Há pouco mais de um mês, no dia 9 de janeiro de 2017, faleceu o sociólogo Zygmunt Bauman, aos 91 anos. Em outubro ele tinha sido entrevistado pela redação de Tracce (edição italiana de Passos) e publicamos aqui amplos trechos da matéria.
“É uma luz. A única, no fim do túnel misteriosamente longo e escuro que estamos atravessando. Mas é uma luz misteriosamente brilhante”. Uncanny, ou “misterioso, surpreendente”, declinado na forma de advérbio. Disse duas vezes em duas frases, quando fala do Papa Francisco e do seu encontro em Assis, em setembro 2016. No encontro entre as religiões mundiais, desejado pelo Papa e organizado pela Comunidade de Santo Egídio, estava também ele: Zygmunt Bauman. “O que lhe disse? Seria muito presunçoso da minha parte, pensar que tinha alguma coisa a acrescentar ao que ele já sabe sobre a situação difícil do homem de hoje, ou sobre o que significa o sofrimento para quem não faz experiência em primeira pessoa… Apenas lhe confessei que olho para ele como uma luz”.
Judeu de origem, polonês de nascimento e cosmopolita de vocação (viveu entre Varsóvia, Londres e Tel-aviv, antes de ganhar raízes em Leeds, Reino Unido), Bauman é um dos intelectuais mais famosos – e prolíficos – do mundo. Sociólogo e filósofo, inventor de fórmulas capazes de definir em duas palavras mudanças inteiras de época (uma acima de todas: a “sociedade líquida”, ou cada vez mais pobre de relações, desgastada e indefinível), Bauman é sobretudo um grande observador. Um homem capaz de fotografar o mundo e quem o habita em detalhe, indo ao fundo, com um olhar penetrante e ao mesmo tempo cheio de empatia. Ele dizia em entrevista ao Corriere della Sera: “Os demônios que nos perseguem – o medo de perder o nosso lugar na sociedade, a fragilidade dos marcos que alcançamos – não se evaporaram, nem desapareceram”. Porque a raiz da incerteza é mais profunda. É existencial.
Partamos daqui, então. O que é esta “insegurança existencial”? De onde nasce? Da “ruptura das relações” a que se referia naquela entrevista, ou há mais alguma coisa?
Kant, o explorador mais incansável dos mistérios do modo unicamente humano de estar no mundo, em Crítica da razão prática escreveu uma frase célebre: “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e mais profunda é a reflexão sobre elas: o céu estrelado acima de mim, e a lei moral em mim”. O “céu estrelado” indica aquilo que está além do alcance humano, a nossa capacidade de afrontar; e a “lei moral” indica os dilemas entre os quais os humanos estão condenados a escolher. Porém, mais de um século antes destas palavras, Blaise Pascal tinha aprofundado esta angustiante e assustadora inadequação: “Quando considero a breve duração da minha vida, absorvida pela eternidade que a precede e aquela que se lhe segue, o pequeno espaço que ocupo e que vejo, abismado na infinita imensidão de espaço que ignoro e que me ignoram, me assusto e me surpreendo por me ver aqui em vez de lá, agora em vez de então. Quem me pôs aqui? Por vontade de quem este lugar e este tempo me foram destinados?” Para chegar à conclusão de que: “Sendo incapazes de eliminar a morte, a miséria e a ignorância, os homens decidiram, para serem felizes, não pensar em tais coisas…”. O problema é que, por mais que nos esforcemos para seguir esta decisão, a reflexão e o pensamento permanecem obstinadamente partes inevitáveis da nossa condição. Por isso, a “insegurança existencial” é esculpida indelevelmente no modo de estar no mundo do homem. É esse o lugar de onde vem e de onde não pode escapar.
O primeiro reflexo desta insegurança é o “medo do outro”. Explicou muito bem porque é que os “estranhos à porta” nos dão tanto medo. Mas não pensa que no fundo haja também o medo de interrogar-se sobre nós mesmos? O outro que bate à minha porta interpela-me inevitavelmente sobre quem eu sou, que ideia tenho da vida, das relações, daquilo que tem valor… Erguer muros é também uma forma de fugir desta questão?
O sentimento de “insegurança” deriva de uma mistura de incerteza e ignorância: sentimo-nos humilhados porque inadequados para a nossa tarefa, e a consequência é a queda da estima e da confiança em nós mesmos. É algo que diz respeito a todos. Ora, “os outros” – em particular aqueles que classificamos como desconhecidos, estranhos ou estrangeiros – são particularmente fecundos em reforçar um sentimento deste tipo.
