O fenômeno “população em situação de rua”, termo mais utilizado atualmente no Brasil para designar as pessoas que não tem domicílio regular e que estabelecem suas relações na rua, tem origens remotas e explicações multifatoriais. Na história da humanidade é sabido que sempre houve pessoas nas ruas, seja por problemas de saúde, rupturas de vínculos familiares e comunitários, por necessidade de trânsito ou por exílio e muitos advogam que o fenômeno se tornou expressivo em termos populacionais a partir da pauperização urbana deflagrada pela Revolução Industrial, sobretudo ocorrida na Europa do séc. XVII, cujo êxodo de trabalhadores do campo para os centros urbanos, frequentemente insalubres e inóspitos, teria contribuído para a fixação das pessoas nas ruas.
Entender os motivos que levam as pessoas às ruas e aí permanecerem constitui o desafio inicial para os agentes religiosos e profissionais que se dedicam a auxiliar essas pessoas, no âmbito pastoral ou profissional, nas suas mais variadas e complexas necessidades. Para tal, um dos caminhos é recorrer aos diversos diagnósticos acadêmicos e institucionais, que utilizam metodologias censitárias e sócio-etnográficas, que podem instrumentalizar as ações dirigidas à população em situação de rua. Por outro lado, é fundamental que o ser humano assistido seja conhecido em toda a sua essência, considerando seus anseios, expectativas, sua história de vida, suas dificuldades, suas mazelas materiais e espirituais.
No Evangelho de São Lucas (Lc 10, 38-42) o evangelista narra o encontro de Marta e Maria com Jesus, no qual há uma aparente dicotomia na postura das duas. A primeira dedicava-se às tarefas da casa e às preocupações instrumentais da vida e censurou a segunda por não estar empenhada da forma que desejava que ela se portasse. Contudo, Cristo enaltece a postura de Maria, que permaneceu aos seus pés, contemplativa e adoradora, lembrando à Marta sobre a importância de se reconhecer Sua sacrossanta presença entre elas. O trabalho humano ordenado a contribuir para a geração de meios de subsistência e para a superação das desigualdades sociais não deve ser um fim em si, mas se torna completo se for orientado em Cristo e por Cristo, com a alegria de quem “escolhe a melhor parte”. Em outro momento, as palavras de Cristo - “sempre tereis pobres convosco” (Jo 12,8) - nos antecipam que as matrizes técnicas, científicas, antropológicas e políticas empregadas para explicar o fenômeno da população em situação de rua e propor soluções para o seu enfrentamento serão limitadas se o efeito desejado consistir na eliminação da pobreza no mundo. Também é importante destacar que Cristo foi o poeta da predileção pelos pobres, por nascer e se fazer pobre, por ser servidor dos pobres, curando-os e libertando-os, e por prometer as bem-aventuranças do Reino de Deus aos que amam os pobres. Aliás, interroga seus interlocutores sobre a postura de um bom samaritano (Lc 10, 29-37), institui a Eucaristia no contexto do serviço ao próximo (Jo 6; 13, 1-5) e chama de benditos de Deus Pai os que visitam os doentes, os cativos na prisão, os que acolhem o peregrino, os que assistem os pobres em suas necessidades humanas de fome, sede e vestuário e lhes promete o Céu como recompensa (Mt 25, 31-46).
Insídia frequente é atribuir a Deus a responsabilidade pelas desordens sociais e morais que culminam na perpetuação da pobreza e em suas consequências excludentes e esquecer-se de que diante da pobreza, em suas mais variadas manifestações, todos devem se responsabilizar pela consecução de um mundo mais justo. A coroação de um trabalho profissional ou ofício deve ter sempre como meta a edificação do próximo, como imagem e semelhança de Deus e templo do Espírito Santo, de forma a reconhecer seu valor e reafirmar sua dignidade humana. A Doutrina Social da Igreja Católica, em seus diversos documentos magisteriais, consolida a opção preferencial pelos pobres como itinerário seguro de salvação e coerência com nossa fé cristã professada. Imbuída dessas motivações, a Pastoral do Povo da Rua do Brasil, por exemplo, foi protagonista no apoio à população em situação de rua nos grandes centros urbanos, com iniciativas notáveis entre as décadas de 70 e 80, com ênfase para os municípios de São Paulo e Belo Horizonte, onde se destaca o trabalho dos agentes pastorais às pessoas que sofriam nas ruas, de modo a lhes ajudar a se organizarem em suas reivindicações junto aos poderes públicos. Nesse contexto ocorrem o assessoramento para a formação de cooperativas de catadores de material reciclável, por exemplo, a realização de fóruns sociais e diversas agendas celebrativas a fim de denunciar a opressão sentida, de forma a testemunhar os valores do Reino, tal como o Grito dos Excluídos, as comemorações de Natal, entre outros.
