Na frase famosa de Nabokov – lembrada recentemente por Anthony Lane, na “The New Yorker” – o que separa o cômico do cósmico é apenas uma letra (no inglês, claro – em português, um acento empresta mais uma diferença). Fui lembrado dessa ironia ortográfica ao procurar opiniões de pessoas que eu respeito sobre o melhor filme que vi desde… bem, desde que… bom, a verdade é que eu não sei se esse é um dos melhores filmes que eu já vi na vida, mas é, com certeza, um dos que mais mexeram comigo desde, hum, desde… Eu ia falar “Ondas do destino” – ou “Dogville” –, mas a verdade é que eu não me lembro de nenhum filme que tenha mexido tanto comigo – um filme que, desde que eu o assisti (na última quinta-feira), eu acordo, penso nele, e só aí eu começo meu dia. Talvez eu tenha dado pistas erradas… Não estou falando de “Melancolia” – o novo trabalho de Lars Von Trier (que também é muito bom). O filme que me deixou tão perturbado chama-se “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick.
Tenho perfeita consciência de que, apenas ao ler isso, algumas pessoas que tiveram contato com esse filme façam o mesmo que fizeram ao se entediar com o que estavam vendo na tela – e saiam da sala (no caso aqui, parem de ler). Não importa… Este espaço é meu – e ao contrário do que muita gente pensa, eu estou aqui menos atrás de números de popularidade, mas sim em busca de afinidades com a minha maneira de ver o mundo – ou, mais especificamente, como eu vejo o mundo com a ajuda da cultura pop. Por isso, este é um texto para quem não assistiu ao filme mas quer mais uma pista sobre as razões de ele criar tanta discussão (foi o grande vencedor de Cannes este ano – só lembrando); e também para quem viu “A árvore da vida” e saiu, se não com a mesma inquietação que eu, pelo menos com um modesto questionamento (que seja) sobre o que pensar de um filme que, para contar a história de um menino entendendo o que é ser adulto em Waco (Texas) nos anos 50, precisa explicar algo ligeiramente mais complicado – que é a própria história do universo (que passa, inclusive, pela era dos dinossauros – eu não estou brincando)… Se for o seu caso, vamos em frente.
Como eu dizia, deparei-me com o jogo de palavras de Nabokov (“cômico” e “cósmico”) ao procurar o que pessoas cujo olhar sobre cinema eu gosto e confio haviam escrito sobre o filme. Anthony Lane, claro, é um deles. Assim como David Edelstein, da “New York” – que mesmo não tendo adorado “A árvore da vida”, termina sua resenha recomendando que todos assistam, nem que seja para decidir se ele é “ridiculamente sublime ou sublimemente ridículo” (de minha parte, claro, fico com a primeira opção, como vou deixar ainda mais claro hoje). Geofrey O’brien, na “New York Review of Books” talvez seja o crítico que vai mais fundo no último trabalho de Malick, remexendo nas suas implicações filosóficas, religiosas, de estilo, e até pessoais. Mas foi A.O. Scott, no jornal “The New York Times” que justificou com as melhores palavras a estranheza que sentimos ao final da projeção.
Usando como referência clássicos como “Moby Dick” (Herman Melville) ou “Folhas da relva” (“Leaves of grass”, de Walt Whitman) – que, apesar de não terem encontrado aceitação universal na época em que surgiram (e podem parecer, até hoje, inacabadas, brutas), “apóiam-se perpetuamente no futuro, empurrando seus leitores a um novo horizonte de compreensão” –, Scott defende que a experiência de ver esse filme é mais ou menos como a de ler esses livros: “Assistir a ‘Árvore da vida’ é, por analogia, participar da sua confecção”. Seria até possível editar alguma coisa – cortar um trecho, dar uma enxugada em determinada cena… Mas, argumenta o crítico triunfante, “a imaginação vive para o risco, inclusive o risco da incompreensão”… Será que esse último trabalho de Malick faz algum sentido?, pergunta ele finalmente. E responde: “Não posso dizer que sim. Mas desconfio de que em algum momento, entre o hoje e o Dia do Juízo Final, ele vai fazer”.
