Em 1944, Henri de Lubac, um dos intelectuais que, juntamente com o jovem Ratzinger, fundou a revista internacional Communio, escreveu O drama do humanismo ateu. Sua tese era de que o humanismo moderno, perdendo a referência em Deus e no seu amor, é incapaz de realizar a pessoa, levando à dramática desumanização da sociedade contemporânea. Além disso, o livro procurava valorizar as críticas que Feuerbach, Marx e Nietzsche, entre outros, faziam ao Cristianismo – mostrando que muitas delas eram válidas, porém se referiam a um Cristianismo descaracterizado, que perdera seu élan vital.
A trajetória do teólogo Ratzinger, papa Bento XVI, pode ser lida como um diálogo entre os fundamentos do Cristianismo e esse humanismo em crise, que ao longo da modernidade parece ir vencendo todas as batalhas que luta (direitos humanos, democracia, igualdade, liberdades individuais etc.), mas estar perdendo a guerra da construção de uma humanidade mais feliz. Mas peço atenção: as bases da postura de Ratzinger não são os “valores da tradição”, como muitos dizem, mas sim os “fundamentos da tradição”. Ele tem claro que os valores morais e sociais, privados de seu fundamento original, se tornam normas vazias que mais oprimem que valorizam a pessoa; por isso sua batalha não é pela defesa de valores esclerosados, mas por uma renovação a partir da crença de que na raiz de qualquer valor realmente humanizador está o reconhecimento do amor de Deus.
Então Bento XVI não foi um tradicionalista? Sem dúvida não; seu pretenso “moralismo” e “reacionarismo” é uma construção midiática, que não se sustenta em uma análise de seus escritos ou do conjunto de suas atitudes no papado. Um conservador? Se olharmos para o valor que dá à tradição da Igreja, sim. Mas quem ler Caritas in veritate, sua grande encíclica social, encontrará uma obra sintonizada com as demandas sociais da chamada “ala progressista” da Igreja. Dentro desse universo de caracterizações esquemáticas, talvez a melhor para ele seja a de “pós-moderno”.
As imagens mais frequentes que se tem das mudanças pelas quais a Igreja devia passar a partir do Concílio Vaticano II nasceram dos ideais da modernidade da metade do século 20, que já enfrentava a crise que gerou esse processo ambíguo e complexo que chamamos pós-modernidade. Bento XVI é o papa pós-moderno por excelência, que não procura criar uma Igreja que se molda aos valores da modernidade, mas que responde à destruição destes valores – realizada pelo próprio pensamento crítico moderno.
Em oposição aos pensadores ateus estudados por De Lubac, que construíram a grandeza e o drama do pensamento moderno, Bento XVI pode ser compreendido como um humanista religioso, que acredita que a ligação do ser humano com Deus é o vínculo de amor que é a condição necessária para encontrarmos nossa felicidade e realização. Porém, esse humanismo, nascido de um gesto de amor gratuito e de uma esperança sem limites, é quase insuportável para a cultura contemporânea. Corresponde de tal forma ao desejo mais profundo de cada um que chegamos a ter medo... Medo de nos entregarmos a essa promessa e descobrirmos depois que se trata de mais uma ilusão.
Quem não quer receber um amor que não pede nada em troca? Quem não quer ver a si próprio e a todos os que ama livres da sombra da morte? Quem não gostaria de saber que todas as vítimas de Auschwitz encontraram a paz e a justiça, que o mal que se abateu sobre elas não foi a última palavra? De saber que o futuro dos jovens mortos no incêndio da boate de Santa Maria não terminou abruptamente no horror, mas, pelo contrário, apenas se abriu, naquela noite fatídica, para a eternidade? O que uma jovem pobre, carregando dentro de si uma gravidez indesejada, prefere: poder tirar o filho que carrega em seu ventre, admitindo a desgraça e/ou o erro do que lhe aconteceu, ou ter a certeza de um amor que lhe permitirá ter esse filho e se realizar na vida, juntamente com essa criança, transformando a tragédia em esperança? O que corresponde mais ao desejo do sábio: descobrir com sua razão que a realidade é uma rede de causas e efeitos em última análise aleatórios, ou descobrir em cada fenômeno a beleza de um amor oculto, mas infinito?
Insuportável esperança, que parece negar a evidência de que nascemos marcados pela desgraça. Se acreditarmos nela, será muito mais doloroso voltarmos à desilusão da descrença, voltar a viver “sentados à sombra da morte”, inseguros em relação a cada afeto, sabendo que nenhum amor é para sempre! São essa esperança e a experiência de um amor impensável, mas realizado, que constroem o humanismo cristão proposto por Bento XVI. Ainda é cedo para uma avaliação adequada de seu papado, mas é inegável que ele, como poucos, recolocou o humanismo cristão na agenda cultural da sociedade contemporânea; que em seu papado o mistério de Deus se tornou provocação e escândalo para um mundo fechado em si mesmo.
* Por Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do conselho editorial da versão brasileira da revista Communio
Fonte: Gazeta do Povo, 28/02/2013
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