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OS FATOS

Carta a uma amiga russa

19/03/2014 - Alex Sigov, estudante ucraniano, escreve à professora moscovita Tatiana Kasatkina no início de março. Fala do verdadeiro espírito da Praça Maidan, os preconceitos e a desinformação. “Ainda que estourasse a guerra, permanecerei sempre o seu amigo de Kiev”
Alex Sigov na Praça Maidan.
Alex Sigov na Praça Maidan.

Cara Tatiana,
nestes dias me parecia não haver particular necessidade de explicar de que modo eu vejo a situação. Come a senhora sabe, eu não sou um político, não sou um militar e nem um jornalista. Mas sou um cidadão de Kiev, que ama muitíssimo a sua cidade e o seu país. Amo-os a tal ponto que me sinto a vontade, seguro e sereno em qualquer outra cidade do mundo. A senhora me propôs compartilhar consigo os meus pensamentos; faço-o com alegria. É porque certas cartas é mais desejável escrevê-las para um Amigo do que para a onívora internet.

Eu estou cansado. Estou cansado de pensar continuamente na política. Cansado de sentir-me refém deste rio de informações irrefreável que é preciso sempre peneirar para poder encontrar nelas uma migalha de verdade. Mas eu estou firmemente convencido de uma coisa: se eu tivesse que ceder logo agora, sentir-me-ia cansado pelo resto da vida. E isto não cabe absolutamente nos meus planos! Portanto a única saída é combater o cansaço, fazer alguma coisa. Surpreende-me quantas centenas de outras pessoas ao meu redor fazem o mesmo: é uma reação em cadeia. Mas não é disto que agora estamos falando. Estamos falando da Ucrânia e da Rússia. E, Deus queira, da verdade.

O que está acontecendo aqui entre nós?

1. A anulação da lei das línguas. O Parlamento, para obter o consentimento do Maidan tomou uma decisão puramente populista: anular a lei das línguas, visto que o Maidan é, na sua maioria, composto por falantes ucranianos. Qual foi a reação do Maidan? A maioria pensou que todos tivessem enlouquecido: que tem a ver agora esta lei, quando o nosso pedido era o de encaminhar um processo para punir a morte de dezenas de pessoas e, por acréscimo, que tem a ver uma lei que faz insurgir a Ucrânia oriental? De qualquer forma, a lei das línguas não foi anulada, porque Turchinov, fazendo as vezes de presidente, se recusou a assinar o decreto.

2. O Setor de direita (isto é, o mal absoluto). O líder do Setor de direita, Dmitrij Jarosh, encontrou nestes dias o cônsul de Israel para lhe assegurar que o antissemitismo é uma coisa inaceitável para eles.
Eu não digo que o Setor de direita não é de direita, digo somente que é absolutamente manejável.

3. Baderovcy\fascistas\nazistas\extremistas. Vamos admitir mesmo que existam e que já tenham chegado a Kiev, onde um em cada dois (se não mais) tem um sobrenome russo, hebreu, polonês, alemão ou outro ainda. Como é que conseguiram? Será que chegaram em silêncio, caladinhos, e convenceram todos os quatro milhões de habitantes de Kiev? Ou talvez os russos ainda acreditem que Kiev não tenha apoiado o Maidan; e que os jornalistas ocidentais foram todos comprados para não dizer ao mundo a verdade? Sei por experiência, com efeito, que os franceses e os alemães são sempre mais rápidos que os russos a reagir à retórica radical da direita. Entretanto agora se calam.

4. A propaganda russa. É difícil explicar como a gente se sente quando diariamente todos nós (e eu em particular) somos submergidos por toneladas de indisfarçáveis mentiras e provocações por parte do Kremlin. Alguns exemplos: A) a televisão russa mostra um enxame de carros em fuga no confim Rússia-Ucrânia (e na realidade se trata do confim com a Polônia); B) um habitante da Criméia fala de contínuas ameaças (e na realidade descobre-se que pagaram um ator profissional para a entrevista); C) as mulheres que choram em Sebastópolis dizendo ter chegado de uma Odessa “flagelada” (e na realidade aquelas mesmas mulheres estavam em Kharkov o dia antes); D) O herói de Kharkov que içou a bandeira russa (e na realidade é um provocador chegado diretamente de Moscou). E outras coisas ainda.

5. A remoção de Lenin. Eu não amo Lenin e estou feliz por ele não estar mais em Kiev, na praça Bessarabskaja. Mas entendo que tirar agora os monumentos de Lenin e até mesmo destruí-los, quer dizer neste momento assustar mortalmente muitas pessoas. Afinal, toda cidade tem o direito de decidir a quem e onde erguer os monumentos nas próprias ruas. Mas será que procede mesmo logicamente o silogismo: quebramos o Lenin = agora irão nos matar todos? Mas que é este pânico?! Quem tirou os monumentos de Lenin não foram uns misteriosos fascistas, mas gente que odeia o comunismo e gente assim existe em todas as regiões da Ucrânia.

6. Eu não nego que existam pessoas de direita na Ucrânia. Muito menos nego que em Kharkov, Sebastópolis, Doneck e em outras cidades milhares de pessoas tenham participado aos meetings pró-Rússia. Esta é a nossa realidade ucraniana. A nós cabe encontrar caminhos para a reconciliação, para o respeito e a compreensão recíprocos. Cabe a nós com isto viver.

E não entendo quem quer fazer a guerra contra nós. A senhora certamente não, assim como não o querem todos os outros meus amigos russos. Não o querem todas aquelas pessoas que na Rússia foram às ruas corajosamente para protestar. Além disso, dificilmente irão combater aqueles que os rotularam com covardia. Aqueles que por dias inteiros incitam à guerra pela internet, partirão por últimos. E eu, se for necessário, irei defender a Ucrânia. E já me alistei voluntário. Eu que não quero. Eu que serei sempre o seu amigo de Kiev.

Alexis Sigov, Kiev

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