Libertar-se do perigo de ser cristãos “demasiado seguros”, de perder o “sentido do pecado”, fechados numa “visão antropológica superpoderosa” e mundana, capaz de levar o homem a julgar que pode fazer tudo sozinho. Esta foi a exortação do Papa – na missa celebrada na manhã de 31 de janeiro na capela da Casa Santa Marta – referindo-se ao episódio da tentação de Davi que, apaixonado por Betsabé, esposa do seu soldado fiel Urias, envia o marido para a batalha provocando assim a sua morte. A perda do sentido do pecado, disse, é o sinal da diminuição do significado do reino de Deus, que nos faz esquecer que a salvação deriva dele e “não da astúcia” do homem.
O Evangelho de Marcos “fala-nos do reino de Deus” e do modo como ele cresce. Na realidade, “nem o semeador sabe” como isto acontece. Mas Jesus diz-nos que é Deus quem o faz crescer em nós. “E este crescimento é um dom de Deus que devemos pedir”. Pedimo-lo cada dia, quando recitamos “o Pai-Nosso: venha a nós o vosso reino”, uma invocação que significa: “Cresça o reino de Deus!”. Mas “assim como cresce, o reino de Deus pode também diminuir”. É disto que nos fala a primeira leitura, tirada do segundo livro de Samuel, sobre a tentação de Davi. Para explicá-la, o Papa referiu-se às leituras do dia precedente, sobre a “bonita oração de Davi ao Senhor: a prece pelo seu povo”, a “prece de um santo”. Mas no ano seguinte Davi é tentado e isto abala um reino bastante tranquilo, apesar dos conflitos. “Davi leva uma vida normal”, mas um dia, ao ver Betsabé, “cai na tentação”.
“Isto pode acontecer a todos nós”, pois todos somos pecadores, somos tentados. E a tentação é o pão nosso de cada dia”. A “alguém que dissesse: nunca tive tentações”, a resposta justa seria: “ou és um querubim ou és um pouco estúpido!”, pois “na vida a luta é normal: o diabo não está tranquilo e quer a sua vitória”. Na realidade, “o problema mais grave aqui não é a tentação ou o pecado contra o nono mandamento, mas o modo como Davi age”, porque perde a consciência do pecado e só fala de “uma questão” para resolver. Esta sua atitude é “um sinal”, pois “quando o reino de Deus diminui, um dos sinais é a perda do sentido do pecado”. Davi comete um “pecado grave” mas “não o sente” como tal e por isso “não pede perdão” mas preocupa-se apenas em resolver um problema, como ocultar o adultério?”.
Assim, recorre a uma estratégia para levar Urias a crer que o filho no ventre da sua esposa é realmente seu. Urias “era um bom israelita, pensava nos seus companheiros e não queria festejar enquanto o exército de Israel lutava”. Mas Davi, depois de ter procurado inutilmente convencê-lo “com um banquete”, “decide escrever uma carta a Joab, capitão do exército, para lhe pedir que atribua a Urias o lugar mais difícil da batalha, para que ele morresse”. E foi isto que aconteceu: trata-se de “um homicídio!”.
E “quando Davi descobre como a história acaba, permanece tranquilo”. Assim, “o reino de Deus começa a diminuir” no seu horizonte e nele prevalece “uma visão antropológica superpoderosa: tudo posso!”.
A mesma coisa “pode acontecer quando perdemos o sinal do reino de Deus”. E a este propósito recordou as palavras de Pio XII, que indicava “na perda do sentido do pecado o mal desta civilização: tudo podemos, tudo resolvemos! O poder do homem no lugar da glória de Deus!”. Contudo, “a salvação não chegará através da nossa malícia, astúcia e inteligência”, mas da “graça de Deus e do uso diário que fizermos desta graça, da vida cristã”.
Depois, o Papa enumera as pessoas mencionadas no trecho bíblico: Davi, Betsabé, Joab e “os cortesãos” que “sabiam tudo, mas não se escandalizavam”, porque também eles tinham “perdido o sentido do pecado”. E no final há o pobre Urias, que paga a conta do banquete”.
A figura de Urias suscita a reflexão conclusiva do Santo Padre: “Confesso-vos que quando vejo estas injustiças, esta soberba humana”, ou “quando sinto o perigo de que eu mesmo” corro o risco de “perder o sentido do pecado, acho bom pensar nos Urias da história, que também hoje sofrem a nossa mediocridade cristã”, a qual prevalece quando “permitimos que o reino de Deus esmoreça”. As pessoas como Urias “são os mártires não reconhecidos dos nossos pecados”. Por isso, “oremos hoje por nós mesmos para que o Senhor nos conceda sempre a graça de não perder o sentido do pecado”. E concluiu convidando “a levar uma flor espiritual ao túmulo dos Urias contemporâneos que pagam a conta do banquete dos cristãos seguros de si mesmos e que, sem querer ou de propósito, matam o próximo”.
Fonte: L’Osservatore Romano
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