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OS FATOS

“É desumano viver sem pedir o infinito”

Entrevista com Mauro Lepori - por Maria Serrano
19/05/2017 - A vocação, a vida monástica e a responsabilidade. Em uma entrevista para El Mundo, o abade geral da Ordem dos Cistercienses, padre Mauro-Giuseppe Lepori, fala de si. E da beleza “capaz de regenerar o mundo”

A Ordem dos Cistercienses segue a regra de São Bento. A palavra “regra”, hoje, parece opor-se à liberdade sem limites que acreditamos ter conquistado no Ocidente. Por que viver obedecendo a uma regra?
A Regra de São Bento, assim como as Regras de outros pais ou mães da vida religiosa, exprime fundamentalmente o desejo de transmitir aos outros uma experiência de vida, a experiência de um caminho que levou São Bento a viver com plenitude sua humanidade, seguindo Cristo, escutando o Evangelho e valorizando uma tradição monástica que remonta aos Padres do Deserto. Bento exprime um amor pela plenitude da vida dos outros. Uma Regra, quando é fruto de uma experiência, não mortifica, mas exalta a liberdade. O que o homem contemporâneo perdeu é a consciência de que a liberdade não é maior quando pode fazer o que quer, mas quando escolhe o bom, o belo, o verdadeiro, mesmo quando essa escolha comporta um sacrifício de si para um bem maior da vida e da própria liberdade. No fundo, a obediência a uma Regra é livre quando se vive desejando aquilo que vale mais do que a vida. A surpresa é que justamente isto nos permite viver com plenitude.

Quando e por que o senhor decidiu se tornar monge? E por que escolheu entrar na Ordem dos Cistercienses?
Eu estudava Teologia com a perspectiva de me tornar um padre diocesano. Depois, fui algumas vezes à abadia cisterciense de Hauterive para estudar com mais tranquilidade para uma prova de um professor severo. E foi amor à primeira vista: apaixonei-me por aquela experiência de vida que, antes, me assustava. Porém, não se tratou tanto de um encontro com um Mosteiro, mas com Cristo que, ali, vinha ao meu encontro e me enchia de alegria e de amor por Ele e por todos. Era como chegar a um compromisso já marcado entre mim e Deus e do qual eu, até aquele momento, não sabia o dia e a hora. Por isso, não tive a impressão de ter escolhido a vocação, a vida monástica ou a Ordem dos Cistercienses. Senti-me escolhido por um Outro para viver essa experiência com Ele.

A vocação é sempre um chamado claro, luminoso e concreto, ou permanece sempre, no fundo, uma sombra de dúvida?
Nunca duvidei da vocação, porque a vocação, para mim, foi o dom de um Outro, e nunca duvidei da escolha de Deus. Muitas vezes pensei que Deus não tinha escolhido a pessoa certa para ser monge, abade ou, depois, abade geral. Mas quem sou eu para julgar as escolhas de Deus? A sombra que sempre acompanha o caminho da vocação está mais em nós, na nossa fragilidade, na nossa pouca fidelidade, na pouca correspondência à graça do Espírito Santo. Mas não é uma dúvida sobre a vocação, é mais um sentimento de contrição que, porém, ajuda a viver a vocação com humildade, com uma abertura mais simples à obra de Deus em nós e através de nós.

Como é a rotina de um monge cisterciense?
Cada Mosteiro tem suas observâncias e as atividades podem variar. No meu Mosteiro de Hauterive o dia é dividido entre oração, trabalho e descanso. A oração do Ofício Divino, que cantamos juntos, permeia o dia das quatro da manhã até às oito da noite. Depois, há momentos pessoais de oração e meditação da Palavra de Deus. O trabalho ocupa a manhã e a tarde e vai da atividade agrícola à acolhida dos hóspedes, e a todos os trabalhos necessários para a vida da comunidade. É uma vida, no fundo, onde se “exagera” o tempo que se passa em oração e o tempo que se passa com os irmãos, para que cresça em nós, e também no mundo, a comunhão com Deus e a comunhão fraterna.