Em Conversas sobre Deus e o homem o senhor diz que “o momento do nascimento da incerteza foi o momento do nascimento da moralidade. E do eu moral, consciente de estar andando sobre uma corda bamba. Condenando os homens à escolha, (…) Deus convidou-os a tomar parte na obra da criação”. Não será que, diante de problemas assim tão grandes, se revela que temos medo deste “convite”? Em suma, temos medo da nossa liberdade? E se sim, por quê?
É uma velha e longa história… Talvez até mesmo uma constante, visto que as rebeliões contra a liberdade, afinal, se repetem com uma surpreendente regularidade; parece impossível, mas cada luta destemida contra a escravidão, a opressão e a restrição da liberdade, cedo ou tarde empurra inevitavelmente o pêndulo das disposições e das paixões a dar uma volta de 180 graus, incrementando o número de quantos estão prontos a aceitar – até mesmo a querer – o advento de novos “giros de vida”. Assim, as portas fechadas tendem a aumentar. É um fenômeno descrito pormenorizadamente por Erich Fromm, no seu clássico Fuga da liberdade. Hoje – pelo menos aqui no Ocidente e entre as gerações felizes que nunca experimentaram na primeira pessoa as delícias de uma vida sob o despotismo e a tirania – estamos vivendo outro semelhante virar do pêndulo, desencadeado pelos mesmos fatores do passado. O fato é que a liberdade só pode chegar acompanhada pelo peso e os riscos da responsabilidade. Quanto mais débeis são as costas de cada indivíduo, mais pesada é a responsabilidade descarregada nele com fenômenos como as privatizações e comercializações das funções sociais, patrocinadas pelo Estado e reforçadas pelos mercados. O resultado que devemos esperar é o crescimento de uma multidão de “homens e mulheres fortes” que vislumbram a oportunidade de lucros eleitorais e não esperam outra coisa além de se renderem a esta tentação.
É um grande risco…
A verdade é que está crescendo cada vez mais o número de pessoas expostas aos riscos, às armadilhas e às emboscadas de uma vida vivida sob as regras do mercado, cuja nostalgia do “Paraíso perdido” coincide com estarem livres da escolha; mais precisamente, com o cancelamento do dever de tomar conta e de contribuir para o bem-estar do mundo e da hospitalidade dos humanos que aí habitam. Mas sonhar em seguir o exemplo de Pôncio Pilatos e lavar as mãos da batalha entre bem e mal, moralidade e indiferença, verdade e mentira, significa renunciar à dignidade humana. Ou (como nos foi ensinado por Kant e Pico della Mirandola), renunciar precisamente àquele preciso “convite de Deus”, dirigido unicamente à espécie humana, de participar nos acabamentos do ato da criação. E que, no fundo, é o motivo pelo qual foram dadas aos homens a razão, a sociabilidade e a liberdade de escolha.
O que pode vencer o medo?
Certamente, não os objetivos de curto prazo, os cortes e as soluções instantâneas… Sobre isto me impressionou muito a intervenção do Papa Francisco na entrega do Prêmio Carlos Magno. Depois de ter evidenciado o incremento, a assimilação e a prática cotidiana da “cultura do diálogo” como estrada principal para a coexistência pacífica dos homens – e, ao mesmo tempo, para uma gradual, mas decisiva dispersão dos medos recíprocos –, sublinhou a necessidade de introduzir a arte do diálogo a todos os níveis de educação. Obviamente, a educação é uma estratégia oposta às campanhas una tantum; está programada para ter efeitos duradouros e preferivelmente irreversíveis, tem necessidade de tempo – talvez até mesmo um tempo que se estende a mais gerações; requer muita paciência e uma firme determinação, capaz de resistir ao impacto congelante dos tropeços, erros e faltas ocasionais, inevitáveis. Além disso, é preciso notar que numa época como a nossa, marcada pelo acesso universal aos meios de informação e por uma maciça e onipresente pressão da publicidade e “relações públicas”, a educação já não é (como sempre foi) uma atividade limitada à escola; por mais que os programas escolares sejam elaborados com cuidado, já não são os únicos a incidir na formação da mentalidade e do caráter. Que tenhamos sucesso sobre a multiplicidade dos seus concorrentes é tudo, menos óbvio.
Nos últimos tempos tem falado do Papa frequentemente, com admiração. Disse que para enfrentar o problema das migrações “devemos estudar e aplicar a sua análise” e “esperar que a sua palavra se encarne nas nossas ações”. Por quê? O que o impressiona no Papa?
Penso que Francisco é o presente mais precioso que a Igreja cristã ofereceu ao nosso mundo perturbado, perdido nos seus caminhos, confuso, sem bússola e até agora à deriva. Voltou a dar vigor à esperança, até agora murcha, de um mundo alternativo e melhor, feito à medida dos seus desejos e dos sonhos do homem. Penso que é a única figura pública em cena que é movida por este desejo e que é capaz de persegui-lo. A sua voz vai muito mais longe do que o círculo incestuoso das elites políticas: chega às massas que os gerentes dos alto-falantes não conseguem ou não se preocupam em alcançar, deixadas sozinhas para encontrar uma saída da sua atual incerteza.