Eu prefiro não esperar até lá. E o que vou apresentar aqui é uma defesa apaixonada de
“A árvore da vida”. Sei que não vou fazer muitos amigos com ela – muito menos agregar novos admiradores a este blog (e ao que escrevo). Mas, insisto, este espaço é meu – e escrevo literalmente o que eu quero. E hoje eu preciso escrever disso.
Chorei em quatro momentos bem pontuais no filme. Chorei durante uma longa sequência logo depois do nascimento do primeiro filho (Jack), quando ele ganha seus irmãos e, saltando um bom par de anos, vemos as crianças crescerem numa simples rotina da mãe cuidando deles através de um dos gestos mais banais de todos os rituais familiares: um beijo na testa na hora de os meninos dormirem. Chorei na parte em que o pai, O’Brian (Brad Pitt), ensina Jack (Hunter McCracken) a lutar boxe – “Vem, me acerta”, comanda o pai, num perigoso exercício que, em vez de aproximar, afasta mais ainda as duas partes envolvidas. Chorei também no momento em que Jack faz um carinho no cotovelo do irmão – e este limpa o beijo com a mão (o gesto é repetido duas vezes). E, na reação mais inexplicável de todas, chorei numa linda sequência em que a câmera passeia por um parque cheio de crianças brincando, quando se ouve apenas a voz de Jack, em mais um trecho daquilo que parece ser uma conversa com ninguém menos que Deus: “Eu quero ver o que seus olhos vêem”… (Eu quase chorei também na cena dos dinossauros – sério – e quando o pai chega de uma viagem internacional, mas deu para segurar).
Se você não viu o filme, certamente está perdido – aliás, se você viu o filme, pode ser que esteja perdido também. Dinossauros? Waco? Deus? Brad Pitt? Bem, vou tentar organizar um pouco as ideias. A coisa mais próxima de um argumento em “Árvore da vida” é isso: Um pai (Pitt) e uma mãe (a angelical Jessica Chastain) criam seus três filhos no interior do Texas (na década de 50, como já observei) – ele, incondicionalmente frustrado com seu trabalho, ela, incontestavelmente dedicada aos filhos. Amor e ódio se misturam na relação de Jack com o pai (o mesmo vale para os outros irmãos), sufocando cada vez mais a rotina da família que, como sabemos logo no início do filme, vai perder o filho do meio quando ele completa 19 anos. Desse “tableau”, somos catapultados às vezes para o presente (quando Jack é um arquiteto que nunca completa as frases, vivido por Sean Penn). e às vezes para o passado distante. Mas distante mesmo – assim, tipo, a origem do Universo!
A explicação mais simples para essa, hum, “ponte narrativa” é a de que contar a história de uma família, por mais ordinária que ela seja, é impossível sem entender a criação do mundo. Aliás, eu diria ainda mais: que as duas histórias são a mesma coisa. Uma vez que você entende isso, “A árvore da vida” torna-se o mais belo filme já feito sobre como aprendemos a odiar e a amar – ou seja, a perceber que fazemos parte de uma família e, só assim, podemos considerar a possibilidade de criar uma. E, quem sabe, aprender a amar.
