nem mesmo a coragem de citar o Evangelho por inteiro. Tenho-o suspenso entre os meus parênteses, as minhas paredes, as minhas coisas, as minhas ideias, ou ideologia, os meus aparelhos, talvez por um certo medo e incerteza na momento de interpretá-lo, talvez porque as prioridades do momento, mesmo eclesiais, são outras. Ou talvez porque não me fale mais como no início, na beira do mar da Galileia. De fato, a viagem de moto, ontem, a visita às famílias, suscitou em mim uma certa saudade do cêntuplo prometido por Jesus nesta terra e que, ontem, parecia ao alcance da mão: “eu tinha atravessado campos que não faziam parte de propriedades terrenas”.
Gostaria de ser como aquele médico descrito por Anton Tchecov “que carrega em si, sem muitas palavras, assobiando, por vezes, pensativo, o confluir de inumeráveis sofrimentos. Ele entra e sai daquelas coisas e sabe que pouco pode fazer por aquelas pessoas, e acredita bem pouco na sua arte mesma, mas se assenta à cabeceira de alguns e fica ali. Ele carrega consigo o único remédio verdadeiro: o olhar inconfundível de quem está pronto para vigiar conosco”.
Entrava em algumas daquelas casas pela primeira vez. Chuan, um dos meus colaboradores, me acompanhava. Era um dos meus primeiros alunos, quando, ainda no início, abríamos o albergue de Prey Veng. Outubro de 2005. Agora, é um professor de computação, mas me disse que quer escrever algumas páginas sobre certos lugares comuns e mentalidades difundidas nos vilarejos que, frequentemente, são o principal obstáculo para o crescimento humano das novas gerações. Já leu o livro de Dom Giussani, Educar é um risco, em Khmer, de forma que a sua cópia está toda riscada e anotada. Ele mesmo sofreu do pessimismo difundido pelas palavras dos anciãos, o animismo resignado, os limites restritivos da doutrina do Karma, onde ainda não tem espaço para aquela experiência que São Paulo chama “a potência da sua ressurreição”. Imediatamente depois da visita, eu o vi anotando intuições, imagens, num pedaço de papel porque, segundo ele, “quando se fala com os anciãos, é preciso usar aquelas metáforas que podem abrir uma brecha, do contrário, se calam”. Na primeira leitura do domingo passado (Ex 37, 12-14), em uníssono com a página do Evangelho de João, Deus prometia abrir os nossos sepulcros, prometia o dom do Espírito e, em Jesus, gritava em alta voz: “Lázaro, vem para fora!”. Ontem a visita, hoje a riqueza das Escrituras, “a potência da sua ressurreição”. Agora, tudo é mais claro.
Graças a Deus, a escola nos expõe continuamente a estes contatos diretos, às vezes extenuantes, e é maravilhoso e exigente tentar acompanhar os jovens e suas famílias, porque elas são o pano de fundo sempre incerto, instável, fragmentado, como fragmentados são os vínculos em regime de sobrevivência, de suas vidas. “A incerteza nos relacionamentos”, diz Giussani em O senso religioso, “é uma das doenças da nossa geração: é difícil a certeza nos relacionamentos começando da família. Vive-se com enjoo, com tal insegurança na trama das relações, que não se controi mais o humano”.
Estamos ajudando um bom número de jovens a estudar, a estudar bem, mas o verdadeiro problema é a total ausência de uma política ocupacional. Há muitos interesses estrangeiros e, portanto, o benefício de todos os investimentos é orientado não para dentro, a não ser quando é para uma oligarquia restrita, mas para o exterior. Portanto, a família acrescenta à incerteza sobre o presente, a incerteza sobre o futuro, sobre o trabalho. Aquilo que agora eu posso fazer é visitar mais vezes estas famílias, não apenas oito, muitas mais, sem pressa. Peço ao Senhor que me seja concedida outra oportunidade, outro tempo na terra do Camboja. E peço, talvez mais importante do que o tempo, aquilo que Leopardi, no Zibaldone, chama “o olhar mais vasto”. Como ontem, para ver Deus que “infundia o seu amor nas proximidades de um pântano distante” (P. Kavanagh).
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