Uma oração meio desafinada, a duas vozes, em duas línguas, árabe e italiano, preces cristãs e islâmicas, diante do corpo (agora inerte) de Dwah. Alguns enfermeiros, dois jovens e um homem com os olhos cheios de lágrimas. Isso é o que veria alguém que, no início d setembro, entrasse naquele momento no hospital Umberto I, de Siracusa, e olhasse para dentro de um quartinho na seção de reanimação.
O “antes” disso são os vários barcos que desde o início de agosto começaram a atracar na costa oriental da Sicília, na Itália, rota inédita para o fenômeno da imigração clandestina. Mas agora, além dos eritreus, dos egípcios e dos somalis, há também os refugiados sírios, que fogem de uma guerra que há dois anos incendeia o país e de um futuro que se prevê será ainda mais dramático. Segundo a ONU, mais de dois milhões de pessoas já deixaram o país de Assad. “Abandonam suas casas e vendem tudo por qualquer preço. Não pretendem retornar”, diz padre Carlo D’Antoni, pároco de um bairro ao norte de Siracusa, que abriu sua igreja e sua casa para esses estrangeiros vindos do mar. “Dos que chegaram este ano às nossas praias, cerca de seis mil vêm de lá. E falam de cidades e vilas inteiras arrasadas, que não existem mais. É gente que chega à minha casa e me pergunta de que lado estou, sem explicar de que lado estão eles próprios. E se a resposta for errada...”.
Dwah fugia da guerra. E, aos 49 anos, morreu por causa da guerra. Trabalhava numa farmácia em Damasco, na Síria. Aí surgiram as revoltas, os conflitos. O marido trabalhava como pedreiro autônomo, um pequeno empresário. Era impossível permanecer ali. Bagagem mínima e dois filhos a tiracolo, de 12 e 15 anos. Um terceiro filho, maior de idade, está na Suécia há algum tempo. Talvez pudessem visitá-lo um dia. Talvez até se pudesse recomeçar a viver...
A respeito da viagem pouco se sabe, de onde partiram, que roteiro seguiram... Só se sabe que o barco estava superlotado. E ela caiu. Talvez tenha sido empurrada. Ou talvez caiu justamente por causa daquela dor de cabeça fortíssima que a acompanhava quando desembarcou na costa siciliana, perto de Siracusa, na semana passada. O marido deve ter socorrido imediatamente. A dor de cabeça provavelmente estava insuportável. Ela chega ao hospital e logo os médicos diagnosticam uma hemorragia cerebral muito grave, justamente na região que comanda o coração e a respiração. “O que aconteceu depois... é um milagre”, dizem várias pessoas entre enfermeiros e médicos que cuidaram dela desde a chegada. Em seguida veio o coma. Poucos dias. Terça-feira de manhã, o marido e os filhos permitem a retirada dos seus órgãos para transplante. Não havia mais nada a ser feito.
Enrico Valvo é um dos médicos do hospital que estiveram com ela naqueles dias. “Foi uma sequência contínua de fatos, a partir do contato com aquela mulher. Era difícil entender o que ela dizia, no começo, por causa da língua. Conseguimos alguma ajuda na tradução, graças a um cunhado maltês e a um médico palestino. Mas, às vezes, bastava o olhar. O mesmo com o marido e os filhos. Que dignidade! Nunca ouvimos uma palavra de raiva, de desespero. Só muitos obrigado, ditos continuamente, por qualquer coisa que se fizesse por ela e por eles, que precisavam de tudo”.
Só obrigado. Até o fim. Mesmo diante da escolha, quase absurda para a tradição deles, de doar os órgãos de Dwah, que possibilitou sobrevida a três outras pessoas. E logo depois de se tomar essa decisão, eclode uma prece conjunta, contada por alguém que estava lá. “Espontânea, diante de algo imponente que estava acontecendo diante dos olhos. E que ainda não parou de mexer com as pessoas”, explica o médico, pensando na mobilização de tantas pessoas, inclusive na Prefeitura, para o transporte do caixão até Malta, onde Dwah foi sepultada.
E acrescenta sem demora: “Estes dias foram, para mim, aquele tocar a carne de Cristo que o papa Francisco dizia em Pentecostes, e misteriosamente acontecia no encontro com Dwah e os seus familiares”. No mesmo tempo em que o Pontífice levantava a voz na Praça de São Pedro contra a guerra. “Eu experimentava na minha pele o que quer dizer que a paz nasce do encontro com os homens. Diante daqueles rostos víamos tudo o que se deseja para a vida. E brota uma gratidão contínua”.
Como diante de uma criança de dez anos, que também fugiu da Síria com o pai. Chegaram nestes dias, desidratados e desnutridos pela longa viagem num desses barcos que todo dia ancoram na costa de Siracusa. O pai está em pior estado, talvez porque cuidou mais da criança do que de si mesmo. Ambos se recuperam e a criança, diante dos enfermeiros e dos médicos que procuravam tranquilizá-la com sorrisos, pega o biscoito no qual deu apenas uma mordida e caminha até a porta. “Ela procurava o pai, que estava num outro cômodo”, conta uma enfermeira. Levam-na até ele. Se aproxima do pai, estendido numa maca do Pronto Socorro. Acaricia a mão dele e lhe estende o biscoito. O pai coloca o biscoito na boca do filho, mas este insiste. O pai chora. E choram todos os que veem a cena. Não por tristeza, mas pela beleza de algo finalmente humano, que supera inclusive a barbárie de uma guerra sem sentido.
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