Curiosa e providencialmente, os frutos dessas manifestações populares paulatinamente estimulam a assunção dos problemas por parte dos gestores e contribuem para delinear diversas estratégias, programas e políticas públicas com foco nas respostas às demandas e necessidades da população em situação de rua.
Como exemplos contemporâneos podem ser citados a implantação de equipes de Saúde da Família para população em situação de rua ou “Sem Domicílio” nos municípios de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre a partir da década de 2000 e de centros de referência da Assistência Social para essas populações com simultâneo incremento de suas políticas já existentes, de forma participativa e intersetorial.
A despeito de constatar essa importante trajetória histórica de membros da Igreja em se compadecer e apoiar as pessoas no contexto da rua, a pessoa que intenciona iniciar ou continuar esse trabalho social e pastoral se depara com várias dificuldades processuais. Uma delas é que se estiver inserida no contexto profissional do setor público, a pessoa que se sente chamada a assisti-las invariavelmente terá que conviver com as limitações inerentes à coisa pública, tais como a dificuldade em se prover refeições, locais adequados para albergamento, higienização e guarda de pertences, hiatos em políticas de formação profissional para subsidiar o auto-sustento e a preparação para a saída da rua, dificuldades dos moradores de rua em acessar redes efetivas de saúde, de assistência social, de educação e segurança, cujas normativas e rotinas frequentemente são pouco acessíveis e estigmatizantes. Além disso, as questões “biográficas” que motivam pessoas com oportunidades a preferirem a estada deliberada na rua, como os trecheiros, os que adotam postura vitimizante a fim de obter vantagens pecuniárias ou compaixão alheia, ou os que são seduzidos por um pretenso ideário de liberdade e os que não vêem motivos para a aceitação tácita de regras sociais historicamente construídas, desafiam os servidores dos moradores de rua a propor intervenções singulares, humanizantes e adequadas às necessidades daqueles que, por vocação, orgulho ou circunstâncias diversas, não desejam sair das ruas.
Algumas questões sociais e morais exigem especiais preparo e paciência ao se abordar pessoas nas ruas. Por que as pessoas recorrem às drogas para mitigar suas inquietações, preencher suas lacunas ou outras finalidades? O que leva as pessoas de uma mesma família a se violentarem entre si, de forma que a rua passa a ser o “porto seguro” para suas vidas? Como lidar com os imediatismos e superficialidades de pessoas que já não têm mais sentido para viver e encontram na rua, nas drogas e na criminalidade um refúgio para se esconder de suas crises existenciais? O que motiva uma pessoa a permanecer na rua e a ter pouco interesse em cuidar de sua saúde quando lhe são oferecidos os meios subsidiários para tal? Como lidar com as pessoas foragidas do sistema penal que adotam o anonimato que as ruas lhes oferecem? Até que ponto uma gestante, por exemplo, teria o direito de adotar a rua como domicílio e parir e cuidar dos seus filhos em condições adversas? Enfim, são dilemas contemporâneos que induzem percepções e condutas heterogêneas no seu manejo, e que muitas vezes geram frustrações a quem se dedica ao serviço aos moradores de rua, diante da complexidade das realidades apresentadas.
Outro desafio é conseguir conjugar o olhar mais emocional e compadecido às necessidades observadas, o popular “dar o peixe”, que evoca uma caridade afetiva, ao olhar estruturalista, considerando os desejos, as perspectivas, as potencialidades e as responsabilidades do outro na proposição de medidas para “ensinar a pescar”, que remete a uma caridade efetiva, na perspectiva da espiritualidade de São Vicente de Paulo, cujo carisma da organização da caridade pode contribuir para subsidiar o profissional do Reino nessa missão e a identificar as diversas expressões atuais de pobreza, quando nem sempre a escassez de recursos materiais é o fator mais proeminente, mas quando a pobreza moral e a espiritual concorrem para a degradação da dignidade humana, sendo a ida para a rua um dos seus efeitos nefastos.
Em tempos de laicismo militante, nos quais professar a fé católica de maneira coerente é entendido como algo retrógrado, conservador e depreciativo por alguns setores da sociedade, há que se recorrer também à criatividade e à discrição para testemunhar um amor efetivo aos pobres e oprimidos nas ruas.
Assim, a profissão e o trabalho humano são potentes e decisivos instrumentos para melhor servir e manifestar nosso compromisso com os que sofrem, como atuação pastoral concreta e profética em contextos secularizados e laicos. A compaixão na assistência ao pobre, ou seja, a participação na mesma Paixão, a oração intercessora e as obras de misericórdia são atributos essenciais para um bom trabalho social e pastoral à população em situação de rua. Com serenidade na aceitação das dificuldades, paciência e mansidão no processo e compromisso caridoso nesse caminhar, que possamos ouvir no momento derradeiro “vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a criação do mundo”.
(*) Antonio Garcia Reis Junior é Médico de Família e Comunidade, mestre em Saúde Pública e atualmente trabalha numa equipe de saúde específica à população em situação de rua de Brasília/DF
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