Estamos perante uma situação difícil, contraditória e em certo sentido adversa; é evidente que não a podemos enfrentar se estivermos condicionados pelos problemas, se estivermos escravizados pelas dificuldades. Podemos, no entanto, construir sempre e em qualquer parte se formos livres. Então coloca-se a questão: onde nasce a liberdade, como se alimenta, como cresce, como se reforça?
É nos momentos de crise que cada um de nós é posto à prova.
Mas cada um de nós o que é? A tentação é sempre concebermo-nos partindo das nossas capacidades, dos nossos recursos, das nossas competências. Mas estes não expressam todo o nosso eu, damo-nos conta disto sobretudo quando vemos que não bastam para enfrentar os verdadeiros desafios. Cada um de nós é a sua autoconsciência. A questão não é estarmos ou não à altura, mas se a nossa atitude de vida resiste diante dos desafios, pequenos ou grandes, que temos de enfrentar. E é nos momentos críticos que as grandes questões da vida se manifestam com força.
Hannah Arendt explica-nos a razão: “Uma crise obriga-nos a voltar às questões; exige de nós respostas novas ou velhas, mas desde que nasçam de um exame direto; e só se transforma numa catástrofe quando nós procuramos fazer-lhe frente com juízos preconcebidos, ou seja, com preconceitos, agravando assim a crise e, além disso, renunciando a viver aquela experiência da realidade, a utilizar aquela oportunidade para refletir, que a própria crise constitui” (H. Arendt, Tra passato e futuro, Milão, Garzanti, 1991, p. 229).
1. A liberdade é dependência do Mistério
A crise obriga-nos a encarar de frente as questões, até porque deixaram de ser suficientes as respostas habituais, que são exatamente as que nos fizeram entrar em crise. Aliás, prender-nos a elas, aos preconceitos e esquemas do passado, apenas nos leva a agravar a crise, até à catástrofe. Isto vê-se muito bem face à questão que justamente vocês sentem como sendo a mais urgente para poder construir: a liberdade.
Durante anos concebemos a liberdade como ausência de vínculos em todos os âmbitos, do pessoal ao social. Pensávamos que nos podíamos governar sozinhos, sem vínculos, ou melhor, que essa fosse a única modalidade de sermos verdadeiramente livres e autónomos: não depender de nada nem de ninguém. Mas a crise veio pôr em evidência como é frágil essa concepção de liberdade e a que ponto é irrealista pensar que somos livres assim. Vimos e vemos isso sempre que somos determinados pelas circunstâncias, pela flutuação dos mercados ou das finanças, quando sentimos a nossa total impotência diante das dificuldades de todo o tipo que nos sufocam. Parece-nos então evidente que, numa situação assim, falar de liberdade de um modo reduzido é propriamente patético. E isso obriga-nos a refletir. Somos obrigados a aprofundar aquilo que julgávamos saber: de onde nasce aquela liberdade que nos permite construir?
Para responder adequadamente a esta pergunta é necessário perceber o que é que torna livre o homem. Porque é evidente que, se o eu é um pontinho passageiro, que aparece no interior de uma realidade concebida como torrente cega do mundo e da história, então ele não terá nenhuma liberdade. “Se o homem nascesse totalmente da biologia de pai e mãe, se fosse apenas um instante breve no qual todo o fluxo de inúmeras reações precedentes produzem este fruto efêmero; se o homem fosse somente isso, seria realmente ridícula, cinicamente ridícula, a palavra ‘liberdade’, a expressão ‘direitos da pessoa’, a própria palavra ‘pessoa’. A liberdade assim, sem fundamento, é flatus vocis: um puro som que o vento dispersa”( L. Giussani, O senso religioso, Brasília, Universa, 2009, p. 140).
Em muitas ocasiões perdemos a primeira batalha pela liberdade no terreno da autoconsciência do eu, isto é, quando nos concebemos parte do mecanismo das circunstâncias. Nesse caso, o eu não tem outra possibilidade senão suportar o fluxo das circunstâncias das quais não é capaz de se livrar. Não há nenhuma possibilidade de dizer “Eu” para quem se rende a uma tal concepção de si!
