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OS FATOS

Ébola: o dia seguinte

por Alessandra Stoppa
23/02/2015 - Até hoje fez mais de 6 mil mortos. Quase 18 mil infectados. Mas o que preocupa agora é o “depois”. A epidemia que alarmou o mundo, vista por quem ficou junto da sua gente: padre Maurizio Boa, missionário na África há quase 20 anos
Voluntário visita casas para falar do vírus.
Voluntário visita casas para falar do vírus.

Certas aldeias estão ligadas por pequenos caminhos no campo, por onde se anda em fila indiana. Aminata, de 10 anos, está parada no meio da passagem, enquanto o pai lhe põe a lenha sobre a cabeça. Ele vai carregando, até que o missionário que assiste à cena irrompe: “Basta, não vê que a menina não aguenta mais?”. Mas ela, debaixo do pesado feixe, com um sorriso, diz: “É meu pai. Sabe quanto consigo levar”.
Padre Maurizio Boa pensa sempre na lição daquela menina quando vê a sua gente aceitar uma vida que aqui, na Serra Leoa, não alivia a carga a ninguém. Missionário da Congregação de São José, há dezoito anos em Freetown, não esperava que chegasse algo tão terrível quanto à guerra. A Serra Leoa ultrapassou a Libéria em número de infectados com Ébola: com 7.798 casos, é o país mais atingido da África ocidental, segundo o boletim da Organização mundial de saúde (total de 17.834 infectados e 6.346 mortos).
“Agora a situação está sob controle, está melhorando, também porque fora criados muitos centros para doentes”, diz o padre Maurizio: “O verdadeiro problema vai ser o pós-Ébola. Antes já não havia trabalho, agora nas ruas multiplicaram-se as crianças que abordam os carros para vender água ou bananas”. Nestes meses, minas e fábricas pararam e os preços dispararam, nesta terra riquíssima em recursos, em que 75% das pessoas vive com um dólar por dia. O pós-Ébola são também os muitos órfãos recuperando e educando, as viúvas com crianças pequenas e, sobretudo, o trauma que o vírus provocou nas relações: “A epidemia alterou o tecido social”. Olha-se com medo e desconfiança para o amigo, o vizinho. Ninguém se abraça mais. Na missa, na saudação da paz acenam com a cabeça. “Nestes meses a sirene contínua das ambulâncias dizia-nos que a morte nos rodeava”. Porque “o inimigo” é invisível, não se sente, não se vê quando chega.

O grito de Jenku Sesay. A comunidade do padre Maurizio é a de Waterloo e das aldeias vizinhas, a uma hora e meia da capital, aonde nunca deixou de ir todos os dias. Mesmo quando os corpos dos primeiros mortos, segundo os ritos tradicionais, eram lavados e a água aspergida sobre os familiares. Aí começou a mortandade. Permanece vivo o choque de 21 de setembro, quando foram encontrados 45 cadáveres num dia. Rapidamente não havia mais vagas nos poucos centros de saúde que ficaram abertos: os doentes estavam no chão ao ar livre, à chuva. A maior parte morria em casa, com medo de serem rejeitados e pelos boatos de que os médicos davam injeções letais.
Só agora os doentes saem de casa. Recuperaram a confiança, vendo que há possibilidade de cura pela proximidade da Igreja e de tantas ONGs que não desistiram de acompanhar, informar, apoiar. Desde aquele 21 de setembro, nasceu na comunidade uma força tarefa voluntária para ir às casas. “Agora com a emergência preparamos mais de 90 pessoas que vão, família a família, pelas aldeias de Kissy Town (22.500 pessoas) e de Morabie (12 mil)”. Controlam a situação, tranquilizam as pessoas e fazem uma triagem, porque há confusão e os sintomas de malária, de tifo, ou simplesmente os enjoos de uma gravidez são confundidos com Ébola. Muitas pessoas estão ainda trancadas em casa, de quarentena, e precisam que alguém as leve o necessário para sobreviver. As escolas por enquanto permanecem fechadas. “Os onze anos de guerra foram terríveis, mas sabia-se mais ou menos o que fazer. Diante do Ébola, não. Quando as crianças pulam eu seu colo, o que fazer?”. Ele abraça-as. “São os meus filhos”.
Chegou em 1996, aos 52 anos. Mas a cabeça e o coração está aqui desde 1980. Afeiçoou-se à Serra Leoa quando ainda a missão não tinha nascido: pároco na Itália, em Pádua e depois em Viterbo, envolvia os fiéis e os jovens na coleta de fundos para a primeira pick-up vermelha para mandar para lá. “Eram oportunidades para formar missionários no coração e nos sentir ligados aos nossos amigos que já estavam aqui”. Assim que chegou não teve tempo de planejar o que fazer e como viver: a guerra já havia decidido por ele. “Caritas Christi urget nos. E, se não agora, quando?”. Foi a pergunta fulgurante a que teve que responder quando Jenku Sesay entrou na igreja desesperado: “Eu não posso urinar sozinho” . Sem mãos, procurava ajuda para ir ao banheiro.
Para onde quer que fosse, padre Maurizio encontrava pela frente aqueles cotocos erguidos para não sangrar. Jovens e crianças mutilados pelos rebeldes. “Tinham um olhar apagado e suplicante, perguntando: e agora o que faremos?”. Desde então dedicou-se a eles: durante a guerra, com ajuda de muitas associações, abriu três casas-família onde acolheu os jovens, depois os poços, os projetos para as mães e as crianças desnutridas, para a alfabetização de adultos, para os cegos, a escola. Ao longo destes anos viu os seus primeiros jovens seguirem para a universidade, foi raptado pelo rebeldes e espancado por soldados nigerianos, abriu o Centro de Saúde Comunitário São José em Kissy Low Coast, nos arredores da capital. Aqui, onde tudo se torna letal, mesmo uma bronquite ou desidratação: uma criança em cada quatro morre antes dos 5 anos. Na pequena aldeia de Kent, um triângulo de terra no litoral, nasceu uma associação de 24 jovens pescadores: tinham canoas como cascas de noz, hoje têm 6 barcos, 6 motores e 6 redes. E uma câmara frigorífica onde conservar o peixe. Pensa com a mesma alegria que sentiu, centenas de vezes, ao entregar a amputados de guerra as chaves de uma casa de tijolo para eles (há 7 mil mutilados no país).

Os trabalhos de Sidimba. “Nunca me cansarei de agradecer ao Senhor por me ter dado a companhia desta gente. A felicidade está toda neles e por eles. E a partilham com você até que se sinta em comunhão com Deus”. Não tem nada a acrescentar sobre a sua vida aqui. Quando explodiu a epidemia, o pensamento de ir embora nem lhe passou pela cabeça. Ficou pela família de Nakama: eram dez em casa e agora são dois. Pelo pai de Usman, que continua trabalhando duro pela comunidade mesmo após o Ébola ter levado seu filho. Ficou pela Winnifred, uma jovem mulher que nestes meses correu por toda a parte ajudando, assistindo, cuidando. Ou pela Sidimba, de 9 anos, que só tem um braço. “Vale menos que uma cabra”, dissera-lhe o pai quando a largou nos seus braços. “Aprendi tanto com ela, que nunca foi à escola e começou fazendo os trabalhos de casa no meu escritório”. Encostava a cabeça na folha para escrever e, quando se enganava, tentava apagar mas não conseguia. Atirava o caderno ao chão, ajoelhava-se em cima dele e apagava. Se a folha se rasgava, chorando, recomeçava do princípio.
“Aqui temos uma necessidade: viver a presença de Deus. Vejo isso nas pessoas que dão a própria vida, como Jesus. Não apenas os médicos e enfermeiros, ou quem morreu por tratar outros. Quantos gestos concretos de amor vejo, todos os dias! E não gestos feitos por dinheiro, nem só por profissionalismo. Dentro têm sempre algo de religioso”. As pessoas nunca deixaram de vir à igreja rezar. “É por nós próprios que o fazemos: temos necessidade de sentir Deus perto de nós, de pedir que tudo isto não passe em vão. Como a criança chamando pela mãe: sabe bem que ela está, está ali, mas chama por ela, chama por ela. Precisa sentir a sua carícia”.
A igreja de Cristo Rei em Waterloo é uma pequena comunidade católica no meio de um mar de muçulmanos. “A maior comoção para mim é quando alguém recebe o Batismo. Quem me pede é porque conheceu Jesus”. Sobretudo nestes últimos meses, atravessou o desconforto que se converte em oração e uma impotência que aflige muito. “Sou sacerdote. Não o sou unicamente quando rezo ou prego, sou sempre, vislumbro o empenho da minha consagração ao deixar-me envolver com os meus pobres. Tenho só um anúncio a oferecer: a vida plena, a certeza de um amor que não desilude. Mas oferecê-lo a quem não tem nada, sem lhe dar educação, alimento ou medicamento, é vazio. E tenho permanente necessidade da comunhão com Jesus: sem Ele depressa me fartaria e largaria tudo”.

A colher. Para ele, sem um pobre como amigo a vida não pode ser significativa. “Como amigo. É muito diferente ouvir dizer: ‘Você faz tanto por mim’, ou ouvir dizer: ‘Você me quer bem’“. Certo dia, na casa-família, estavam comendo o habitual mix de arroz, folhas de mandioca e peixe. Pela primeira vez há um único prato em comum, o padre Maurizio não tem um para si. As crianças comem com as mãos, só ele tem uma colher. “Um por um, puseram-se de boca aberta para eu lhes dar comida. Fiz isso com todos e, depois, houve um instante de expectativa. Mas depois percebi...” Ao verem que comem com a mesma colher, de repente uma delas diz: “Ele gosta de nós”. “Aquela frase não foi dita diretamente para mim, e não era para eu ter ouvido. Mas fez-me perceber que, além da ajuda e do sustento, eles buscam a certeza do amor”.
Todos os anos o padre Maurizio aguarda o relatório da ONU sobre o desenvolvimento humano. A Serra Leoa está invariavelmente no fim. Assim como o da UNICEF sobre a infância. E hoje em dia, depois do vírus mais grave dos últimos quarenta anos, está devastada. “Quando os peixes choram ninguém vê as suas lágrimas”, diz um provérbio africano que lhe vem à memória diante das classificações. “Nós somos os últimos em tudo. É verdade. Mas quando recitamos o Pai Nosso, sentimo-nos os primeiros. Para Alguém somos os primeiros”.

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