Em seu livro Estranhos à porta (Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 2017), a certo ponto, escreve: “A única saída do desastre de hoje passa pela recusa da separação (…); temos de ir à procura de ocasiões de encontro próximo e de contato cada vez mais aprofundado”. E mais à frente explica que os muros, o populismo, em suma, todo este mecanismo de defesa do outro e do medo “parece perfeito e infalível. E seria realmente, se não fosse pela presença de uma força de sinal oposto: pelo fenômeno do encontro” que leva a um “diálogo tendo em vista um acordo incondicionado”. O que é para o senhor este “encontro”? Por que é tão decisivo, tem uma “força” tal para mudar as cartas na mesa? À primeira vista parece tão pouco…
Hoje temos à disposição grandes “zonas de conforto” eletrônicas para nos proteger dos encontros, com a simples decisão de eliminar a alteridade dos outros da nossa vista, do nosso ouvido e da nossa preocupação. Mas uma comodidade deste gênero permanece inatingível no mundo desconexo, ou no real: no bairro, pelas ruas, no posto de trabalho, nas escolas frequentadas pelos nossos filhos. A realidade do outro, com o risco constante que comporta o encontro, o iniciar uma conversa com alguém, da conversa e da interação, não pode ser eliminada eletronicamente, nem suspensa. Deve ser levada em conta. É certo que permanece a possibilidade, como observou Martin Buber, de “desintoxicar-se” destes encontros inevitáveis degradando-os à forma insignificante de “encontros fracassados”, ou mantendo sempre aberta uma saída, sob a forma de um celular no bolso. Mas estes “encontros fracassados”, quando inesperadamente se erguem ao nível dos verdadeiros encontros, nos induzem a usar a arte do diálogo e a aceitar o caso fortuito. E nos fazem correr o risco de pôr em prática este diálogo, livremente e de perto. Até àquela “fusão dos horizontes” de que fala Hans Gadamer, na qual a alteridade do outro se redimensiona: rasgando as tendas, desmontando as cercas e as barracas e destruindo os muros. É um risco que no mundo offline permanece sempre aberto e próximo.
Dom Luigi Giussani, o fundador de CL, aos primeiros jovens que o seguiam, nos anos cinquenta, dizia que o “diálogo é comunicar a própria vida pessoal a outras vidas pessoais: partilhar a existência dos outros na própria existência”. Não tem nada a ver com a dialética, em suma, mas é uma oportunidade enorme. O que o senhor pensa? Como define o “diálogo”?
Onde podemos ir, o que é que podemos explorar na procura de respostas a perguntas do tipo “mas eu, quem sou”? De Descartes em diante, o “cogito ergo sum” (penso, logo existo”), fez-nos olhar para dentro. Com aquela frase, Giussani – a mim parece-me em estreita afinidade com autores como George Herbert Mead – fala de uma interação entre interno e externo, entre o “eu” (a minha auto-definição) e o “me” (a minha percepção de como os outros me definem). Até algumas décadas atrás, a investigação sobre o nascimento e o desenvolvimento de si mesmo apontavam para uma “autenticidade” quase levada a entrar à força e imaginada secretamente no interior obscuro da psique, exposta às pressões repressivas das normas culturais e na expectativa dos esforços monitorizados pelo terapeuta para sair da prisão… Hoje, como antecipou Giussani, está ganhando terreno a tendência de substituir o cogito convencional por qualquer coisa que se destaca claramente do egocentrismo de Descartes. Qualquer coisa que se torna cada vez mais próxima do “tu és, portanto [por isso] eu sou”.
QUEM É
Zygmunt Bauman nasceu em Poznan (Polônia) em 19 de novembro de 1925, de pais judeus. Aos 19 anos foge da ocupação alemã e acaba por alistar-se entre os russos. Depois da guerra, estuda sociologia em Varsóvia. Depois na London School of Economics. Aproxima-se do marxismo. Ensina na Polônia, em 1968 é expatriado para Israel, três anos depois vai definitivamente para o Reino Unido onde, de 1972 a 1990, ensina em Leeds. Entre as suas obras destacam-se Liberdade (1988), Ética pós-moderna (1992), Modernidade líquida (2000), A sociedade sitiada (2002), Vidas desperdiçadas (2003), Conversas sobre Deus e o homem (2013), Babel (2015). A última publicação foi Estranhos à nossa porta, no Brasil editada pela Zahar, lançada em janeiro 2017. Faleceu no dia 9 de janeiro de 2017, aos 91 anos, em Leeds, Inglaterra.
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón