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OS FATOS

O quinto filho, o "quinto evangelho"

16/06/2016 - Padre Alberto Caccaro, missionário do PIME, voltou ao sudeste asiático onde já havia transcorrido dez anos. Aqui conta a história de Sokhim, pobre mãe cambojana que não quis abortar. E a relação desta mulher com o gênio de Van Gogh...
Padre Alberto Caccaro no Camboja.
Padre Alberto Caccaro no Camboja.

“A mãe era uma grande arca / eu flutuava na respiração / quando o tempo meu / estava chutando / para começar” (Le giovani parole, Mariângela Gualtieri).

Toda vez que visito as nossas escolas infantis, eu fico surpreso e fascinado pela graça das crianças. Correm ao meu encontro como se fosse o pai delas e me fazem uma festa que não mereço. Correm como se fossem tantas perguntas esperando uma resposta. Implicitamente me perguntam acerca do sentido da vida, do amor, do tempo, do ser amigos, do caminhar juntos, do mistério da dor e da morte. Não posso responder apelando para os valores; cômodo demais, demais abstrato. São ainda crianças, pequenas e por isto chegadas à terra. Portanto recomendei às professoras que respondam a estas perguntas de mansinho: com sua presença e pontualidade na escola, com a limpeza das salas e com as aulas bem preparadas, com o material necessário a estimular-lhes a fantasia e a criatividade e com um canto novo para cantar no meio das paredes de casa. Na realidade acrescentei também que só Deus pode responder àquelas perguntas. Que só Deus é digno da liberdade delas. Nenhum outro. Merecem Deus, nada menos. Sinto a urgência do anúncio cristão, sinto que nenhum destes pequenos deve se perder.

Escrevo esta carta, pois me sinto a obrigação a contar a história de uma mãe cristã que trabalha na roça perto de uma das nossas escolas. Chama-se Sokhim, tem 41 anos e cinco filhos, dos quais o mais novo, Makará, tem um ano e meio, e se tornou para mim como um quinto evangelho. O marido, que está frequentemente bêbado, e as dívidas que crescem de mês em mês a uma taxa de juros de 10%, obrigaram Sokhim a afastar-se para tentar equilibrar as contas familiares, deixando os quatro filhos em casa. Era o único modo para que também o marido pudesse trabalhar e parasse de beber. Haviam comprado um micro-ônibus de terceira, quiçá de quarta mão, e transportavam passageiros de uma cidade para outra. O marido ao volante e ela a administrar os clientes, o sobe e desce de pessoas e de bagagens, até o dia do parto. Após a notícia da chegada do quinto filho, todos, parentes e vizinhos de casa, haviam começado a sugerir o aborto. Aquele trabalho era bastante cansativo. Para a compra do micro-ônibus contraíram dívidas. Os quatro filhos em casa constituíam uma não leve responsabilidade. Um quinto chegando teria só complicado a questão, mas nunca Sokhim teria aceitado a perspectiva do aborto. Enquanto me contava a sua história eu sentia a potência da Graça.

Creio firmemente e “sei por certo, [que] não há quietude mais justa / de um ventre materno, / dentro com efeito, cresce o paraíso em carne e ossos“ (La terra più del paradiso, Roberta Dapunt). Releio estes simples versos de uma poetisa italiana, infelizmente pouco conhecida, e entendo a vida de uma mulher e mãe cambojana, ainda menos conhecida! “Isto escrevo – continua a poetisa – para as minha filhas que por longo tempo habitaram dentro de mim. / Come um sacrário eu as conservei, / tão sagrada é para mim a vida delas, / que não elas são minhas, / mas eu pertenço a elas (…)”. Mesmo nos dias do parto, no hospital, aproximavam-se de Sokhim outras pessoas que conheciam a situação dela, dispostas a pagar para ter o seu neném. Quinhentos dólares foi a primeira oferta, desde que pudessem obtê-lo. Depois, notando a resistência de Sokhim, passaram para setecentos dólares, acompanhando a oferta com discursos de desencorajamento: “Você já tem quatro filhos e um marido sempre bêbado”, “tem muitas dívidas e este dinheiro poderia ser-lhe útil”, porém nunca Sokhim teria deixado levar o seu filhinho por dinheiro. Após o nascimento, o pequeno Makará começou a ter problemas de saúde. O trabalho mantinha a mãe longe de casa e durante meses o amamentava apenas uma vez ao dia. Estava atarefada a correr com aquele micro-ônibus, a controlar as dívidas, mas também o marido que, inescrupuloso, gastava com bebidas tudo aquilo que juntos ganhavam com dificuldade. A insistente visita em casa dos credores que esperavam ser pagos, as humilhações e as ofensas por estar sempre “em falta” com o mundo inteiro, a irresponsabilidade do marido alcoólatra, ameaçavam seriamente a saúde psíquica de Sokhim. Contudo, sempre avante! Com um quinto filho, um quinto evangelho. Se eu não escrevesse semelhantes histórias, se não contasse acerca de Sokhim, sentir-me-ia conivente, se não até mesmo um funcionário de um sistema que compra e vende, aluga e comercializa a vida. Ao contrário, eu escrevo, como “um estenógrafo da Natureza”, como diz o psicanalista Mássimo Recalcati em um livro seu sobre Van Gogh. Escrevo o que a Natureza me diz por meio da vida desta mãe.

A Natureza não compra e não vende, não faz comércio de seus filhos. Não submete a vida ao dinheiro. A Natureza diz “a Natureza das coisas”. A Natureza de uma mãe que, simples e pobre, fala a “língua-mãe”, e grita seu pertencer à terra, sua verdade de mãe mesmo quando outras soluções pareceriam mais convenientes. Que relação tem, então, Sokhim com as poetisas, minhas companheiras de viagem? Que tem a ver esta mãe, que vive em um vilarejo perdido e pobre do Camboja, com o grande Van Gogh em cujas obras “há sempre alguma coisa daquilo que me disse aquele bosque ou aquela praia ou aquela figura”, come diz ainda Recalcati? Pois bem, há um sentir que os une, há uma nobreza de espírito que os distingue, há uma esperança que não tem nada a ver com os mercados deste mundo, mas com o serem eles “estenógrafos da Natureza” porque nos dizem a Natureza das coisas. Aquilo que a Natureza faria. Em Sokhim reencontro o mesmo esforço criativo, o mesmo estudo sobre a potência da cor que impeliu Van Gogh a pintar a luz, a própria cor da luz. E se para Sokhim este esforço significou “dar à luz” o seu quinto filho, para Van Gogh significou a busca daquela “alta nota amarela” que lhe permitiria pintar nada menos que a luz do sol. Porque “perder o vínculo com a Natureza” teria significado para Van Gogh “afundar-se na mentira”.

Por ocasião de uma das minhas visitas à escola as professoras haviam preparado os meninos com algumas perguntas. O primeiro deveria ter me perguntado de qual país eu vinha, mas na realidade, errando, me perguntou onde está a minha casa. Foi uma pergunta surpreendente e muito mais difícil do que a prevista. Respondi apressadamente e disse: “Aqui”. “Aqui com Sokhim”, acrescento agora. Até quando existirem mães como ela, que nada têm a invejar aos poetas ou aos pintores como Van Gogh, então existirá sempre a cor da luz. Todo dia cada um recomece a partir de seu “aqui”.

Padre Alberto Caccaro, Kompong Cham (Camboja)

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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