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MARIA NA HISTÓRIA

Filha do teu Filho

por José Miguel García
07/05/2015 - Provocados pelo insistente apelo de Dom Giussani à figura de Maria, “o método necessário para termos uma familiaridade com Cristo”, em 2004 Passos publicou uma série retomando momentos da História marcados pela presença de Maria. Eis o primeiro texto
Domenico Ghirlandaio (1449-1494), <br>Nossa Senhora da Misericórdia. <br>Florença (Itália), Igreja de todos os Santos.</br>
Domenico Ghirlandaio (1449-1494),
Nossa Senhora da Misericórdia.
Florença (Itália), Igreja de todos os Santos.

Há dois mil anos, ela é objeto da invocação dos cristãos, que se dirigiam a ela provocados pelas circunstâncias mais disparatadas, com um grito de súplica ou com um canto de ação de graças. A partir do dia do anúncio do Anjo, toda a realidade circundante foi subvertida pelo seu “sim”. E a sua maternidade fez e continua a fazer companhia ao homem, sustentando a infinita labuta da vida, e, portanto, a esperança dos homens.
Neste primeiro capítulo, o padre espanhol José Miguel García, biblista da Escola de Madri, relê alguns trechos dos Evangelhos, guiandonos na descoberta de Maria, que se preocupava com as mulheres que seguiam e serviam Jesus durante os três anos da Sua missão pública. Já então participava da vida do nascente povo cristão, seguindo e servindo. Como nas bodas de Caná, quando faltou vinho e ela disse aos serventes: “Fazei o que ele vos disser”.
Maria é “o instrumento que Deus usou para entrar no coração do homem” para sempre.


O primeiro terceto do hino à Virgem, de Dante, começa com esta parado xal expressão: “Virgem mãe, filha do teu Filho”. Dante utiliza-se, para falar de Maria, a mãe de Jesus, de expressões que poderíamos chamar de contraditórias: como alguém pode ser, ao mesmo tempo, virgem e mãe? E se é mãe, geradora do Filho, como pode ser ao mesmo tempo gerada pelo Filho? Dante reconheceu que Maria é o fiel reflexo do Mistério. Assim, o paradoxo que aconteceu no Mistério-feito-carne e que sempre escandalizou os homens deste mundo, finito-infinito, temporal-eterno, criatura-criador, homem-Deus, transparece também nela, Maria, a criatura mais perfeita de Deus, a que mais reflete o paradoxo cristão. Uma parte da carta de padre Giussani à Fraternidade é um imponente comentário ao primeiro paradoxo: “Virgem mãe”. Nos Evangelhos, há várias passagens que ilustram claramente o segundo: “filha do teu Filho”. Eles nos ajudarão a compreender melhor o que Dante quer dizer com a expressão do primeiro terceto do seu hino à Virgem.

A irmã de Maria (Jo 19,25)
O evangelista São João, ao narrar a morte de Jesus, oferece uma informação muito sumária a respeito da família de Maria. De fato, falando das mulheres que estavam no Calvário próximas à cruz de Jesus, diz: “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã da sua mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena”.
O estranho dessa informação não é somente o fato de a mãe de Jesus ter uma irmã, à qual não se faz referência em nenhuma outra parte dos Evangelhos, e sim o fato de duas irmãs - a mãe de Jesus e a mulher de Clopas - terem o mesmo nome: Maria. Não são raros os autores que eliminam essa dificuldade dizendo que as mulheres aí enumeradas são quatro: a mãe de Jesus, uma sua irmã, cujo nome o evangelista não menciona, Maria de Clopas e Maria Madalena. Na nossa opinião, estilisticamente é, sem dúvida, preferível a enumeração de três, como refletem os melhores manuscritos gregos. Recentemente, padre Mariano Herranz mostrou que os termos “irmão, irmã” servem para designar os colaboradores íntimos de Jesus durante a sua
pregação na Palestina. Se se levar em conta esse significado, a estranheza do texto de são João desaparece, porque o evangelista não estaria se referindo a uma irmã de Maria, mas a uma sua colaboradora. O texto evangélico, bem traduzido, diria o seguinte: “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã-colaboradora da sua mãe, Maria de Clopas, e Maria Madalena”. Por que Maria tinha uma colaboradora? Qual seria a ajuda que essa outra Maria prestaria à mãe de Jesus?
Para responder a essas perguntas, é necessário recordar que, no final do relato das bodas de Caná, João diz que Jesus foi para Cafarnaum com a sua mãe e os seus discípulos. O fato de Maria, terminado o casamento, não voltar para Nazaré e seguir com Jesus para a cidade escolhida por este como o centro da sua pregação itinerante na Galiléia pode ser muito bem entendido se, durante o tempo do ministério público de Jesus, Maria não ficasse sozinha em Nazaré, e sim seguisse com ele e os discípulos, acompanhada, sem dúvida, por outras mulheres, como nos informa Lc 8,1- 3, para servir o seu Filho e os seus companheiros em suas necessidades materiais, pois todos os membros do grupo tinham deixado para trás famílias e casas, ficando, pois, sem o apoio familiar para enfrentar as situações próprias da vida cotidiana, entre as quais se encontram a compra e a preparação da comida, a lavagem das roupas, etc.
Maria, pois, é uma colaboradora importante da obra do seu Filho. Ela, com os cuidados diários em relação às necessidades materiais do seu Filho e amigos, torna possível a missão de Jesus. Mas não é difícil entender que a obra de Maria não se reduzia a essa ajuda material; ela é uma verdadeira discípula do seu Filho. Maria, portanto, não fazia parte do grupo dos seguidores de Jesus porque o havia gerado e amamentado, e sim porque era sua fiel discípula, alguém que escutava com atenção a sua palavra, conservando-a em seu coração, como Jesus mesmo afirma em certa ocasião diante da multidão que o rodeia (Lc 11,28). Na passagem evangélica que estudaremos a seguir, aparece clara a grandeza de Maria.

