Homilia de 2 de março, publicada no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 10 de 5 de Março de 2015
A capacidade de se envergonhar e de acusar a si mesmo, sem descarregar a culpa sempre nos outros para os julgar e condenar, é o primeiro passo no caminho da vida cristã que leva a pedir ao Senhor o dom da misericórdia.
Para a sua reflexão Francisco inspirou-se na primeira leitura, tirada do livro de Daniel (9, 4-10). Há, explicou, “o povo de Deus” que “pede perdão, mas não é um perdão de palavras: é um pedir perdão que vem do coração porque o povo se sente pecador”. E o povo “não se sente pecador em teoria — porque nós todos podemos dizer ‘todos somos pecadores’, é verdade, é uma verdade: todos aqui! — mas diante do Senhor diz o que fez de mau e o que não fez de bom”. De fato, lê-se na Escritura: “Todos nós pecamos, não cumprimos as obrigações, praticamos a injustiça, fomos rebeldes, afastamo-nos dos teus mandamentos e das tuas leis. Não escutamos os teus servos, os profetas, que falaram em teu nome aos nossos reis, aos nossos chefes, aos nossos pais e a todo o povo da nação”.
Substancialmente, frisou Francisco, nestas palavras do povo há “a descrição de tudo o que fizeram de mal”. E assim “o povo de Deus, neste momento, acusa-se a si mesmo”. E não culpa os “que os perseguem” os “inimigos”. Aliás, olha para si mesmo e diz: “Acuso-me a mim mesmo diante de ti, Senhor, e envergonho-me”. Palavras claras, que encontramos também no trecho de Daniel: “Ó Senhor, para nós a vergonha”.
“Este excerto da Bíblia — sugeriu o Papa — nos faz refletir sobre uma virtude cristã, aliás mais de uma”. De fato, “a capacidade de se acusar a si mesmo” é “o primeiro passo para dar início ao caminho cristão”. Ao contrário, “somos todos mestres, doutores, em justificar-nos a nós mesmos” com expressões do tipo: “Não fui eu, não é culpa minha, mas sim, mas não era muito... As coisas não são bem assim...”.
Resumindo, disse Francisco, “todos temos um álibi” para a justificação “das nossas faltas, dos nossos pecados”. E mais, acrescentou, “muitas vezes somos capazes de fazer aquela cara de ‘mas eu não sei!’, cara de ‘mas não fiz, talvez tenha sido fulano!’”. Numa palavra, estamos sempre prontos a “fingir inocentes”. Mas assim, advertiu o Papa, “não se progride na vida cristã”.
Portanto, afirmou, “o primeiro passo” é a capacidade de acusar a si mesmo. E certamente é bom fazê-lo com o sacerdote em confissão. Contudo, perguntou Francisco, “antes e depois da confissão, na sua vida, na sua prece, é capaz de se acusar? Ou é mais fácil acusar os outros?”.
Esta experiência, frisou o bispo de Roma, suscita “algo estranho mas que no final nos dá paz e saúde”. Com efeito, “quando começamos a ver do que somos capazes, sentimo-nos mal, sentimos arrepios” até que nos perguntamos: “Mas sou capaz de fazer isto?”. Por exemplo, “quando encontro no meu coração uma inveja e sei que esta inveja é capaz de falar mal do outro e de matá-lo moralmente”, devo questionar-me: “Sou capaz disto? Sim, sou capaz!”. E precisamente “assim começa esta sabedoria de se acusar a si mesmo”.
Portanto, “se nós não aprendermos este primeiro passo da vida — afirmou Francisco — nunca progrediremos no caminho da vida cristã, da vida espiritual”. Porque, justamente, “o primeiro passo” é sempre o de “acusar a si mesmo”, inclusive “sem dizer: entre mim e a minha consciência”.
A tal propósito o Papa citou um exemplo concreto. Quando vamos pela rua e passamos em frente de uma prisão, disse, poderíamos chegar a pensar que os presos “merecem isto”. Mas — exortou a considerar — “você sabe que se não fosse pela graça de Deus, estaria lá? Pensou que é capaz de cometer o mesmo que eles ou até algo pior?” Isto “é acusar a si mesmo, não nos escondermos as raízes do pecado que há em nós, as inúmeras ações que somos capazes de cometer, mesmo se não se vejam”.
É uma atitude, prosseguiu Francisco, que “nos leva à vergonha diante de Deus, e isto é uma virtude: a vergonha diante de Deus”. Para “se envergonhar” é preciso dizer: “Vê, Senhor, sinto repugnância de mim mesmo, mas tu és grande: a mim a vergonha, a ti — e peço-a — a misericórdia”. Precisamente como diz a Escritura: “Senhor, a vergonha para nós, porque peamos contra ti”. E “podemos dizer, porque somos capazes de pecar e cometer muitas maldades: ‘A ti, Senhor, nosso Deus, a misericórdia e o perdão. A vergonha a mim e a ti a misericórdia e o perdão’”. É um “diálogo com o Senhor” que “nos faz bem estabelecer nesta Quaresma: a acusação de nós mesmos”.
“Peçamos misericórdia” disse o Papa referindo-se em particular ao trecho bíblico de Lucas (6, 36-38). Jesus “é claro: sede misericordioso como o vosso Pai é misericordioso”. De resto, explicou Francisco, “quando aprendemos a acusar a nós mesmos tornamo-nos misericordiosos com os outros”. E podemos dizer: “Mas quem sou eu para julgá-lo, se sou capaz de cometer ações piores?”. É uma frase importante: “Quem sou eu para julgar o outro?”. E compreendemo-la à luz das palavras de Jesus “sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” e com o seu convite a “não julgar”. Ao contrário, reconheceu o Pontífice, “como gostamos de julgar os outros, falar mal deles!”. E, no entanto o Senhor é claro: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados”. Certamente é um caminho “difícil”, que “começa com a acusação de nós mesmos, tem início com a vergonha diante de Deus e com pedir perdão a Ele: pedir misericórdia”. Precisamente “a partir deste primeiro passo chegamos ao que o Senhor nos pede: ser misericordiosos, não julgar ninguém, não condenar, ser generosos com os outros”.
Nesta perspectiva, o Papa aconselhou a rezar para que “o Senhor, nesta Quaresma, nos conceda a graça de aprender a acusar a nós mesmos, cada um na própria solidão”, perguntando-se a si mesmo: “Mas sou capaz de fazer isto? Com este sentimento sou capaz? Com este sentimento que está dentro de mim sou capaz de ações malvadas?”. E rezando assim: “Tem piedade de mim, Senhor, ajuda-me a sentir vergonha e concede-me a misericórdia, assim poderei ser misericordioso com os outros”.
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