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OS FATOS

O que é o “testemunho cristão”?

por Alessandra Stoppa
12/01/2016 - Entrevista com o teólogo espanhol Javier Prades que conta as descobertas que fez nos seus estudos. Uma ajuda a entender o que permite que um encontro mude a vida

Quando saber e crer se opõem, só se acredita no que não se vê nem se sabe e o “viram e acreditaram” é um escândalo. A modernidade nega o valor do testemunho em nome de uma razão absoluta e de uma liberdade emancipada de toda e qualquer autoridade: confiar não é conhecer, é uma obediência que não se coaduna com o homem. Mais ainda se aquilo de que se dá testemunho é um encontro histórico, pessoal e livre que tem uma pretensão universal de razão e verdade. “Quem tenta difundir a fé entre os homens de hoje”, escrevia Joseph Ratzinger na sua Introdução ao Cristianismo, pode deparar-se com o “poder desmesurado da incredulidade” e “a impossibilidade de compreender e ser compreendido”.
Então, que ajuda pode trazer aos anseios das nossas sociedades comunicar o cristianismo? E como comunicá-lo? Fomos perguntar ao teólogo Javier Prades López, reitor da Universidade San Dámaso de Madri e autor de Dar Testimonio. La Presencia de los Cristianos en la Sociedad Plural (Ed. Bac, p. 504), uma investigação antropológica, filosófica e teológica, fruto de anos de estudo sobre o testemunho cristão. Um tema absolutamente nada inócuo, que põe de novo seriamente em discussão a relação entre razão, verdade e liberdade.

Por que o testemunho é importante no mundo atual?
Olhando como homens que vivem com os outros nas nossas sociedades contemporâneas – isto dito por um ocidental europeu –, vemos que há tensões não resolvidas. Uma das principais é a que existe entre a aspiração à unidade, que se reflete, por exemplo, na globalização, e a defesa das características de uma vida comunitária, como faz o multiculturalismo. São fenômenos que pedem para ser observados com atenção para tentar dar-lhes uma interpretação.
A exigência de universalidade é inegável, como se vê na aspiração a que seja garantido a todos a igualdade, a justiça, o desenvolvimento econômico, a capacidade de comunicação… Mas muitas vezes isso corre o risco de ser impessoal, perdendo outras dimensões da experiência humana como, por exemplo, a proximidade de uma relação de pertença que permite assegurar a própria identidade: a língua, a família ou a própria cultura… Esta também é uma exigência constitutiva. O problema, então, não é eliminar uma ou outra procurando soluções parciais. Parece-me mais interessante um caminho que tente perceber de que modo a experiência humana elementar engloba ambas as exigências: o valor de cada indivíduo, em qualquer parte do mundo, sem discriminação alguma; e ao mesmo tempo o valor de uma dimensão comunitária, de pertença, que não mortifica o indivíduo mas, pelo contrário, o faz crescer. Esta análise é dinâmica; não é uma teoria, descobre-se vivendo. Em ação, o eu manifesta a sua exigência de universalidade e a sua exigência de afirmar os vínculos que lhe permitem ser realmente ele mesmo.

Que tem a ver o cristianismo? Qual pode ser a sua contribuição?
Uma experiência como a cristã, se for fiel à sua natureza, mostra a sua conveniência humana, porque não mortifica nenhum dos dois polos da tensão: há uma pertença – a Cristo e à Igreja – que torna universal a experiência do homem e ao mesmo tempo potencializa a autoconsciência. A fé nos permite experimentar que o eu tem um valor infinito, sem nenhuma submissão a esquemas que o possam mortificar; e ao mesmo tempo que a sua plenitude é pertencer, até dar a vida pelos outros. Uma experiência cristã vivida é a melhor contribuição ao caminho das nossas sociedades.

O paradoxo do mundo ocidental é que as duas grandes conquistas da modernidade – razão e liberdade – não conseguem permanecer juntas.
Uma razão sem interferências, que para cumprir a sua obrigação tem de ser absolutamente neutra, é precisamente um dos padrões da modernidade. E avança junto com a longa luta pelas liberdades e direitos dos indivíduos, levada até ao extremo de uma capacidade de escolha sem limites. A definição mais recente da liberdade é a de uma autonomia absoluta. Mas estas duas dimensões, razão e liberdade, não se conseguem combinar em unidade. Por isso trata-se de tentar recuperar uma imagem do homem onde a razão não seja ab-soluta, desligada de tudo o resto, e a liberdade não seja pura vontade de hegemonia e de autoafirmação. A plenitude da liberdade implica abrir-se, acolher, abraçar. Neste sentido, é decisiva a contribuição da testemunha: uma comunicação que se oferece à liberdade como proposta razoável.

Sobretudo hoje, que se costuma negar um acesso humano à verdade, o que aprendeu sobre o testemunho cristão?
Em primeiro lugar estou mais ciente da sua assombrosa novidade: Deus escolheu um método que valoriza a estrutura relacional da comunicação da verdade entre os homens, usando-a para nos oferecer uma realidade inimaginável. O testemunho de Jesus vai sempre acompanhado de sinais e milagres – com o dom do Espírito – justamente para tornar possível e razoável a comunicação de uma realidade que transborda todas as categorias humanas, e também religiosas, inclusivamente as do povo de Israel. Isso é o que aconteceu também a nós: um encontro nos obrigou a mudar o rumo da nossa vida, até mudar também a forma de pensar. De outro modo, não seria Deus. Mas sempre como comunicação que convida a liberdade a uma adesão razoável.

Como se dá o testemunho cristão? Qual é a sua natureza?
Sobretudo, identifica uma característica própria da revelação e da sua transmissão: a fé é um ato testemunhal que acolhe na liberdade a verdade livremente revelada pelo Espírito de Deus. O testemunho converte-se para o seu interlocutor em ocasião de um encontro com Cristo vivo, com a verdade de Deus feita carne, com o absoluto na história. E toda a circunstância é ocasião para este encontro. O testemunho tem um fundamento sacramental (o Batismo); é sempre precedido de uma iniciativa divina (chamamento, vocação); portanto, é uma resposta; não se pode reduzir à “autobiografia” da testemunha, porque remete sempre para outra realidade, para Deus, a partir de fatos históricos; finalmente, implica a totalidade da pessoa: intelecto, afeto e vontade, dado que é simultaneamente ato cognitivo e ato moral. E é um ato único de gesto e palavra: o surpreendente acontecer da palavra pronunciada.
Ser testemunha de Cristo exprime o ser em Cristo. Todas as dimensões do viver cristão – a liturgia, a koinonía, a diakonía e a didaskalía – têm a capacidade de transmitir o mistério de Deus. Depois há atos que, na tradição da Igreja, se consideram especificamente “testemunho”. O vértice é o martírio. A modalidade de confissão da fé até ao ponto de dizer: se não posso comunicar-te a verdade, prefiro que me mates.

Face aos desafios de hoje, podemos ter a tentação de pensar que o testemunho de “pessoa a pessoa” é insuficiente. Será que isso se deve a não estar claro o alcance cognitivo do encontro cristão?
Nenhuma forma de revolução sociopolítica pode substituir o primado insuperável da pessoa, ao qual se chega pelo encontro com Cristo por meio da Igreja. A concepção testemunhal da fé é, portanto, um critério de discernimento na hora de avaliar as formas de participação na vida social. Tanto na ação individual como nas iniciativas comunitárias, a lei desta comunicação é o amor: só quem doa a si mesmo para afirmar o outro pode converter-se em ocasião de um encontro que muda a vida, pode abrir o espaço que vincula o outro com a verdade de Deus.

Por isso o vértice é o mártir.
O mártir dá tudo, até entregar-se a si mesmo ao outro. Mesmo quando o outro o mata. O testemunho é gratuito. Também quando não se chega a derramar sangue, há uma sobreabundância, um “mais” que abre um espaço de diálogo, que suscita um desejo de encontrar-se, que comove, que dá início a um processo. Comunico ao outro o conteúdo da fé, sem renunciar a nada, e isso será acolhido quando acontecer no outro um movimento “rumo a”, um interesse. A centelha gera uma pobreza de coração que dispõe a acolher a novidade percebida. Por isso Paulo VI dizia que não mais haverá mestres se não houver testemunhas.

Pode-se dizer que o testemunho coincide com a conversão.
É o “renovar a mente” dessa passagem da Carta de São Paulo aos Romanos onde creio que está a chave sintética de interpretação do testemunho: “Por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual. Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito.” Josef Zverìna explica isto muito bem na sua Carta aos Cristãos do Ocidente. Pensar que o testemunho é simplesmente o “bom exemplo” é uma redução, entre muitas outras. O testemunho é o oferecimento de si. Oferecimento total de si: “Ofereçais os vossos corpos...”. É isto o testemunho: todos os dias, em cada instante, diante de todos ou quando você está sozinho no seu escritório. O que significa dar testemunho a Deus? Uma vida vivida como oferta. Que nasce do Batismo que se vive no mundo, que se vive diante de todos, que implica tudo, até o dom de si. O “culto” de que fala São Paulo não se limita a um culto no templo, separado da vida. O culto cristão é eucarístico: dilata o gesto sacramental até oferecer a vida. E, como diz São Paulo, é razoável, conveniente para todos. E assim reabre-se tudo…

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