Atrás do balcão, um homem de camisa branca diz: “Não estamos nos entendendo. A terapia prevê um comprimido por dia. Na semana passada, eu lhe dei uma caixa inteira. Deveria ser suficiente para um mês”. Farmácia estranha, esta: os medicamentos são gratuitos, mas são entregues só quando são necessários. Estamos em Milão, na praça Velazquez, próximo ao mosteiro dos Capuchinhos, dentro da nova sede do ambulatório da Obra São Francisco. Aqui vêm pessoas que não podem pagar uma consulta e não têm dinheiro nem para a aspirina. São os estrangeiros sem visto de permanência ou direito a assistência; italianos inscritos no Serviço Nacional de Assistência mas que não podem pagar aquilo que a Previdência não cobre; ou tóxico-dependentes, ex-detentos, pessoas “excluídas”. A farmácia vive das doações dos cidadãos que levam remédios que sobraram, mas que ainda estão dentro do prazo de validade; dos voluntários que recompõem as caixas; de algumas empresas farmacêuticas e de outros italianos que há anos respondem ao convite do Banco de Medicamentos: “Entre em uma farmácia e doe um remédio a quem não tem”. Em 10 anos, o Dia de Coleta de Medicamentos arrecadou algo como 2.010.000 medicamentos. No Banco, chega cerca de 100.000 por ano, e cerca de 50.000 são redistribuídos.
Na Obra São Francisco, Alessandro Gargiuolo é o responsável pela farmácia. O fato de terem chegado a Milão na metade do século XVI, chamados pelo cardeal Borromeo para dirigir o ambulatório de lepra durante a peste, faz com que a obra dos monges capuchinhos sempre tenha sido considerada a caridade por excelência, graças à distribuição de refeições que só em 2010 chegaram a 700.000.
O jovem diante do balcão insiste, levanta a voz. Quer os comprimidos, mas não os receberá. O sistema informatizado registra todas as retiradas do usuário em uma ficha médica pessoal. Ter contato com 126 nacionalidades significa lidar com diversas culturas, diversas línguas, mas sobretudo diversas percepções de si e da doença. “Veem até nós, esperam receber o remédio e tchau. Nós damos algo a mais: na semana passada, um rapaz veio três vezes no período de alguns dias pedir antipsicóticos. Sempre com a receita vermelha. Na primeira vez, nós demos. Depois, não. Ele era toxicodependente: quando alguém volta à farmácia tentamos entender a situação e, se possível, encaminhamos ao serviço de psicologia”. Um trabalho de equipe difícil de realizar fora de um contexto assim. “Para nós, porém, é um fator fundamental. Que signfica entender a necessidade real de quem está diante de nós, dar outra importância à pessoa”. Então, eles deixam de ser apenas pacientes. Ou clientes, como aqueles que Alessandro atende quando trabalha atrás do balcão da farmácia ‘normal’, à tarde. “Trabalhar aqui significa entender que o remédio é um bem precioso. E não é óbvio tê-lo. Significa poder dizer: ‘Olhe, se você já tem tal remédio em casa, pode usá-lo. Não gaste dinheiro comprando outro’. Eu vendo menos, mas dou maior qualidade ao serviço”.
NENHUMA LISTA DE ESPERA. No ambulatório da praça Velazquez nunca há lista de espera. São 164 médicos voluntários, dois clínicos gerais por turno, mais todos os especialistas (do alergista ao urologista). Em 2010 foram 28.000 consultas realizadas, uma média de 125 por dia. A nova estrutura dispõe de espaços para espera e acolhida, um quarto para o “hospital dia”, uma sala para as medicações, três consultórios odontológicos, oito ambulatórios para consultas. Mais os aparelhos de diagnóstico. Números a parte, “nosso objetivo é o de cuidar de quem não tem condições de pagar por uma consulta. Mas, sobretudo, acolher a pessoa que não está bem e não entende o que está acontecendo com ela”, explica a responsável pelo poliambulatório, irmã Anna Maria Villa, que primeiro descobriu a vocação médica, depois, a religiosa. “Você tem uma patologia crônica que não aceita, contraiu uma doença sexualmente transmissível e tem vergonha, ou algo de muito mais grave, mas não entende que está correndo risco de vida: eu posso lhe ajudar a se tornar mais consciente daquilo que deve enfrentar e acompanho você. Muitas vezes já aconteceu de termos que ‘laçar novamente’ alguém: ‘Desculpa, por que você não veio ao retorno? Por que não segue o tratamento?’”. A nova onda de imigração no nosso País lançou muitos desafios em relação a novas doenças, ligadas às diversas proveniências. A Obra São Francisco é um observatório privilegiado. Um exemplo? “A tuberculose. Algumas etnias se recusavam a se submeter ao Mantoux (teste cutâneo), outros não voltam para saber o resultado por medo de terem contraído a doença. Mas trata-se da vida deles. Mudamos a abordagem, trabalhamos sobre uma relação inicial, levando em conta o país de origem. Não os tratamos como uma massa, mas como pessoas com uma fisionomia própria, que precisam ser ajudadas de maneiras diferentes”. Aceitar as grandes solicitações que um doente representa é o que fez a medicina crescer no decorrer dos séculos. “E torna a pessoa que está diante de você humanamente mais interessante”. Um exemplo: “No Egito, algumas alergias muito difundidas entre nós, não existe. Descobrimos casos de egípcios que se tornaram alérgicos depois de um certo período morando na Itália. Qual é o fator desencadeante? Adoecem no processo migratório? Fazem exames eficazes em seus países? Para responder, temos um convênio com a Universidade de Roma”. Tornamo-nos responsáveis pelas pessoas.