Isto mostra que a luta pela liberdade é acima de tudo uma questão cultural, porque diz respeito a um modo do homem se conceber, como advertia profeticamente o beato João Paulo II há tantos anos, quando identificava a tragédia do nosso tempo com o “medo de vir a ser vítima da opressão que o prive da liberdade interior, [...] de uma sujeição ‘pacífica’ dos indivíduos, dos ambientes de vida, de inteiras sociedades e de nações que, seja por que motivo for, se apresentem incômodos para aqueles que dispõem de tais meios e estão prontos para empregá-los sem escrúpulos” (João Paulo II, Dives in misericordia, 11).
“Há somente um caso em que este ponto – que é o homem individual – é livre do mundo inteiro, é livre, e nem o mundo inteiro, nem o universo inteiro podem obrigá-lo. Em apenas um caso essa imagem de homem livre é explicável: se supusermos que aquele ponto não seja totalmente constituído pela biologia de seu pai e de sua mãe, mas possua algo que não derive da tradição biológica de seus antecedentes mecânicos, que seja relação direta com o infinito, relação direta com a origem de todo o fluxo do mundo, isto é, com Deus” (L. Giussani, O senso religioso, op.cit., p. 140).
Bento XVI recordou-nos isto no seu discurso ao Reichstag de Berlim: “Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana” (Bento XVI, Visita ao Parlamento Federal da Alemanha, Berlim, 22 de setembro de 2011).
“Eis o paradoxo: a liberdade é a dependência de Deus. É um paradoxo, mas muito claro. O homem – o homem concreto, eu, você – não existia, agora existe, amanhã não existirá mais: portanto, depende. Ou depende do fluxo dos seus antecedentes materiais, e é escravo do poder; ou depende daquilo que está na origem do fluxo das coisas, além delas, isto é, de Deus” (L. Giussani, O senso religioso, op.cit., p. 141).
Mas será realista dizer isto? O próprio Bento XVI aceitou este desafio, abordando a questão frontalmente. Na sua resposta a esta pergunta podemos identificar o que a ausência de Deus implica para a liberdade: “O homem tem necessidade de Deus, ou, pelo contrário, as coisas continuam bastante bem mesmo sem Ele? Quando, numa primeira fase da ausência de Deus, a sua luz continua ainda a enviar os seus reflexos e mantém unida a ordem da existência humana, tem-se a impressão de que as coisas funcionem bastante bem mesmo sem Deus. Mas, à medida que o mundo se afasta de Deus, vai-se tornando cada vez mais claro que o homem, na petulância do poder, no vazio do coração e na ânsia de prazer e felicidade, ‘perde’ progressivamente a vida” (Bento XVI, Celebração Ecumênica na Igreja do Convento dos Agostinianos, Erfurt, 23 de setembro de 2011). Algo semelhante acontece quando se desliga o aquecimento central: o calor acumulado ainda conserva quente o espaço durante algum tempo, na ilusão de se poder poupar na fatura de energia. Mas o frio depressa nos faz sair do engano. De certa maneira, podemos dizer a mesma coisa da liberdade: pensámos que romper o vínculo com Deus fosse uma libertação. Porém, rapidamente todos nos descobrimos apenas mais indefesos, porque mais sós, perante a hybris do poder.
Paradoxalmente, a crise pode vir a ser uma oportunidade de dar um fundamento realmente sólido a uma liberdade que, de outro modo, acaba por ser, propriamente, um flatus vocis, uma palavra vazia: “A liberdade se identifica com a dependência de Deus em nível humano, isto é, reconhecida e vivida. Ao passo que a escravidão é negar ou censurar essa relação. A consciência vívida dessa relação chama-se religiosidade. A liberdade está na religiosidade! Por isso, o único obstáculo, o único limite, a única fronteira à ditadura do homem sobre o homem – quer se trate de homem ou de mulher, de pais e filhos, de governo e cidadãos, de patrões e empregados, de chefes de partido e estruturas nas quais as pessoas prestam serviço –, o único obstáculo e a única fronteira, a única objeção à escravidão do poder – a única – é a religiosidade” (L. Giussani, O senso religioso, op.cit., p. 141). É por isso que o Papa pode afirmar de maneira totalmente razoável: “Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente dada” (Bento XVI, Caritas in veritate, 34).