Os parentes de Jesus
Em nossa opinião, em Mc 3,20-35, temos a narração de um episódio unitário, no qual Marcos distingue três momentos ou cenas. Começa com uma breve e sintética narração a respeito da impossibilidade, por parte de Jesus e dos discípulos, de se alimentarem, por causa do assédio da multidão; segue-se o discurso de Jesus à multidão sobre o absurdo que é alguém dizer que ele expulsa os demônios pelo poder de Belzebu, príncipe dos demônios; e encerra-se o relato com a chegada da mãe de Jesus e seus irmãos.
A cena suscita numerosas perplexidades no leitor.
Ela acontece dentro de uma casa, um espaço não muito grande, mas, surpreendentemente, Jesus e os seus discípulos encontram-se cercados por uma multidão. Essa circunstância impede que eles se alimentem. Tão logo os seus parentes ficam sabendo disso, decidem salvá-lo daquela “loucura”. Uma reação desproporcional: não se entende por que o fato de não poder se alimentar um dia seja motivo de tanto alarme. No fim do relato, fala-se da chegada desses seus parentes: a mãe e os irmãos. Pois bem, se esses parentes moram em Nazaré e Jesus não se encontra próximo dessa localidade, como ficaram sabendo tão rapidamente do que estava acontecendo com ele? Não menos surpreendente, como vimos, é a reação desproporcional e imediata deles. Fere a sensibilidade dos crentes, também, o fato de Maria pensar que seu filho Jesus tenha perdido o juízo.
Todas essas dificuldades desaparecem se considerarmos o relato aramaico que se esconde por trás do grego. Oferecemos apenas a tradução de alguns versículos que nos interessam:

20 E iniciou o retorno para casa; mas a multidão reuniu- se de novo, e não podiam comer nada, nem mesmo um pão.
21 Ao saber disso, alguns daqueles que estavam com ele (= que colaboravam com ele) levaram-lhe (pão, alimento), para revigorá-lo; porque diziam: ele está sem forças.
31 E vêm sua Mãe e alguns dos seus irmãos-discípulos, e no limite do deserto pararam e enviaram mensagem chamando-o.
32 E em volta estava uma multidão; e lhe dizem: eis que tua Mãe e alguns dos teus irmãos-discípulos e algumas das tuas irmãs-discípulas estão no limite do deserto e te procuram.
33 E, respondendo, diz a eles: Quem são, para mim, mãe e irmãos-discípulos?
34 E lançando um olhar para o povo que estava à sua volta disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos-discípulos;
35 aquele que faz a vontade de Deus é, para mim, irmão-discípulo ou irmã-discípula ou mãe.

Quanto à resposta de Jesus nos vv. 33-35, devemos dizer que ele usa aí os nomes de sua mãe, dos seus irmãos e irmãs a título de parábola: os que a escutam compreendem o sentido que tem, para eles, ouvir e acolher a pregação de Jesus como expressão da vontade de Deus. Esse pequeno rebanho, essa multidão que cerca Jesus, movida sem dúvida pela excepcionalidade das obras e palavras de Jesus, todos eles são chamados de colaboradores da sua obra. E aqui podemos deduzir que, veladamente, mediante a parábola da mãe e dos irmãos, Jesus quer dizer que, na sua Igreja, não são apenas os que a governam que são portadores de luz no mundo, mas todos os fiéis. Pouco depois, os judeus ou pagãos que não tinham tido a oportunidade de conhecer diretamente Jesus nem de ouvir a sua palavra, poderão conhecê-lo através desse pequeno rebanho ou através da Sua Igreja.
No meio desse rebanho sobressai a figura de Maria, não tanto por ser a mãe carnal de Jesus, mas por ser a sua primeira discípula. Como já dissemos, Maria não ficou sozinha em Nazaré. Nos Evangelhos, ela é apresentada como uma mulher que colocou toda a sua vida ao serviço da pessoa e da obra de Jesus: está com Ele, segue-o fisicamente, vive com e para Ele. A mãe se transforma na primeira seguidora do Filho. Toda a sua vida está centrada no Evento do Mistério-feito-carne, ela confirma e está a serviço do Evento. E nessa obediência é gerada por seu Filho: sua sequela comovida de Jesus coincide com a geração da sua própria personalidade, como afirma padre Giussani na Carta à Fraternidade. Assim ela se faz filha do seu Filho.
Paradoxalmente, todavia, é esse amor gratuito e comovido por Jesus que a constitui como mãe, como diz o próprio Jesus para a multidão. Ou seja, só é gerador do Evento quem o reconhece gratuitamente, quem o segue com um amor comovido. Só quem reconhece a Presença de Jesus, quem a afirma com simplicidade e maravilhamento é sinal eficaz do Mistério manifestado aos homens, é presença do Mistério. “A virgindade é maternidade”.
Maria, sendo filha do seu Filho, converteu-se, para todos nós, em modelo de fé cristã. Ela, acolhendo a vontade de Deus manifestada em Cristo, sendo fiel seguidora desse Homem, Jesus de Nazaré, “é o método necessário para se ter uma familiaridade com Cristo”.

(Publicado em Passos n. 47, fevereiro/2004)

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