A barbaridade elevada a lei, o horror cotidiano, o genocídio sistemático, as matanças de inocentes. Mas se prepara algo pior na Síria e no Iraque, e talvez também em outros lugares. “Vão ver o que acontecerá quando as operações de segurança tentarão libertar cidades importantes como Mosul ou Tikrit, zonas urbanas onde as contraofensivas serão dificultadas pelo ambiente e por um adversário feroz que não tem interesse de ficar vivo”. Fala o doutor Marzio Babille, médico triestino responsável do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Iraque. Estava em Bagdá desde final de 2011, quando as tropas americanas começaram a retirar-se, mas desde junho do ano passado vive em Erbil, capital da região do Curdistão iraquiano e cidade na qual se refugiam milhares de pessoas em fuga das atrocidades.
Babille é testemunha de crueldades indescritíveis; entre suas tarefas, além de socorrer as crianças e as famílias de refugiados, as pessoas desalojadas, cabe também a de documentar com fotos e relatórios os horrores desta guerra. “Os jihadistas combatem desta maneira terrível porque são votados à morte. Não procuram a vida. É um conceito novo nos conflitos, é difícil encontrar um adversário que a um certo ponto não se renda ou não recue”. Os combates de casa em casa para reconquistar os territórios ocupados pelo ISIS serão um massacre que se acrescentará aos genocídios.
Babille e o Unicef foram entre os primeiros a denunciar as violências contra os menores quando, “com uma brutalidade sem precedentes”, no começo de julho a ofensiva jihadista tomou a província de Nínive, no Noroeste iraquiano próximo ao confim da Síria. Nos 16 vilarejos do distrito de Sinjar viviam 350 mil Yazidis: “Uma minoria não muçulmana perseguida ao longo dos séculos que nunca, até agora, havia sofrido um genocídio programado. Encontraram refúgio inicialmente nas montanhas do Gebel Sinjar e uma parte deles foi salva refugiando-se na província de Dohuk. Hoje temos no Curdistão 238mil refugiados sírios assistidos em 12 campos organizados pelo governo do território autônomo curdo junto com a Unhcr e Unicef. Lá eles têm serviços essenciais e estão melhor do que a maré de iraquianos desalojados, que hoje somam 920 mil, em fuga das três províncias setentrionais de Nínive, Salah al-Din e Diyala. Estas pessoas são hospedadas em outros 26 campos”.
O êxodo no Norte começou depois da queda de Mosul ocorrida em 9 de junho de 2014. Mas a pior crise tinha estourado dia 3 de janeiro de 2014 com a queda de Falluja, a 40 quilômetros de Bagdá. “Tribos locais e filiados de Al Qaida, com o reforço de milicianos chegados da Síria, conquistaram a província de Anbar, ainda inacessível” explica Babille. “Pensamos que são meio milhão os desalojados aprisionados no Anbar, todos sunitas, pessoas em condição de gravíssima marginalidade e carentes de ajudas. O ISIS controla a terceira parte do Iraque. Somando refugiados sírios e desalojados iraquianos, passam de dois milhões as pessoas necessitadas de alimentos, água, roupas, produtos de higiene, medicamentos essenciais. Um número incrível”.
O Unicef abriu um importante corredor humanitário no início de julho para assistir os cristãos de Mosul em fuga em direção à localidade de Tall Kayf, quando a situação precipitou. “Chegamos com o arcebispo Nona a esta cidade antiguíssima, desde sempre habitada por cristãos, onde cavamos dois poços de água, depois a ofensiva jihadista levou os cristãos a retirar-se para Erbil e Ankawa. As minorias são perseguidas com sutil planejamento. As violências não são casuais: seria errado considerar o ISIS um grupo de criminosos ou de loucos. Existe um projeto político, o de exterminar as oposições. O que temos visto e os relatórios colhidos dia após dia (pois o Unicef vive e opera nas comunidades, com 250 facilitadores membros destas comunidades que ajudam os civis e fornecem informações de primeira mão) são unívocos: a brutalidade é fruto de um desígnio”.
São seis as violações da infância que o Unicef deve verificar e denunciar: mortes e mutilações, sequestro, abuso físico e tráfico de menores, recrutamento para fins de combate, ataque deliberado a escolas ou centros de saúde, deliberada restrição do espaço humanitário. “Temos provas de que tudo isso é perpetrado pelo exército jihadista, incluindo os ataques suicidas às escolas”. Como se vive nesta barbaridade? Responde Babille: “Temos que dar resposta a quem sobrevive. Não basta identificar os casos de violação dos direitos da infância: é preciso ir ao encontro dos menores. As crianças têm necessidade de próteses, muitas ficaram surdas ou cegas, todas necessitam de cuidados médicos e psicológicos porque foram testemunhas de uma ferocidade bestial. O Unicef concentrou todos os recursos disponíveis na resposta à emergência humanitária, incluindo as intervenções prioritárias de proteção”.
Acrescenta Babille: “A ONU nesta crise alcançou populações em gravíssima dificuldade primeiro que muitas outras. Mas aos meus colaboradores eu repito: dêem algo do que é seu, não esperem que a organização envie dinheiro, máquinas, medicamentos; mexam-se, coloquem em jogo a si mesmos, eu o fiz e disso sou profundamente orgulhoso. É uma mensagem simples: dedicar a vida aos valores pelos quais vivemos. Continuarei a fazê-lo também quando tiver aposentado do Unicef”.
O Governo italiano, através do Ministro do Exterior que veio ao Iraque no Natal, tomou uma decisão importante: “Dar assistência imediata às mulheres e crianças das minorias. É uma escolha que deve ser apoiada” afirma Babille “símbolo da capacidade do nosso povo de assumir situações difíceis. Não tem importância o volume de dinheiro, mas o gesto: outros não o fizeram. O Unicef tem um compromisso especial que assumimos também no Iraque e que tencionamos perseguir com determinação: a escola. A educação tem importância decisiva. Construímos uma escola em cada campo que é implantado, em alguns campos mais de uma. Entretanto o 60% dos desalojados não vive nos campos mas nas comunidades, em casas alugadas ou alojamento improvisados: por isto encaminhamos um programa de cooperação com o Ministério da Educação curdo. Reformamos 647 prédios escolares que na primeira fase da emergência foram ocupados pelos desalojados e hoje abrigam aulas regulares, com professores que adaptam os programas para alunos com língua, cultura e tradições diferentes porque provêm de regiões árabes, enquanto aqui estamos no Curdistão”. Reeducar um povo que viu fuzilar os pais, estuprar as mães, deportar irmãos e irmãs, reduzir em escravidão milhares de pessoas. É também um modo para evitar a fuga para o exterior de milhares de famílias perseguidas, despojadas de uma vida normal e convencidas de que nada mais será como antes.
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