2. A liberdade é pertença a um povo
Aquilo que é verdade a nível ontológico e antropológico, também o é a nível histórico-social. Com efeito, onde triunfa o individualismo, que é a ausência de vínculos, a pessoa encontra-se perigosamente desarmada diante das pretensões do poderoso do momento, seja ele econômico, social ou político. Isolar os homens uns dos outros é um dos sistemas mais eficazes para o dominar.
Qual é a defesa mais autêntica para salvaguardar a liberdade do homem no espaço e no tempo? Aquela que a própria natureza do homem nos indica: um vínculo, uma pertença. Mais precisamente - como escrevemos no documento de CL “A crise, desafio para uma mudança” - a pertença a um povo que defenda esse vínculo com o Mistério que torna livre o indivíduo. Dom Giussani oferece-nos uma descrição espetacular deste fenômeno: “A vida de um povo é determinada por um ideal comum, por um valor pelo qual vale a pena existir, esforçar-se, sofrer e, se necessário, também morrer; por um ideal comum pelo qual valha a pena tudo. É uma dinâmica já intuída por santo Agostinho, quando, no De Civitate Dei, observa que ‘o povo é o conjunto dos seres racionais associado na comunhão concorde das coisas que ama’, e acrescenta que para conhecer a natureza de cada povo é preciso, por isso, olhar para as coisas que ele ama (‘ut videatur qualis quisque populus sit, illa sunt intuenda quae diligit’) [Ao contrário, tentamos construir a Europa sem reconhecer algo que todos amávamos e que tínhamos em comum, pensando que só a economia pudesse servir de cimento, de fundamento]. Em segundo lugar, a vida de um povo é determinada pela identificação dos instrumentos e dos métodos adequados para alcançar o ideal reconhecido, enfrentando as necessidades e desafios que gradualmente se vão apresentando nas circunstâncias históricas. E, terceiro, ela é determinada pela fidelidade recíproca em que um ajuda o outro no caminho para a realização desse ideal. Um povo existe quando há memória de uma história comum que se aceita como um dever histórico a cumprir. Do reconhecimento do ideal nasce pois uma solicitude poderosa que tende a orquestrar-se da melhor maneira possível. Isto é expresso em última instância na caridade do povo, em virtude da qual um carrega o peso do outro. Neste sentido, o ‘nós’ entra na definição do ‘eu’: é o povo que define o destino, a capacidade o perativa e a genialidade afetiva, e por conseguinte fecunda e criativa, do eu. Se o ‘nós’ do povo entra na definição do ‘eu’, o eu atinge a sua grande maturidade, como reconhecimento do seu destino pessoal e como totalidade da sua afetividade, identificando-se com a vida e o ideal do povo. Por isso, sem amizade, ou seja, sem afirmação gratuita e recíproca do destino comum, não existe povo” (L. Giussani, S. Alberto, J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, Milão, Rizzoli,1998, p. 118).
Quanto mais grave é a situação, mais sobressai a necessidade de nos sustentarmos em termos de consciência, de ajuda real, de companhia, de risco. Isso implica a nossa disponibilidade para a mudança de concepção: “A doutrina social da Igreja considera possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da actividade econômica e não apenas fora dela ou ‘depois’ dela” (Bento XVI, Caritas in veritate, 36).
Mas o que é que nos pode convencer a reconhecer esta pertença? O que é que pode fazer nascer relações de amizade e camaradagem mesmo no âmbito da atividade econômica? Dom Giussani explica isto muitíssimo bem no seu histórico discurso de 1987 em Assago: “A relação com o infinito [...] torna a pessoa sujeito verdadeiro e ativo da história. Uma cultura da responsabilidade só pode partir do senso religioso. Esse ponto de partida impele os homens a se unirem. É impossível que o partir do senso religioso não leve os homens a se unirem. E não uma provisoriedade de algo que se pode obter em troca, mas na forma substancial; leve os homens a se unirem na sociedade segundo uma totalidade e uma liberdade surpreendentes (a Igreja é o caso mais exemplar disso), de modo que o nascimento de Movimentos é sinal de vivacidade, de responsabilidade e de cultura, que dinamizam toda a ordem social. É preciso observar que esses Movimentos são incapazes de permanecer no abstrato. Não obstante a inércia ou a falta de inteligência de quem os representa ou de quem deles participa, os Movimentos não conseguem permanecer no abstrato, mas tendem a mostrar sua verdade enfrentando as necessidades nas quais se encarnam os desejos, imaginando e criando estruturas cooperativas capilares e oportunas a que chamamos ‘obras’, ‘formas de vida nova para o homem’, como disse João Paulo II no Meeting de Rímini de 1982, ao relançar a Doutrina Social da Igreja. As obras constituem uma verdadeira contribuição para a novidade do tecido e do rosto social. [...] É, portanto, no compromisso com esse primado da livre e criativa sociabilidade diante do poder, que se demonstram a força e a duração da responsabilidade pessoal” (L. Giussani, O Eu, o poder, as obras, Cidade Nova, São Paulo 2001, pp. 163-164). Mas esta novidade e esta durabilidade só serão possíveis se a obra não se afastar da sua origem.
