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DOCUMENTOS

O afago da misericórdia

10/03/2015 - A tradução oficial do discurso do Santo Padre Francisco na audiência com Comunhão e Libertação. Em PDF o panfleto com o discurso
Praça São Pedro, 7 de março de 2015

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

Dou as boas-vindas a todos vós e agradeço-vos o vosso carinho entusiasta! Dirijo uma saudação cordial aos Cardeais e Bispos. Saúdo o padre Julián Carrón, Presidente do vosso Movimento, e agradeço-lhe as palavras que me dirigiu em nome de todos; e agradeço-lhe também, padre Julián, a bonita carta que escreveu para convidar todos. Muito obrigado!

Dirijo o meu pensamento ao vosso Fundador, Mons. Luigi Giussani, recordando o décimo aniversário do seu nascimento para o Céu. Estou grato ao padre Giussani por vários motivos. O primeiro, mais pessoal, é o bem que este homem me fez, assim como à minha vida sacerdotal, através da leitura dos seus livros e artigos. O outro motivo é que o seu pensamento é profundamente humano e chega ao mais íntimo do anseio do homem. Vós sabeis como a experiência do encontro era importante para o padre Giussani: encontro não com uma ideia, mas com uma Pessoa, com Jesus Cristo. Foi assim que ele educou para a liberdade, guiando ao encontro com Cristo, porque é Cristo quem nos confere a liberdade autêntica. Falando sobre o encontro, vem-me ao pensamento “A vocação de Mateus”, o quadro de Caravaggio que eu admirava prolongadamente em São Luís dos Franceses, cada vez que vinha a Roma. Nenhum daqueles que estavam ali, nem sequer Mateus, ávido de dinheiro, conseguia crer na mensagem do dedo que o indicava, na mensagem daqueles olhos que o fitavam com misericórdia e o escolhiam para o seguimento. Sentia o enlevo do encontro. É assim o encontro com Cristo que vem e nos convida.

Tudo na nossa vida, tanto hoje como na época de Jesus, começa com um encontro. Um encontro com este Homem, o carpinteiro de Nazaré, um homem como todos e, ao mesmo tempo, diferente. Pensemos no Evangelho de João, onde ele descreve o primeiro encontro dos discípulos com Jesus (cf. 1, 35-42). André, João e Simão: eles sentiram-se fitados até no seu íntimo, profundamente conhecidos, e isto gerou neles uma surpresa, uma admiração que, imediatamente, os levou a sentir-se ligados a Ele... Ou quando, depois da Ressurreição, Jesus pergunta a Pedro: “Amas-me?” (Jo 21, 15), e Pedro responde: “Sim”; aquele sim não era o resultado de uma força de vontade, não vinha somente da decisão do homem Simão: antes ainda, vinha da Graça, tratava-se daquele “primerear”, daquele preceder da Graça. Foi esta a descoberta decisiva para são Paulo, para santo Agostinho, e para muitos outros santos: Jesus Cristo é sempre o primeiro, antecipa-nos, espera por nós, Jesus Cristo precede-nos sempre; e quando nós chegamos, Ele já está ali à nossa espera. É como a flor da amendoeira: é ela que floresce primeiro, anunciando a primavera.

E sem a misericórdia não se pode compreender esta dinâmica do encontro que suscita o enlevo e a adesão. Só quem foi acariciado pela ternura da misericórdia conhece verdadeiramente o Senhor. O lugar privilegiado do encontro é o afago da misericórdia de Jesus Cristo em relação aos meus pecados. E por isso, às vezes, vós ouvistes-me dizer que o lugar privilegiado do encontro com Jesus Cristo é o meu pecado. É graças a este abraço de misericórdia que surge em nós o desejo de responder e de mudar, e que pode nascer uma vida diferente. A moral cristã não é o esforço titânico, voluntarista de quem decide ser coerente e é bem sucedido, uma espécie de desafio solitário perante o mundo. Não! Esta não é a moral cristã, é outra coisa. A moral cristã é uma resposta, é a resposta comovida a uma misericórdia surpreendente, imprevisível e, segundo os critérios humanos, até “injusta”, de Alguém que me conhece, conhece as minhas traições e que, no entanto, me ama, me estima, me abraça, me chama de novo, espera em mim, espera algo de mim. A moral cristã não consiste em nunca cair, mas em levantar-se sempre, graças à sua mão que nos resgata. E o caminho da Igreja é também este: deixar que se manifeste a grande misericórdia de Deus. Recentemente eu disse aos novos Cardeais: “O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; é derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com um coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados, nas “periferias” essenciais da existência; é seguir integralmente a lógica de Deus”, que consiste na misericórdia (Homilia, 15 de Fevereiro de 2015). Inclusive a Igreja deve sentir o impulso jubiloso de se tornar flor de amendoeira, ou seja, primavera como Jesus, para a humanidade inteira.

