O grande discurso que Bento XVI proferiu no Bundestag é outro marco milenar naquele percurso espinhoso para “alargar a razão”, que começou precisamente na Alemanha (também num dia de setembro, em 2006) na Universidade de Regensburg. No Parlamento alemão, o Papa foi ao cerne de um problema que não só diz respeito aos políticos e aos homens de Estado, mas a cada um de nós, naquilo que fazemos no cotidiano: como se reconhece aquilo que é justo? Como se aplica o direito? O que quer dizer a inteligência do direito? Se o poder se separa do direito, da exigência de justiça, então é inevitável a consequência descrita por Santo Agostinho no De civitate Dei (é uma citação que já consta na encíclica Spe salvi): “Tiras o direito e então o que é que distingue o Estado de uma grande quadrilha de salteadores?”. A experiência terrível do nazismo, precisamente na Alemanha, fez – como outras ditaduras horríveis – desta possibilidade que é sempre ameaçadora uma trágica evidência histórica.
A tarefa fundamental do político continua a ser servir o direito e combater o domínio da injustiça. Mas essa tarefa não se pode reduzir, nas democracias modernas, ao critério das maiorias parlamentares ou só à exatidão funcional, mas necessária, dos processos.
Bento XVI tinha já abordado este tema, retomado também na ONU (abril de 2008), naquele discurso que acabou por nunca ser pronunciado na Universidade Sapienza de Roma (janeiro de 2008). Citando Jürgen Habermas, tinha indicado a necessidade de uma via razoável para a resolução das oposições políticas, através de um “processo de argumentação sensível para chegar à verdade”. Hoje não é de todo evidente, sublinhou no Parlamento alemão, reconhecer “o que é que agora corresponde à lei da verdade, o que é verdadeiramente justo e pode tornar-se lei”. Essa tarefa nunca foi fácil, mas torna-se hoje, devido à complexidade e às contradições da nossa sociedade, particularmente penosa.
Com o exemplo do rei Salomão que pediu a Deus um coração dócil para poder administrar a justiça entre o povo e saber distinguir o bem do mal (cfr. 1Re 3,9), o Papa identifica a existência de um fator objetivo, presente no indivíduo e que também o guia na busca dos critérios para a elaboração do direito. O cristianismo, desde o seu aparecimento, distinguiu nitidamente a religião do Estado (fundando assim o princípio da laicidade), não impondo nunca nem a si nem à sociedade um direito religioso revelado. Pelo contrário, remeteu-o para a natureza e para a razão, ligando-as entre si, quais verdadeiras fontes do direito, abrindo assim um diálogo fecundo entre filosofia (grega) e pensamento jurídico (romano), o que permitiu o nascimento da cultura jurídica ocidental que, ainda hoje, através da Idade Média cristã, do Iluminismo e das Constituições modernas, influencia a cultura jurídica das democracias de todo o mundo.
A relação entre a natureza e a razão, o “coração dócil” do rei Salomão, também evocada na famosa passagem da Carta aos Romanos (Rm 2,14 e s.), está agora dramaticamente em crise. A razão positivista reduziu o conceito de razão somente ao conhecimento experimental, próprio das ciências, e ao de natureza, de forma especular, a “um conjunto de dados objetivos, unidos uns aos outros por causas e efeitos” (Kelsen). Consequência desta última redução é a tese central do positivismo jurídico atual (a famosa “falácia naturalista” de Hume), para a qual entre o ser e o dever ser haveria um abismo intransponível. Uma concepção de natureza puramente funcional não consegue abrir qualquer via no direito e na justiça, que Kelsen efetivamente reduz a “um ideal irracional”. Por outro lado, se racional, num sentido estrito, é só aquilo que é experimentável e falsificável, existem outras dimensões do conhecimento que não podem tornar a estar implicadas nele, e que são, justamente, as que abrem para o fundamento do que é justo nas relações entre os homens.
O racionalismo científico sancionou a crise, aparentemente definitiva, da noção clássica do direito natural, de resto já reconhecida pelo próprio Cardeal Ratzinger, no seu diálogo com Habermas em 2004, em Munique: “É hoje considerada uma doutrina católica muito especial... e assim uma pessoa também quase que se envergonha de lhe mencionar nem que seja o fim”.
AR FRESCO. Bento XVI, no seu discurso, não pretende nem tornar a propor nem opor-se a esquemas ideológicos. Considera preferivelmente, com a sua habitual lucidez e tranquilidade, o limite da razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista, representada como um edifício de cimento armado sem aberturas, um “mundo auto-construído”, em que o humano, com as suas exigências originais, sufoca. Mas como escancarar as janelas para “ver de novo a vastidão do mundo?”. Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem resvalar para a irracionalidade? Como é que a natureza pode aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações?
Para responder, a estrada que o Papa escolheu surpreendeu todos pela sua genialidade e frescor. A valorização do movimento ecologista, muito significativo na Alemanha a partir dos anos Setenta, que levou uma “aragem” à arena cultural e política, trouxe à atenção de todos “que a matéria não é só um material para nós dispormos dele, mas que a própria terra traz em si a sua própria dignidade e nós devemos seguir as suas indicações”. Regressa aqui, de forma inesperada, um tema que é muito caro ao Papa, o da racionalidade da matéria e do mundo (basta pensar nas diversas intervenções sobre a evolução e sobre a ciência), uma linguagem que pode ser descoberta e acolhida pela razão e que remete para o Logos, para a Razão criadora, para a Razão-amor.
Reaprender a ver os sinais e a ouvir a linguagem da natureza abre à redescoberta da “ecologia do homem”, que possui uma natureza que deve respeitar e não manipular: “O homem não é só uma liberdade que se cria por si só”. A verdadeira liberdade é respeitar e reconhecer a própria natureza que é dada, não o produto da nossa própria liberdade autônoma.
Deixar-se atingir, espantar por este “ser dado” reabre o caminho à reflexão “se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressupõe uma Razão criativa, um Creator Spiritus”.
O BALUARTE MAIS PODEROSO. É sobre a convicção da existência de um Deus criador que os direitos inalienáveis do homem, a sua dignidade inviolável e a igualdade de todos os homens perante a lei encontram o seu fundamento. Estes conhecimentos da razão podem ser ignorados, mas ao preço de cercear as raízes da nossa convivência, da nossa cultura – que nasce do encontro entre Jerusalém, a fé em Deus de Israel, Atenas, a razão filosófica dos Gregos, e Roma, com o seu pensamento jurídico – e, sobretudo, de renegar as evidências do “coração dócil” ou, como nos ensina Dom Giussani, da experiência elementar, própria de todos os homens.
Bento XVI mais uma vez nos surpreendeu, ao indicar-nos o ponto a partir do qual é possível recomeçar sempre a aventura do humano, desde as relações interpessoais à convivência civil, com todos os seus conflitos e problemas: desde o coração, critério objetivo, que por natureza o homem possui, e que exprime, com as suas evidências e exigências originais, a abertura da razão à totalidade do real. É no coração que vibra, irredutível, a exigência elementar de justiça que, como escreveu Julián Carrón na introdução ao volume Esperienza elementare e diritto, “todos trazemos dentro de nós e que constitui o baluarte mais poderoso contra todas as tentativas de poder”.
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