No bicentenário de nascimento do Santo educador (em 2015), retomamos seu trabalho. Construiu oratórios, escolas, oficinas. Lugares de educação que permitiram que milhares de jovens, pobres ou não, encontrassem o cristianismo. Porque é o único caminho para “descobrir e realizar a própria dignidade”. Hoje, como naquele tempo
Crise econômica, desemprego, emergência educativa. Num contexto de precariedade, como este em que estamos mergulhados, salta ainda mais aos olhos que o testemunho de quem vive o cristianismo como um Fato vivo é a resposta às necessidades humanas. Mas em todos os contextos históricos o Senhor doa à Igreja pessoas que, com seu modo de vida, com seu próprio jeito de ser, tornam ainda mais evidente que essa mudança é possível. Por isso, Passos inicia uma série na qual apresentará algumas figuras de santos que, em situações sociais difíceis, usando instrumentos que a realidade da época lhes fornecia, geraram uma humanidade nova. Ou seja, “meteram a mão na massa” e ergueram obras que são, até hoje, um exemplo para todos. Começamos com Dom Bosco, insigne educador que, há 150 anos, ao se encontrar com os jovens marginalizados de então, e fazendo questão de estar com eles, restaurou-lhes a dignidade e fez deles verdadeiros cristãos, isto é, homens de verdade.
Turim, 8 de dezembro. Na sacristia da igreja de São Francisco, o padre se preparava para celebrar a missa. A poucos passos dali, o sacristão gritou: “Ô, rapaz, você nem é coroinha, o que está fazendo aqui? Fora!”. O sacerdote interveio: “Deixa estar, ele é um amigo meu. Fique para assistir à missa. Depois a gente conversa”. No final da celebração, o jovem estava lá, em pé, na porta da sacristia. “Entre. Quantos anos você tem? De onde vem?”. “Tenho dezesseis anos. Venho de Asti. Sou pedreiro”. “E os seus pais?”. “Já morreram”. “Você sabe ler e escrever?”. “Não”. “Fez a primeira comunhão?”. “Não”. “Frequenta o catecismo?”. “Tenho vergonha, porque as crianças são menores do que eu e já sabem responder às perguntas”. “Se as aulas fossem só para você, você viria?”. “Sim”. “Então, comecemos imediatamente. Vamos ajoelhar e rezar uma Ave Maria”. Terminada a prece, o sacerdote fez o sinal da cruz e o rapaz procurou desajeitadamente imitá-lo. O padre percebeu. “Vou te ensinar. Em nome do Pai... sabe por que chamamos Deus de Pai?” “Não.” “Porque...” “Em italiano eu não entendo...”. O sacerdote sorriu e continuou a explicação em dialeto. E no final: “Espero você no domingo que vem. E traga os seus colegas”. O padre, de 26 anos, observou o rapaz saindo da igreja: “É preciso fazer alguma coisa urgente por esses jovens. Eles precisam encontrar a Deus para descobrir e realizar a própria dignidade. A gente precisa ficar ao lado deles”, pensou consigo mesmo. Era o ano de 1841. Naquela época, tal como hoje, o que valia não eram as análises sociológicas, e sim um relacionamento que tivesse como dimensão o infinito.
LOBOS COM OLHAR CHEIO DE MEDO. Ele, Dom João Bosco, havia chegado há pouco tempo à capital do Estado. De origem humilde, mas com uma sólida educação religiosa oferecida pela mãe Margherita, ele sabia muito bem o que era a pobreza, mas ali na cidade grande a miséria era maior do que aquela que ele havia experimentado e visto na zona rural de Asti, onde crescera. Há alguns meses vivia num Colégio eclesiástico, onde o padre Giuseppe Cafasso trabalhava com 45 sacerdotes, preparando-os para serem “padres da época e da sociedade em que vão viver”. A revolução industrial provocara fortes migrações do campo para a cidade. Turim era uma confusão só, social e urbanisticamente. Em pouco tempo a população crescera 17%. Era gente pobre que se espremia em barracos miseráveis, às vezes eram jovens sem os pais, que haviam sido confiados a parentes distantes ou aos próprios patrões que os exploravam. Dom Bosco os via, aos domingos, perambulando pela cidade; eram “lobos com o medo estampado nos olhos”; encontrava-os também nas prisões, onde ia acompanhando o padre Cafasso. Essa moçada precisava de escola, de trabalho... Precisavam de um lugar onde pudessem ser jovens. Exatamente como acontece hoje, em muitas cidades. Três dias depois daquele 8 de dezembro, o jovem pedreiro voltou, trazendo consigo nove amigos. No domingo seguinte eram vinte e cinco. E a turma foi aumentado a cada dia.
