Certas aldeias estão ligadas por pequenos caminhos no campo, por onde se anda em fila indiana. Aminata, de 10 anos, está parada no meio da passagem, enquanto o pai lhe põe a lenha sobre a cabeça. Ele vai carregando, até que o missionário que assiste à cena irrompe: “Basta, não vê que a menina não aguenta mais?”. Mas ela, debaixo do pesado feixe, com um sorriso, diz: “É meu pai. Sabe quanto consigo levar”.
Padre Maurizio Boa pensa sempre na lição daquela menina quando vê a sua gente aceitar uma vida que aqui, na Serra Leoa, não alivia a carga a ninguém. Missionário da Congregação de São José, há dezoito anos em Freetown, não esperava que chegasse algo tão terrível quanto à guerra. A Serra Leoa ultrapassou a Libéria em número de infectados com Ébola: com 7.798 casos, é o país mais atingido da África ocidental, segundo o boletim da Organização mundial de saúde (total de 17.834 infectados e 6.346 mortos).
“Agora a situação está sob controle, está melhorando, também porque fora criados muitos centros para doentes”, diz o padre Maurizio: “O verdadeiro problema vai ser o pós-Ébola. Antes já não havia trabalho, agora nas ruas multiplicaram-se as crianças que abordam os carros para vender água ou bananas”. Nestes meses, minas e fábricas pararam e os preços dispararam, nesta terra riquíssima em recursos, em que 75% das pessoas vive com um dólar por dia. O pós-Ébola são também os muitos órfãos recuperando e educando, as viúvas com crianças pequenas e, sobretudo, o trauma que o vírus provocou nas relações: “A epidemia alterou o tecido social”. Olha-se com medo e desconfiança para o amigo, o vizinho. Ninguém se abraça mais. Na missa, na saudação da paz acenam com a cabeça. “Nestes meses a sirene contínua das ambulâncias dizia-nos que a morte nos rodeava”. Porque “o inimigo” é invisível, não se sente, não se vê quando chega.
O grito de Jenku Sesay. A comunidade do padre Maurizio é a de Waterloo e das aldeias vizinhas, a uma hora e meia da capital, aonde nunca deixou de ir todos os dias. Mesmo quando os corpos dos primeiros mortos, segundo os ritos tradicionais, eram lavados e a água aspergida sobre os familiares. Aí começou a mortandade. Permanece vivo o choque de 21 de setembro, quando foram encontrados 45 cadáveres num dia. Rapidamente não havia mais vagas nos poucos centros de saúde que ficaram abertos: os doentes estavam no chão ao ar livre, à chuva. A maior parte morria em casa, com medo de serem rejeitados e pelos boatos de que os médicos davam injeções letais.
Só agora os doentes saem de casa. Recuperaram a confiança, vendo que há possibilidade de cura pela proximidade da Igreja e de tantas ONGs que não desistiram de acompanhar, informar, apoiar. Desde aquele 21 de setembro, nasceu na comunidade uma força tarefa voluntária para ir às casas. “Agora com a emergência preparamos mais de 90 pessoas que vão, família a família, pelas aldeias de Kissy Town (22.500 pessoas) e de Morabie (12 mil)”. Controlam a situação, tranquilizam as pessoas e fazem uma triagem, porque há confusão e os sintomas de malária, de tifo, ou simplesmente os enjoos de uma gravidez são confundidos com Ébola. Muitas pessoas estão ainda trancadas em casa, de quarentena, e precisam que alguém as leve o necessário para sobreviver. As escolas por enquanto permanecem fechadas. “Os onze anos de guerra foram terríveis, mas sabia-se mais ou menos o que fazer. Diante do Ébola, não. Quando as crianças pulam eu seu colo, o que fazer?”. Ele abraça-as. “São os meus filhos”.
Chegou em 1996, aos 52 anos. Mas a cabeça e o coração está aqui desde 1980. Afeiçoou-se à Serra Leoa quando ainda a missão não tinha nascido: pároco na Itália, em Pádua e depois em Viterbo, envolvia os fiéis e os jovens na coleta de fundos para a primeira pick-up vermelha para mandar para lá. “Eram oportunidades para formar missionários no coração e nos sentir ligados aos nossos amigos que já estavam aqui”. Assim que chegou não teve tempo de planejar o que fazer e como viver: a guerra já havia decidido por ele. “Caritas Christi urget nos. E, se não agora, quando?”. Foi a pergunta fulgurante a que teve que responder quando Jenku Sesay entrou na igreja desesperado: “Eu não posso urinar sozinho” . Sem mãos, procurava ajuda para ir ao banheiro.