Que sentido tem, hoje, uma comunidade monástica?
É um sinal de como o Evangelho de Cristo pode conduzir todo homem a uma plenitude de humanidade, justamente fazendo-nos crescer nas duas grandes dimensões do amor crucificado de Cristo: a comunhão com o Pai e a comunhão fraterna com todos. Mas não é um sinal que aparece, que brilha ou chama a atenção. É mais uma semente do que um sinal visível. É uma realidade escondida, mas que, se é verdadeiramente real, “se sente”. Pelo simples fato de existir, uma semente é um sinal de vida, de fecundidade, um bem para todos, e quanto mais está escondida debaixo da terra, mais a vida que contém dará frutos para todos.

Num determinado momento histórico, as ordens religiosas formaram a Europa. Passa também através delas a resposta para entender de novo o que é a Europa e para onde se encaminha?
O que deu forma e beleza à Europa foi, antes de mais nada, o cristianismo. As Ordens Religiosas que melhor colaboraram com essa formação foram aquelas cujos fatores e valores fundamentais do Evangelho tornaram-se experiência cotidiana, encarnada na vida de todos. Foram as Ordens que perpetuaram a experiência de vida fraterna e de relação com Deus suscitada pelo Espírito Santo na primeira comunidade de Jerusalém depois do Pentecostes. Todo carisma, na Igreja, que, de maneiras diversas, renova esta experiência, dá forma a um mundo novo, ou melhor: um mundo renovado, redimido, ou seja, tornado novo pela morte e ressurreição de Cristo. Toda civilização sempre precisou dessa renovação, que é profundamente humana, mas, ao mesmo tempo, um milagre, uma obra de Deus no mundo. A Europa, assim como todo o mundo moderno, vive uma profunda crise de identidade, porque não faz experiência de uma realidade que justifique uma esperança no futuro. Teme-se que o futuro seja estéril porque não se veem as sementes que já estão brotando debaixo da terra. Eu percebo essas sementes, as encontro, e não apenas na vida religiosa, muito pelo contrário! São pequenas? São poucas? Não importa! Uma única semente pode conter uma floresta.

Onde se fundamenta a novidade da mensagem do Papa Francisco e por que atrai tanto os crentes quanto, sobretudo, os não crentes?
Talvez exatamente porque transmite uma esperança que não se fundamenta em uma utopia ou em uma ideologia, mas na experiência de uma realidade que existe, que está aqui, mesmo se pequena e aparentemente insignificante como uma semente. Paradoxalmente, o que, no Papa Francisco, atrai também os não crentes é a sua fé, a sua vida cheia de certeza da presença e do amor de Cristo. Uma certeza que o torna livre, que lhe permite encontrar todos e tudo sem medo. E propõe Cristo como uma bela amizade com Deus e, justamente porque é bela para ele, deseja compartilhá-la com todos. E todos percebem que a sua proposta não é um cálculo, uma pretensão sobre os outros, mas simplesmente o desejo de compartilhar algo que é grande demais para guardar apenas para si. Os outros Papas também eram assim, mas a confiança universal em Francisco é uma surpresa do Espírito.

O senhor veio à Espanha para falar sobre o tema do Encuentro Madrid, “Feridos pela Beleza”. Por que a beleza nos fere?
A experiência da beleza nos chama à origem do nosso ser, ao ato criador de Deus que, como lemos no livro dos Gênesis, ao criar cada coisa Ele mesmo se enchia de maravilha e dizia: “É algo muito belo e bom!”. Na origem da humanidade há a ferida da negação deste dom, aquilo a que chamamos de pecado original. É como se toda beleza verdadeira, natural ou artística, despertasse em nós a nostalgia de um dom imenso que negamos.