Durante a semana, Dom Bosco ia ao encontro deles nos locais de trabalho, subia nos andaimes, entrava nas oficinas. Queria estar com eles. E todo domingo os reunia para rezar, jogar bola, brincar e, quando o tempo permitia, levava-os a visitar os santuários marianos. Ficou conhecendo um por um. Mesmo sem o saber, esses jovens apreciavam a alegria verdadeira que vem da esperança cristã de se saber nas mãos de Deus. O domingo não era uma coisa distante da vida difícil que levavam. Aquele homem os abraçava e enxergava o interior de cada um. Eles não tinham nada e, ao mesmo tempo, tinham tudo.
HUMANIDADE NOVA. Em 1844, graças à marquesa Barolo, Dom Bosco conseguiu uma casa com duas salas e uma capela para os seus rapazes. Passou a se chamar “Oratório de São Francisco de Sales”, porque a marquesa mandara pintar a figura desse santo na entrada e “porque esse nosso ministério exige calma e ternura: estávamos sob a proteção de São Francisco de Sales, pedindo a graça de obtermos a sua mansidão”, escreveu mais tarde dom Bosco. Aos jovens faltavam roupa, livros e, às vezes, comida. Dom Bosco recorria às famílias ricas da cidade e pedia esmola. “A caridade não tem orgulho...” Além do catecismo, Dom Bosco dava aulas aos jovens quase analfabetos. Falava com os patrões para que respeitassem os contratos e, sobretudo, não maltratassem os meninos.
Depois de várias mudanças, em 1846 transferiu-se para o bairro Valdocco, onde alugou um casebre com um terreno anexo. Pediu à sua mãe Margherita que viesse morar com eles, para ser a mãe daqueles jovens, que agora já passavam de quinhentos. Para ele, ainda era pouco, considerando a situação que dominava a juventude de Turim. Dinheiro não havia, mas a Providência sempre socorria a tempo.
No clima anticristão e, sobretudo, anticlerical daquela época – tentaram até matá-lo –, Dom Bosco usava os poucos recursos de que dispunha e mostrava aos jovens qual era a única estrada para serem felizes, para construírem uma humanidade nova: a caridade, o amor a Cristo que é capaz de construir obras humanamente impossíveis.
OFICINAS E ESCOLAS. Em poucos anos, com a ajuda dos seus jovens, que se tornaram colaboradores, criou outros oratórios na cidade e fora dela. Abriu uma casa para os órfãos, construiu uma nova igreja, e obteve do governo uma ajuda para o oratório. Apelou para todos os recursos que tinha à disposição. Escreveu livros, fundou o bissemanário, O amigo da juventude. Em 1853, instalou as duas primeiras oficinas de formação profissional: para sapateiro e para alfaiate. Depois vieram as oficinas de encadernação e de carpintaria. Dois anos depois, nasceu a escola interna: os primeiros professores eram os próprios jovens que ele havia acolhido no casebre de Valdocco. Floresceram as vocações sacerdotais. A quem lhe perguntava como conseguia erguer tantas “grandes obras”, ele respondia com simplicidade: “Eu não fiz nada. Foi Nossa Senhora quem fez tudo”.
Muitos queriam saber qual era o seu “sistema” educacional. Eles não entendiam que não havia nenhuma construção teórica, nada era pensado dentro do escritório. Dom Bosco apenas acolhia e abraçava aqueles jovens, assim como um Outro o havia abraçado. O “sistema”, para ele, baseava-se em três palavras: razão, religião, carinho. Mas, sobretudo, apoiava-se nas “palavras de São Paulo, que diz: ‘A caridade é benigna e paciente; suporta tudo, espera sempre e enfrenta qualquer problema’. Por isso, somente o cristão é capaz de aplicar esse sistema com sucesso”. Essa é uma lição para os atuais mestres do laicismo.
Outros frutos nasceram desse “sistema”: a Congregação Salesiana, o santuário de Maria Auxiliadora, a Congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, os primeiros missionários salesianos.
Dom Bosco morreu no dia 31 de janeiro de 1888. Três anos antes, em Roma, durante uma entrevista ao Journal de Rome, quando fora perguntado “O que pensa das condições atuais da Igreja na Europa, na Itália, e do futuro dela?”, respondeu: “Ninguém, exceto Deus, conhece o futuro. Todavia, falando humanamente, pode-se dizer que o futuro será grave. Minhas previsões são muito tristes, mas não tenho medo de nada. Deus sempre salvará sua Igreja. E Nossa Senhora, que visivelmente protege o mundo contemporâneo, saberá provocar o aparecimento de salvadores”.
Publicado em Passos N.101, Fevereiro 2009
"Quais as características de um santo? Antes de tudo, a simplicidade de afirmar o real. Depois, a capacidade de amar o destino reconhecido da própria vida. Esse amor une pessoas e coisas em torno desse mesmo destino, provocando uma enorme fecundidade. Por último, o santo caracteriza-se por uma alegria que nos faz entrever já neste mundo a dimensão do eterno." Luigi Giussani da Apresentação de Os Santos, Grandes Cadernos de Litterae Communionis |
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