Quem pode correr o risco de se unir a outros numa situação como a atual? Só aqueles que, partilhando o sentido da vida, o ideal, podem partilhar também todo o resto. Mas precisamente quanto mais aguda é a crise e quanto maior o risco individualista de ver o outro como um adversário a liquidar, mais dramáticamente necessária é hoje a força de Outro que nos torne a todos cientes da nossa inesgotável necessidade: “Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem é. Perante os enormes problemas do desenvolvimento dos povos, que quase nos conduzem ao desânimo e à rendição, vem em nosso auxílio a palavra do Senhor Jesus Cristo que nos torna cientes deste dado fundamental: ‘Sem Mim, nada podeis fazer’ (Jo 15,5), e nos encoraja: ‘Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo’ (Mt 28,20). Diante da vastidão do trabalho a realizar, somos apoiados pela fé na presença de Deus junto daqueles que se unem no seu nome e trabalham pela justiça” (Bento XVI, Caritas in veritate, 78).
Ora, a existência de um povo assim, de uma companhia que age assin, é de ajuda e sustento não apenas para quem nela participa diretamente, mas também para quem a encontra na sua vida: “A coisa mais misteriosa é que no sucesso de um povo não pode deixar de estar também implicada a perspetiva de que o seu bem seja para o mundo, para todos os outros. E isso distingue-se claramente quando o povo atinge uma determinada segurança e dignidade, e amadurece e se afirma o fator ideal (que é a origem de toda a civilização, assim como o seu desaparecimento marca o seu declínio: uma civilização decai quando deixa de saber gerir o ideal que lhe deu origem)” (L. Giussani, S. Alberto, J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, Rizzoli, Milão 1998, p. 119).
Apoiar esta iniciativa do indivíduo ou dos associados é o que propriamente define a política: “Política verdadeira [...] é a que defende uma novidade de vida no presente, capaz de modificar também a ordem do poder. Desse modo, a política deve optar se favorece a sociedade exclusivamente como instrumento, manipulação de um Estado e do seu poder, ou então, se favorece um Estado que seja verdadeiramente laico, isto é, a serviço da vida social, conforme o conceito tomista de bem comum, retomado vigorosamente pelo grande e esquecido magistério de Leão XIII” (L. Giussani, O Eu, o poder, as obras, Cidade Nova, São Paulo 2001, p. 165).
Neste ponto de reviravolta da história podemos compreender mais facilmente o contributo que uma liberdade assim entendida pode oferecer ao caminho de cada um, qualquer que seja a posição que ocupa na sociedade.
Todos podemos fazer a verificação daquilo que verdadeiramente nos liberta e nos põe em condições ideais para viver as circunstâncias – mesmo as mais adversas e contraditórias - com uma positividade de outra forma impossível. De uma experiência de liberdade autêntica desprende-se uma capacidade de construção que nenhuma dificuldade consegue bloquear completamente, como tantos de vocês testemunham todos os dias. É uma solicitude que nos surpreende quando a vemos já em acção em alguém, a tal ponto que o futuro deixa de ser assustador e se enche de uma promessa de bem que alimenta a esperança.
Faço votos de que nunca renunciem, em tudo quanto fazem, a realizar um caminho humano, que só o é quando se apoia numa razão e numa liberdade adequadas à estatura da vossa humanidade; e de que se ajudem neste desafio, o mais decisivo de todos, porque nisso se decide a utilidade da vossa vida, para vocês e para todos.
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