Somos todos feridos pela beleza, mesmo sem termos consciência disso?
Sim, somos todos feridos, mas há como uma anestesia cultural que quer nos impedir de sentir a dor desta ferida do coração. Há muita falsa beleza que torna o homem moderno aparentemente insensível à beleza, ao amor e à verdade. Por exemplo, quanto barulho nos atordoa para que não fiquemos em silêncio para escutar a música que evoca o dom original da beleza de Deus, da sua amizade.

Existe a Beleza com letra maiúscula, objetiva, transcendente?
É a Beleza original, ou seja, o Ser no qual toda a Beleza está contida e que, ao criar, decidiu irradiar sua Beleza nas criaturas, e criou o homem à sua imagem e semelhança, ou seja, belo como Ele. A Beleza original coincide com o Amor que a irradia, que a doa aos outros.

Na atual situação que atravessamos, de guerra, terror, crise e medo, não parece “pouco urgente” falar de beleza?
É urgente reencontrar justamente a Beleza original, aquela que irradia o Amor que é origem e consistência de todas as coisas e, sobretudo, da criatura humana. A guerra, o terror, o ódio fratricida são zonas de sombra onde a liberdade humana se esconde da luz amorosa da Beleza. Mas essa situação trágica do mundo nos faz entender que não se pode falar da Beleza apenas do ponto de vista estético. O mundo precisa da experiência da beleza como amor, como perdão, como misericórdia. O mundo precisa da beleza da comunhão fraterna.

Dostoievski escreveu que “a beleza salvará o mundo”. O que isso significa, concretamente, para o homem moderno?
É o que acabei de dizer. As obras de Dostoievski ilustram perfeitamente como até a condição humana mais degradada, mais pesada, pode se regenerar a partir de um ato de humilde amor que abraça a humanidade ferida.

O terror e a violência em que vivemos hoje são fruto de um vazio existencial? Se sim, qual é a origem desse vazio?
Talvez a melhor ilustração desse vazio existencial seja a situação do filho pródigo da parábola do capítulo 15 do evangelho de Lucas. Esse jovem se vê sem trabalho, sem bens, sem família, sem comida, no meio dos porcos. A origem disto é que abandonou o pai por causa de um projeto de vida voltado apenas para os próprios interesses, para o próprio prazer. Por isso, abandonou um pai que era bom e, sobretudo, era a origem da sua vida, da sua cultura, de tudo o que era enquanto homem. Abandonar quem nos gera, negar construir a vida pertencendo a uma origem, cria o vazio na vida das pessoas, sobretudo dos jovens. Mas muitas vezes não são os filhos que abandonam os pais, mas os pais que abandonam os filhos...

O vazio, a esterilidade da vida, pode ser um motor de busca, algo que nos coloca em movimento, em caminho?
De fato, o jovem da parábola, faz exatamente a experiência do vazio e da futilidade da sua vida afastada da sua origem que “voltou a si” (Lc 15,17), e decide procurar o pai. Provavelmente, se observássemos bem, veríamos que hoje muitos vivem nessa busca, frequentemente inconsciente. Somos uma sociedade de peregrinos em busca do pai perdido...

Por que o senhor acha que, hoje, vivemos negando a pergunta sobre o significado da vida? Será este o grande tabú do século XXI?
As ideologias dos últimos séculos, como o imanentismo moderno que acredita satisfazer a sede de absoluto com o hedonismo, o consumismo, o populismo e também com o espiritualismo - como frequentemente se concebe a religiosidade -, o imanentismo do “imediatamente” dos meios de comunicação modernos, distrai o homem contemporâneo do próprio coração, dessa sede de significado que normalmente inquieta o ser humano diante do limite da realidade, do limite do nosso controle sobre as coisas e os relacionamentos, do limite da morte. Pretende-se encontrar o sentido da vida sem recebê-lo de um Outro, de um Mistério que é maior do que a nossa vida. Justamente: o significado da vida se desvinculou do pedido, porque o pedimos a nós mesmos, e pretendemos encontrá-lo em algo que podemos alcançar sem pedir, sem desejar, sem esperar. O significado não é mais vivido como uma surpresa, como um dom gratuito. Basta pensar na instintividade possessiva e egoísta com a qual se pretende viver a afetividade, a dimensão física, psicológica e espiritual que nos abre ao outro como espaço de doação de nós mesmos e de acolhida do dom que o outro é para nós.