Hoje vós recordais também o sexagésimo aniversário do vosso Movimento, “que nasceu na Igreja – como vos disse Bento XVI— não de uma vontade organizativa da Hierarquia, mas originada por um encontro renovado com Cristo e assim, podemos dizer, por um impulso que em última análise derivou do Espírito Santo” (Discurso à peregrinação de Comunhão e Libertação, 24 de Março de 2007, em: Insegnamenti III, 1 [2007], 557).

Depois de sessenta anos, o carisma originário nada perdeu do seu vigor e vitalidade. No entanto, recordai que o cerne não é o carisma, o centro é um só, é Jesus, Jesus Cristo! Quando insiro no âmago o meu método espiritual, o meu caminho espiritual, o meu modo de o pôr em prática, saio do caminho. Na Igreja toda a espiritualidade, todos os carismas devem ser “descentralizados”: no cerne só está o Senhor! Por isso, quando Paulo na primeira Carta aos Coríntios fala dos carismas, desta realidade tão bonita da Igreja, do Corpo Místico, acaba por falar do amor, ou seja, daquilo que provém de Deus, do que é próprio de Deus, e que nos permite imitá-lo. Nunca vos esqueçais disto, viver descentrados!

Além disso, o carisma não se conserva numa garrafa de água destilada! Fidelidade ao carisma não quer dizer “petrificá-lo” – é o diabo que “petrifica”, não vos esqueçais disto! Fidelidade ao carisma não significa escrevê-lo num pergaminho e colocá-lo numa moldura. A referência à herança que o padre Giussani vos deixou não pode reduzir-se a um museu de lembranças, de decisões tomadas, de normas de conduta. Sem dúvida, exige fidelidade à tradição, mas fidelidade à tradição – dizia Mahler – “significa manter aceso o fogo e não adorar as cinzas”. O padre Giussani nunca vos perdoaria se perdêsseis a liberdade e se vos transformásseis em guias de museu ou em adoradores de cinzas. Mantende aceso o fogo da memória daquele primeiro encontro e sede livres!

Assim, centrados em Cristo e no Evangelho, vós podeis ser braços, mãos, pés, mente e coração de uma Igreja “em saída”. O caminho da Igreja consiste em sair, para ir à procura dos distantes nas periferias, para servir Jesus em cada pessoa marginalizada, abandonada e sem fé, decepcionada com a Igreja, prisioneira do seu próprio egoísmo.

“Sair” quer dizer também rejeitar a auto-referencialidade, em todas as suas formas, significa saber ouvir quantos não são como nós, aprendendo de todos, com humildade sincera. Quando somos escravos da auto-referencialidade acabamos por cultivar uma “espiritualidade de etiqueta”: “Eu sou CL”. Esta é a etiqueta. Além disso, caímos nas armadilhas que nos são proporcionadas pela autocomplacência, quando nos admiramos ao espelho e isto nos leva a desnortear-nos, a transformar-nos em meros empresários de uma ONG.

Caros amigos, gostaria de concluir com duas citações muito significativas do padre Giussani, uma dos inícios e a outra do fim da sua vida.

A primeira: “O cristianismo nunca se realiza na história como fixidez de posições para defender, que se referem ao novo como pura antítese; o cristianismo é princípio de redenção, que assume o novo, salvando-o” (Porta la speranza. Primi scritti, Genova 1967, 119). Esta remonta mais ou menos a 1967.

A segunda, de 2004: “Não só nunca quis “fundar” nada, mas julgo que o génio do movimento que vi nascer consiste em ter sentido a urgência de proclamar a necessidade de voltar aos aspectos elementares do cristianismo, ou seja, a paixão pela verdade cristã como tal nos seus elementos originais; só isto!” (Carta a João Paulo II por ocasião do cinquentenário de Comunhão e Libertação, 26 de Janeiro de 2004).

Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos proteja. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!


O panfleto de CL com o discurso do Papa (tradução oficial do Vaticano)
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