Para onde quer que fosse, padre Maurizio encontrava pela frente aqueles cotocos erguidos para não sangrar. Jovens e crianças mutilados pelos rebeldes. “Tinham um olhar apagado e suplicante, perguntando: e agora o que faremos?”. Desde então dedicou-se a eles: durante a guerra, com ajuda de muitas associações, abriu três casas-família onde acolheu os jovens, depois os poços, os projetos para as mães e as crianças desnutridas, para a alfabetização de adultos, para os cegos, a escola. Ao longo destes anos viu os seus primeiros jovens seguirem para a universidade, foi raptado pelo rebeldes e espancado por soldados nigerianos, abriu o Centro de Saúde Comunitário São José em Kissy Low Coast, nos arredores da capital. Aqui, onde tudo se torna letal, mesmo uma bronquite ou desidratação: uma criança em cada quatro morre antes dos 5 anos. Na pequena aldeia de Kent, um triângulo de terra no litoral, nasceu uma associação de 24 jovens pescadores: tinham canoas como cascas de noz, hoje têm 6 barcos, 6 motores e 6 redes. E uma câmara frigorífica onde conservar o peixe. Pensa com a mesma alegria que sentiu, centenas de vezes, ao entregar a amputados de guerra as chaves de uma casa de tijolo para eles (há 7 mil mutilados no país).
Os trabalhos de Sidimba. “Nunca me cansarei de agradecer ao Senhor por me ter dado a companhia desta gente. A felicidade está toda neles e por eles. E a partilham com você até que se sinta em comunhão com Deus”. Não tem nada a acrescentar sobre a sua vida aqui. Quando explodiu a epidemia, o pensamento de ir embora nem lhe passou pela cabeça. Ficou pela família de Nakama: eram dez em casa e agora são dois. Pelo pai de Usman, que continua trabalhando duro pela comunidade mesmo após o Ébola ter levado seu filho. Ficou pela Winnifred, uma jovem mulher que nestes meses correu por toda a parte ajudando, assistindo, cuidando. Ou pela Sidimba, de 9 anos, que só tem um braço. “Vale menos que uma cabra”, dissera-lhe o pai quando a largou nos seus braços. “Aprendi tanto com ela, que nunca foi à escola e começou fazendo os trabalhos de casa no meu escritório”. Encostava a cabeça na folha para escrever e, quando se enganava, tentava apagar mas não conseguia. Atirava o caderno ao chão, ajoelhava-se em cima dele e apagava. Se a folha se rasgava, chorando, recomeçava do princípio.
“Aqui temos uma necessidade: viver a presença de Deus. Vejo isso nas pessoas que dão a própria vida, como Jesus. Não apenas os médicos e enfermeiros, ou quem morreu por tratar outros. Quantos gestos concretos de amor vejo, todos os dias! E não gestos feitos por dinheiro, nem só por profissionalismo. Dentro têm sempre algo de religioso”. As pessoas nunca deixaram de vir à igreja rezar. “É por nós próprios que o fazemos: temos necessidade de sentir Deus perto de nós, de pedir que tudo isto não passe em vão. Como a criança chamando pela mãe: sabe bem que ela está, está ali, mas chama por ela, chama por ela. Precisa sentir a sua carícia”.
A igreja de Cristo Rei em Waterloo é uma pequena comunidade católica no meio de um mar de muçulmanos. “A maior comoção para mim é quando alguém recebe o Batismo. Quem me pede é porque conheceu Jesus”. Sobretudo nestes últimos meses, atravessou o desconforto que se converte em oração e uma impotência que aflige muito. “Sou sacerdote. Não o sou unicamente quando rezo ou prego, sou sempre, vislumbro o empenho da minha consagração ao deixar-me envolver com os meus pobres. Tenho só um anúncio a oferecer: a vida plena, a certeza de um amor que não desilude. Mas oferecê-lo a quem não tem nada, sem lhe dar educação, alimento ou medicamento, é vazio. E tenho permanente necessidade da comunhão com Jesus: sem Ele depressa me fartaria e largaria tudo”.
A colher. Para ele, sem um pobre como amigo a vida não pode ser significativa. “Como amigo. É muito diferente ouvir dizer: ‘Você faz tanto por mim’, ou ouvir dizer: ‘Você me quer bem’“. Certo dia, na casa-família, estavam comendo o habitual mix de arroz, folhas de mandioca e peixe. Pela primeira vez há um único prato em comum, o padre Maurizio não tem um para si. As crianças comem com as mãos, só ele tem uma colher. “Um por um, puseram-se de boca aberta para eu lhes dar comida. Fiz isso com todos e, depois, houve um instante de expectativa. Mas depois percebi...” Ao verem que comem com a mesma colher, de repente uma delas diz: “Ele gosta de nós”. “Aquela frase não foi dita diretamente para mim, e não era para eu ter ouvido. Mas fez-me perceber que, além da ajuda e do sustento, eles buscam a certeza do amor”.
Todos os anos o padre Maurizio aguarda o relatório da ONU sobre o desenvolvimento humano. A Serra Leoa está invariavelmente no fim. Assim como o da UNICEF sobre a infância. E hoje em dia, depois do vírus mais grave dos últimos quarenta anos, está devastada. “Quando os peixes choram ninguém vê as suas lágrimas”, diz um provérbio africano que lhe vem à memória diante das classificações. “Nós somos os últimos em tudo. É verdade. Mas quando recitamos o Pai Nosso, sentimo-nos os primeiros. Para Alguém somos os primeiros”.
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