É possível realmente viver sem olhar para essa pergunta?
Não, não é possível viver sem perguntar sobre o significado, embora às vezes se consiga viver sem viver, sem estar vivos. Confesso que, olhando para as pessoas, olhando como muitos jovens aparecem em todos os âmbitos da sociedade moderna, sou tomado por um terror, porque é desumano, é monstruoso viver sem desejar o sentido da vida, sem pedir o infinito. E o que me assusta é que, aparentemente, nos contentamos com o imediato, com a superficialidade e, às vezes, com a estupidez. Mas acho que esta tentação sempre existiu e cada época mostrou seus sintomas de superficialidade no modo de vida do homem. No fundo, a partir do pecado original, quando Eva acreditou que o fruto proibido poderia satisfazer todo o desejo do seu coração e do coração de Adão, a degradação humana consistiu em acreditar que poderia se satisfazer com o imediato. Então, Deus deu ao homem o dom paradoxal da morte, quer dizer, de um limite que não podemos evitar e diante do qual a pergunta sobre o significado da vida não pode deixar de nascer. Assim como a beleza não pode deixar de nos ferir porque é um bem que nos escapa e parece destinado a acabar, a ser arrancado para sempre. Mas o fato de que exatamente dentro desta ferida, no fundo deste drama humano em que o homem parece perder tudo, Deus, a Beleza total e infinita, tenha vindo para morrer por nós, provoca a inversão de toda experiência do limite. A Cruz de Cristo é a inversão da condição humana, porque graças a ela, perder tudo se torna uma posse total e infinita. Lá onde a vida é tirada, também ao Filho de Deus, na verdade nos é doada para sempre. Desde então, o sentido da vida tornou-se essa surpresa que nenhum homem poderia imaginar, merecer, ou pedir. E esta surpresa alcança o homem de hoje do mesmo modo como alcançou todo homem, na história.

No contexto histórico, social e cultural de hoje, é possível alcançar a felicidade? É possível para todos?
Quando vou aos Países mais pobres, a megalópoles caóticas e desumanas como Addis Abeba, São Paulo, Saigon ou La Paz, parece-me impossível que naquelas condições e naquela dureza de vida seja possível ser feliz. Mas se olho bem, se olho além das aparências que escandalizam alguém abastado e intelectual como eu, infalivelmente percebo que também aquelas situações, e talvez sobretudo elas, são repletas de encontros, relacionamentos humanos, diálogos de amizade, sorrisos, e gestos de compaixão e, então, devo render-me à evidência de que a beleza das belezas, que é o amor, a comunhão, é um acontecimento invencível, inextirpável, e sei e acredito que misteriosamente tem sempre a força de regenerar o mundo, porque o amor é a verdadeira Beleza de Deus.

Onde o senhor encontra paz?
Tenho a impressão de que não sou eu que encontro a paz, mas a paz me encontra. Um pouco como a ovelha perdida que não encontra, ela, o bom pastor, mas é encontrada por ele. Essa consciência, que seguramente foi educada em mim pela vida monástica no carisma de São Bento, ensinou-me a parar, a fazer silêncio, a me expor à busca do Bom Pastor que percorre montes e vales para me dar a paz. E quando Ele vem, e a doa a mim, eu sei que não posso guardá-la só para mim. A paz nunca é um bem individual: é para todos. Senão, não é verdadeira. Melhor continuar inquietos, mendigar a paz, do que recebê-la sem transmiti-la. A experiência que sempre fiz é que a porta para a nossa paz com Deus e em Deus é a reconciliação com os irmãos. É exatamente como a beleza: quanto mais é compartilhada, mais resplende. Não é à toa que na Bíblia a pomba é, ao mesmo tempo, o símbolo da beleza e da paz.

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