Essa explicação que dei – ou, pelo menos, tentei dar – não é boa. Eu sei. Mas nenhuma explicação jamais será. Malick fez a obra perfeita – impossível de se definir, mais ainda de criticar. Quer dizer, é até fácil você sair de duas horas e meia de uma colagem semi-subjetiva e dizer: “que filme chato”. Mas isso jamais vai soar como uma crítica – apenas um comentário breve de quem não teve a paciência (ou a generosidade) de se entregar aos desafios de “Árvore da vida”. Não deu para atravessar as longas cenas de vulcões explodindo, e ondas quebrando? Que pena… Você nunca vai entender o que elas têm a ver com a insistência de um pai em que seu filho capine a grama da maneira certa… Sem saco para ver as surradas imagens científicas de células se reproduzindo? Puxa, você jamais vai fazer a conexão entre essas pequenas revoluções do seu corpo e o prazer secreto em mexer na gaveta de peças íntimas de sua vizinha, antes mesmo de saber o que é uma relação sexual… Não tem ideia do que faz no filme uma cena em que um dinossauro enorme quase se aproveita para se alimentar de um menor que está abandonado à beira de um rio, mas decide deixá-lo em paz, depois de amedrontá-lo ao máximo? Só lamento: você nunca vai entender por completo o sentido da compaixão…
“A árvore da vida” é feito não de peças que se encaixam como num quebra-cabeças perfeito, mas de fragmentos que estão mais para as imagens soltas que a gente tenta recolher quando acorda de um sonho. Todas elas fazem parte de você, mas você nunca consegue saber exatamente que conexões são essas nem de onde elas vêm. Chorei nesses cinco momentos que descrevi acima, mas tenho certeza de que outras pessoas se emocionaram com outras partes – e talvez nem tenham respondido a essas que tanto me tocaram. Mas esse é, talvez, o maior mérito do filme: disponibilizar uma bíblia de referências para todas as possibilidades da vida. E não joguei a palavra “bíblia” aqui à toa.
O filme mexeu tanto comigo que me fez reconsiderar até mesmo minha posição com relação à fé. Ela é um pouco complexa (e indefinida) demais para eu poder dividi-la hoje aqui com você, mas, apenas para continuar a discussão, digamos que eu já tinha resolvido que fé era uma coisa que não faria parte da minha vida. Mas aí chega Malick e me reapresenta a Graça Divina como o único amor que de fato pode nos salvar – como não me sentir cutucado com isso? As perguntas que Jack – e eventualmente seu pai e sua mãe – colocam ao Criador são longe de ser tolas, ou simplesmente retóricas. São pontuais e indispensáveis para nos fazer pensar na cena que estamos vendo – e nos provocar por muito tempo depois que saímos do cinema. Por exemplo: “Por que eu devo ser bom se você não é?”, pergunta Jack a certa altura (em off), sem nos dar uma pista precisa se ele está se referindo a seu pai o ao seu (nosso) Deus – ou talvez, novamente, seja tudo a mesma coisa. E eu te desafio: qual o filho que nunca pensou isso do pai?
Aqui vale a pena uma ressalva. No último sábado, durante um jantar que fui com duas amigas, encontrei um terceiro amigo que tinha ido assistir ao filme com elas. A conversa imediatamente se encaminhou para “Árvore da vida” – como qualquer conversa que tive nos últimos cinco dias! As “meninas” não tinham gostado tanto. Mas o outro “menino” – um ator por quem tenho uma enorme admiração – tinha ficado tão emocionado como eu com o filme. E reconhecemos, afinal, que o filme talvez fale mais aos “meninos” do que às “meninas”. Essa relação “custosa” que temos com nossos pais – e esse meu amigo, me contava ele, não só pensava nisso como no seu próprio filho que nasceu há pouco tempo – fala talvez mais diretamente aos “homens de boa vontade” que assistem a “Árvore”. Mas eu, insistindo com as “meninas”, fiz questão de frisar que esses temas propostos lá por Malick são mais universais do que isso.
Em última análise, o filme fala de amor – que, para mim, é a única justificativa para o mundo existir. É por isso que Malick precisa começar a contar sua história mesmo do começo, bem do comecinho – e é por isso que ele precisa terminar (numa sequência que é a única que eu criticaria com veemência) com mortos e vivos se encontrando em uma praia. Mesmo que esse desfecho para um filme tão monumental seja quase patético, a mensagem é tão forte que sobrevive até a essa fraqueza: nós só estamos aqui por conta do amor.
