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Brincadeiras e solidéus

por Yoani Sánchez (*)
06/03/2012 - O Estado de São Paulo

Janeiro de 1998 foi um momento de descobrimento e criatividade, de cenas inéditas e orações em voz alta. João Paulo II nos visitou e na Praça da Revolução - o marco mais vermelho da Cuba ateia - fez uma homilia na qual pronunciou mais de dez vezes a palavra liberdade. Além do rito e da liturgia, no nível da rua e das pessoas, a vida também estava em ebulição. A produção de piadas disparou. Uma verdadeira avalanche de brincadeiras e histórias satíricas teve como protagonista tanto o próprio papa quanto o então presidente Fidel Castro. Quando acreditávamos que a picardia nos havia abandonado e a crise econômica do "período especial" havia transformado o nosso sorriso em esgar, renascia a zombaria e a risada.

Até Pepito, o eterno menino malicioso dos nossos contos, reapareceu para surpresa dos que achavam que fugira durante a crise dos balseiros. À direita do báculo papal e à esquerda do guerrilheiro de verde-oliva, uma cabecinha hirsuta zombava do humano e do divino, do milenar e do imediato.

Entretanto, agora, a poucas semanas da chegada de Joseph Ratzinger à ilha, a fonte dos nossos sarcasmos parece ter-se esgotado, minguado.

Apenas uma piada ridícula e batida fica nos rodeando. Uma tosca palhaçada que indaga sobre a semelhança entre o Ministério da Agricultura e o Vaticano. Sem pensar muito, os interrogados a respeito respondem: "Sim... já sei. Que em 50 anos se produziram somente quatro papas ..."(papa significa também batata em espanhol), numa alusão ao desabastecimento deste tubérculo, tema hoje de conversas, boatos e até extensas reportagens na TV oficial.

A pergunta que devemos nos fazer é se este empobrecimento satírico é uma medida das poucas expectativas em torno da chegada do máximo representante da Igreja Católica. Ou então é um processo de apatia que invade nossa sociedade, que pode ser resumido com a frase: "Nada vai mudar, ninguém vai conseguir que as coisas mudem".

No final dos 90, Karol Wojtila nos incentivou a esperar. Neste 2012, a dose de cinismo nacional conspira contra o entusiasmo. Já sabemos que a frase: "Se Cuba se abrir para o mundo, o mundo se abrirá para Cuba", ficou na bela intenção de um papa polonês.

Nos quase 15 anos entre uma visita e outra, a Igreja ganhou espaço na nossa vida pública. Mas para tanto, sua hierarquia teve de fazer concessões que decepcionaram parte da congregação de fiéis, leigos e até alguns ateus iludidos. Quando indagamos entre os sacerdotes a respeito dos passos cuidadosos e lentos da Igreja cubana, eles sempre respondem com a frase: "Sobrevivemos dois milênios apesar das piores dificuldades, não podemos nos apressar agora".

João Paulo II afirmou que "o homem é o principal caminho da Igreja" e a defesa dos direitos humanos é a pedra angular desta premissa. No caso de Cuba e diante da evidência de que outros espaços de liberdades civis foram proibidos e satanizados, os templos e seminários deveriam assumir um papel menos cauteloso. A negociação entre o governo cubano e o cardeal Jaime Ortega para a libertação dos presos políticos da Primavera Negra não se concluiu - como se esperava - com um aumento do prestígio da Igreja na ilha. Mas levantou questionamentos e críticas, inclusive entre os familiares dos próprios libertados. Em parte, porque na mesa do pacto faltou a voz das Damas de Branco, que há sete anos pressionavam para que seus esposos condenados em 2003 voltassem para casa. O governo cubano escolheu o interlocutor menos incômodo para entregar os reféns. As estratégias milenares tropeçam - às vezes - nestas artimanhas do transitório.

O papa chegará a um país onde a hierarquia eclesiástica conseguiu ampliar instalações, abrir novo seminário, criar uma cátedra para discutir temas sociais com convidados muito seletos. Uma nação onde já ninguém é expulso do trabalho ou estudo por rezar o Pai Nosso, e onde a TV oficial transmite a Missa do Galo e outras tantas cerimônias. Mas também encontrará um cardeal que já passou da idade da aposentadoria, um presidente que há 5 anos superou os 80 e um povo onde os jovens escasseiam, pela emigração e pela baixa natalidade. Chega num momento de flexibilização econômica e radicalização do discurso político, de expectativas comerciais e desenganos ideológicos.

Indubitavelmente, sua visita não será precedida pelo torvelinho de esperança, curiosidade e humor que João Paulo II conseguiu arrancar dos cubanos. Mas quem sabe! Quem sabe nem o mesmo Pepito tenha conseguido adiantar as surpresas que nos trará Joseph Ratzinger. De minha parte, sonho que na Praça da Revolução, ateia e exclusiva, ele proponha que "Cuba se abra a Cuba".

(*) Yoani Sánchez é filóloga e jornalista cubana. Licenciada em Filologia em 2000 na Universidade de Havana, alcançou fama internacional e numerosos prêmios por seus artigos e suas críticas da situação social em Cuba sob o governo de Fidel Castro e de seu sucessor, Raúl Castro. É conhecida por seu blog Generación Y, editado desde abril de 2007, com dificuldades, porque não pode acessá-lo de casa. A revista Time a incluiu em sua lista de "cem pessoas mais influentes de 2008", dizendo que "debaixo do nariz de um regime que nunca tolerou dissensão, Sánchez exerce um direito não garantido aos jornalistas que trabalham com papel: liberdade de expressão".

(O Estado de São Paulo, domingo, 04.mar.2012)

 
 

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