A SOPA DO FREI CECILIO. O coração original da Obra São Francisco nasceu quando, em uma pequena sala, frei Cecilio preparava, conforme a tradição franciscana, uma sopa para aqueles que todos os dias procuravam os monges. Debaixo do teto sagrado da igreja, faziam sua refeição. Em 1931, o frei hospedeiro distribuía 50 quilos de pão por dia. Em um dia chuvoso de 1958, frei Cecilio escreveu em seu diário: “Tu, Senhor, multiplicaste o pão para 5.000 pessoas. Eles sentaram-se sobre a relva, sinal de que não chovia. Olha como aqui chove e como essas pessoas se molham”. Dito e feito: no dia 20 de dezembro de 1959, na presença do arcebispo Montini, é inaugurada a Obra São Francisco e a nova estrutura da refeição para os pobres, graças à generosidade do industrial milanês Emilio Grignani. “São Francisco converteu-se quando encontrou um leproso em quem viu Nosso Senhor. Hoje, nossos leprosos são os marginalizados, sobretudo os estrangeiros”, diz padre Maurizio Annoni, responsável último de toda a “estrutura”. “Desde o seu nascimento, a Obra São Francisco desenvolveu-se de maneira exponencial, sempre com o mesmo método: olhar a pessoa que pede ajuda e entender quais são as suas necessidades. O pobre chega, nós lhe damos o que comer. Oferecemos uma dieta completa, que compreende também carne e peixe. Ele veste trapos, certamente não toma banho há tempos. Procuramos roupas limpas para ele; construímos duchas e um canto onde possam fazer a barba. Se está doente o encaminhamos ao ambulatório. Um estetoscópio e um bom médico fazem o resto”. Nasce, assim, o serviço de ducha, o guarda-roupa, o ambulatório. E muito mais, porque os pobres aumentam. Mas um artigo não é suficiente para descrever tudo. O cardeal Martini, em 1995, a definiu como uma “caridade estruturada”. “Como para São Francisco todas as coisas são ‘irmãos’ e ‘irmãs’, assim frei Cecílio se colocou a serviço do homem. Para nós, o grande risco com grandes números é perder o objetivo de vista: ser o tutor daquele que o Senhor nos confia, dizendo: Cuide dele, mas não esqueça de que não é seu”.
A COLUNA DA OBRA. “Eu já lhe dei um casaco em novembro. Não posso lhe dar outro depois de dois meses”. Com luvas de borracha e avental, uma voluntária lê no computador a ficha deste homem que aparenta ter uns 80 anos. “Tem 54”, diz padre Maurizio. A pobreza faz sulcos profundos. “É a primeira vez que o senhor vem tomar banho aqui?”, pergunta a um outro. A cabeça diz que sim. “Tome uma toalha. Depois o senhor me devolve. As calças, a ceroula e a camiseta limpas podem ficar com o senhor”. São novas. “O senhor pode voltar a cada 15 dias para o banho. Mas para barbear-se e lavar os pés, pode vir todos os dias”. Em 2010, o refeitório preparou 700.00 refeições. As oito duchas da rua Kramer foram abertas 22.500 vezes. Foram 9.200 trocas de roupa, 33.200 registros, entre renovação e novos inscritos.
Os números são realmente desconcertantes, de fazer corar qualquer conselho municipal (que aqui dá um apoio financeiro correspondente a um dia de atividade!). E, então, como tudo isso se mantém? “Frei cercot, como era chamado em milanês o monge pedinte. Quantas vezes Cecilio bateu nas portas, mas ele seguramente estava melhor entre sopas e pratos sujos”. E ainda hoje é assim. A Obra São Francisco vive exclusivamente de doações e do Banco de Medicamentos. “E também os voluntários. Eles são a coluna da Obra. No total são 574, incluindo os médicos”. Porque as pessoas doam seu tempo? “Há 49 anos decidi mudar de vida”, diz Ricardo, um dos responsáveis pelo refeitório. “Eu via minha mulher e meus filhos trabalharem como voluntários e voltavam para casa contentes. Moro aqui perto. Todos os dias passava diante dessas filas de pobres cristãos. Tinha uma pequena empresa familiar. Larguei tudo e vim para cá. Acharam que eu era louco. Agora, trabalho aqui todas as tardes”. Certo, nem todos podem se permitir isso. “Mas eu faço isso por mim. E sabe o que acontece? Você começa a ver a vida de outra maneira: se estou dirigindo e alguém me corta na rua, não grito mais. Há outras coisas pelas quais se irritar”. A frase comemorativa dos 50 anos da Obra, estampada na camiseta dos voluntários, é: “Renascido com OSF”. Lembra um pouco o título da campanha do Banco de 2011: “A caridade muda a sua vida”.
As doações vão bem, mas repetimos: Como tudo isso se mantém? “Vivemos da Providência”, diz irmã Anna Maria. “É como o ar: percebemos sua espessura quando vemos que o vento norte chega. Não é óbvio que o dinheiro vá chegar. Ou os voluntários. Há um tempo atrás, chegaram cinco psiquiatras. O que eu faço?! Preciso de ginecologistas. Em pouco tempo nasceu o serviço de psicologia. Em um ano, 1.000 consultas. Algum Outro nos fez ouvir um grito, “Olhem – nos disse – há algo que vem antes das ideias de vocês”. É preciso apenas se deixar comover. E encontrar dois minutos para dizer obrigado”.
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