Deus, o amor da sua vida, sua mãe com quem você não fala há duas semanas, uma criança que você nunca viu na rua, sua irmã de criação, alguém que você entrevistou, seu companheiro de anos, uma mulher que você viu na TV, a filha adolescente de sua amiga que está sendo expulsa de casa, alguém que te responde sempre com “oi meu amor”, os parentes que choram a morte de um pai de família, a moça de quem você ainda não esqueceu como era o beijo, o cara que você fica olhando antes de ir embora para trabalhar enquanto ele ainda está dormindo, a menina que mereceu ganhar 12 dúzias de rosas, o namorado para quem você encheu uma parede de post-it, a noiva que não queria se casar na igreja, a terceira neta de sua amiga que ainda vai demorar cinco meses para nascer, os dois irmãos que finalmente estão se falando depois de 15 anos, a amiga da sua mãe que você encontrou no check-in do aeroporto, o turista italiano surdo que te pediu informações em Dublin, a mochileira alemã que se instalou no quarto do seu albergue, a outra ponta de uma história recente que não deu certo e cujo convite (automático) para entrar numa rede social chegou inesperadamente hoje de manhã, a bibliotecária que te cobra um livro, a menina que você deixou para trás depois de quatro anos de namoro, seu sobrinho que teve um aneurisma ainda adolescente (e sobreviveu), a garçonete para quem você nunca lembra de deixar uma gorjeta à altura da simpatia dela, o dono da mão que está sempre suada toda vez que te vê, a jovem que treme de estar na mesma sala que você, o monge mirim que você encontrou meditando no meio de um bosque, o pai da sua amiga que não fala com você enquanto está ouvindo música clássica, a loirinha que te levou para o fundo da sala tentando te arrancar um beijo, os jurados que te medem decidindo se você deve passar mais uma etapa do teste, quem te olhou bem dentro do olho e disse um dia “não tem volta”, a única pessoa que realmente te faz falta hoje, a aeromoça que te cumprimenta prendendo seu olhar por dois segundos a mais do que a cordialidade permite, o fotógrafo que te apresenta a banda mais legal do mundo que você não conhecia, a senhora que veio fazer a barra de sua calça, seu amigo que mal conversa contigo mas vem te contar que está dormindo no carro depois que brigou com a mulher, a mulher dele, uma grande atriz de teatro que diz estar encantada em te conhecer, a repórter que não deveria estar naquela festa, o único cara em que você confia para ler seus texto antes de publicá-los, o amor da sua vida (outro), o cara que tirou o amor da sua vida da sua vida, a outra menina que está competindo com você (por mais um amor da sua vida), a mulher em cuja mão você colocou o anel, o bebê cujo pé você não consegue parar de beijar, as filhas que voltam para as casas da mãe, o garoto que não aguenta mais brigar com seu companheiro de quarto, a nadadora que chega em quarto lugar, todos os membros da banda que saem do palco sem ter dado um bis, a moça da limpeza que finge que não vê você saindo do cinema chorando, a garota que só descobriu “Nevermind” no ano passado, sua prima que reclama que você nunca mais foi na cidade em que nasceu, seu dentista que fala que você só o procura em ano de Copa do Mundo, o garoto da camisa listrada, a menina que te aponta um táxi vazio, qualquer pessoa que passar por aquela porta, qualquer um ou qualquer uma que disser eu te amo, qualquer imbecil que te chamar de imbecil, todas as pessoas que te admiram, todas as pessoas que você admira, sua avó em uma foto da adolescência, a mãe da Giulia, o pai do Téo, o irmão do Alê, a Tereza, o Werneck, a Uchoa, a Cris, o Chris, o filho que você ainda não teve mas quer chamar de Facundo. Todo mundo.
Se não for por amor, então por quê?
“A árvore da vida” tem a resposta. E é por isso que eu vou ver de novo e de novo e de novo e de novo. Se o filme é tão precioso, é porque vai buscar no cósmico uma explicação para o cômico de nossa vida. E, como me lembrou uma grande amiga na semana passada, Balzac não escreveu a “comédia humana” para fazer a gente rir...
(G1 - Blog do Zeca Camargo)
http://g1.globo.com/platb/zecacamargo/
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