Qual o sentido de doar parte da própria despesa para um desconhecido, um dentre os 120 mil voluntários do Banco de Alimentos, que fará com que a doação chegue a uma ou várias pessoas entre os 1,4 milhão de indigentes, através de mais de oito mil instituições de caridades apoiadas? Que sentido tem fazê-lo num momento de crise no qual, para muitas pessoas, até um euro é precioso demais para ser descartado, a fim de amenizar os problemas do desemprego e dos apertados orçamentos familiares? Talvez não terão razão os que, confiando nos poderes taumatúrgicos do sistema financeiro e da “política dos justos”, repetem há anos que “caridade não adianta; é preciso justiça”? São perguntas para as quais, paradoxalmente, esta crise mundial ajuda a encontrar resposta.
Já vimos isso: o sistema financeiro, mesmo quando não causa danos, sozinho não consegue resolver; os países do Terceiro Mundo que mais crescem vão diminuindo a defasagem em relação aos países ricos, mas, em contrapartida, aumentam em muito as diferenças internas entre ricos e pobres; os países desenvolvidos, oprimidos pela dívida pública, cada vez têm menos capacidade de tornar digna a vida dos mais necessitados. Não bastam e jamais bastarão projetos políticos e econômicos. Tinha razão Bento XVI quando, na Deus caritas est, diz: “A caridade será sempre necessária”. “Um homem descia de Jerusalém a Jericó e topou com ladrões que o roubaram... Um samaritano, que estava em viagem, passando por ali os viu e teve compaixão deles”. Nossa civilização ocidental está impregnada – mais do que por sinais de violências e guerras – de traços do bom samaritano, de são Martinho que doa metade do seu manto ao pobre que dele está precisado. A tradição cristã chama tudo isso de “caridade”, dom de si pensando no bem do outro, porque não podemos esquecer que tudo o que temos nos foi doado por um Deus que se fez homem e aceitou sofrer e morrer para nos salvar.
A tal ponto essa dimensão caracteriza a nossa civilização que mesmo sistemas de pensamento laicos adotaram ligas de ajuda mútua, cooperativas, obras filantrópicas, porque em nossa civilização ainda está fortemente arraigada a consciência de que “um homem vale mais do que todo o universo”. É algo mais do que uma genérica solidariedade ou de uma mera transferência de bens de uma pessoa para outra, mas atos em que, movidos pelo desejo de bem contido no coração, sacrifica-se algo para tornar melhor a vida de outras pessoas.
Claro, devemos esperar e lutar por disposições políticas, econômicas e financeiras mais justas e eficazes, mas sem esses gestos os indigentes (que já não podem esperar) terão a vida piorada. E não são só os pobres que precisam de tais gestos: ainda mais necessitados deles são aqueles que os praticam, os bons samaritanos e também os sacerdotes e levitas de hoje, que somos um pouco todos nós. Respondendo com um gesto simples à necessidade do próximo desconhecido, lembramos que todo homem é necessidade e desejo infinito, dos quais a indigência material e espiritual são apenas sinais.
E assim é despertado nosso coração entorpecido; reabre-se a nossa razão, que se tornou obtusa e incapaz de criar, lutar, sofrer; renasce em nós um desejo não reduzido, fator primeiro de inteligência, conhecimento, criatividade, imprevisível capacidade de gerar novidade, riqueza, beleza, para si e para os outros. Assim, a crise se torna um desafio para a mudança, como proclama um recente panfleto de CL: de um gesto de caridade como esse da Fundação Banco Alimentar renasce a esperança de um povo, para que possamos ser mais conscientes de tudo o que recebemos; e também podemos descobrir que esses gestos podem educar o povo para alargar o horizonte para as necessidades de todos.
O texto refere-se à Coleta de Alimentos realizada na Itália no dia 26 de novembro. No Brasil a mesma iniciativa aconteceu algumas semanas antes, dia 5 de novembro.
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