Dia 25 de outubro a Igreja reconheceu a santidade do “pai das crianças mutiladas”. As campanhas militares na Albânia e na Rússia, a descoberta da vocação em meio às atrocidades do século XX. E a dor inocente de órfãos e doentes, que recuperam a vida. É assim que nasce uma nova civilização. Apostando apenas em Cristo
A sua beatificação – que finalmente chegou depois de trinta anos de espera – é uma festa para o catolicismo milanês. Uma religiosidade esplendorosa, imersa no seu tempo e na trama das relações sociais, a busca do mistério a partir de um forte arcabouço racional. Padre Carlo Gnocchi pertence a esse mundo italiano, tão concreto, capaz de envolver corpo e alma, e que, em certa medida, não está em guerra contra a modernidade, não a encara lamuriando as épocas passadas; antes a assume, pelo menos em parte, reconhecendo suas demandas de verdade e de justiça. Esclarecendo: o século XVIII não se encerra, em Milão, com a ruptura insanável (ou quase) entre Igreja e sociedade civil, mas com a colocação, na ponta mais alta da cúpula da Catedral, no centro da cidade, da imagem de Nossa Senhora (a Madonnina).
Padre Gnocchi, que nasceu em 1902, em San Colombano al Lambro, é um filho do seu tempo, e é ao seu tempo que apresenta a vida de Cristo como resposta aos problemas e aos tormentos pessoais e coletivos. Depois de uma vocação precoce, daquelas que hoje nos assustam, e que a mãe procurou aquietar, reaparece depois como diretor espiritual do Gonzaga, um prestigiadíssimo colégio frequentado pela alta sociedade. Aí, o sacerdote desempenha múltiplas tarefas: educa os meninos, dá palestras brilhantes, escreve livros – um, em particular, sobre cinema nos dá a medida da sua curiosidade intelectual –, organiza passeios pela montanha, em contato com a natureza. Mas separa o seu cristianismo daquele misto de mandamentos e proibições próprio de certa mentalidade comum naquele tempo: “O cristianismo está igualmente distante do otimismo crédulo e ingênuo quanto do nebuloso e angustiante pessimismo; ambos causadores – por razões opostas – de paralisia e inatividade”. Chega daquele “ar tétrico de certos ambientes educacionais”, em cuja escuridão não brilham senão “sinais vermelhos”. “É preciso abrir as janelas da alma ao mais solar otimismo”, afirma Padre Gnocchi em Educazione del cuore, quase antecipando em décadas a célebre frase de João Paulo II: “Abram as portas para Cristo”.
A bomba da liberdade. Um fato é certo: na companhia de Cristo, padre Gnocchi não tem medo de nada nem de ninguém: “Se pudéssemos escolher o tempo da nossa vida e o campo da nossa luta, teríamos escolhido... o século XX, sem um átimo de hesitação”.
Ele opta por estar próximo dos jovens que o regime fascista mantém no cabresto, por meio de um leque de organizações recreativas. A cátedra do Gonzaga, embora prestigiosa e importante, não lhe basta. Há algo mais que o atrai, embora não saiba direito o que é. É preciso levar Cristo aos jovens, mesmo que sujando as mãos, mesmo driblando as formas associativas do fascismo.
Padre Gnocchi se sente atraído por aquele fervilhar de experiências, ainda que parciais e superficiais. Mas compreende que o desafio precisa ser enfrentado lá onde os jovens passam a maior parte da jornada. E o desafio é duplo: ao próprio tempo, aos limites de uma cultura e de uma sociedade que desprezam as demandas fundamentais do homem; mas também à própria inquietude, a essa vocação misteriosa, ainda obscura, que sente dentro de si e que quase o leva a sair do recinto do Gonzaga, apesar do parecer contrário de seus superiores.
Além de diretor espiritual, assume também a função de capelão militar. São dois padres Gnocchi, em difícil equilíbrio, em busca do sentido da própria missão e da própria atividade. Mas, de uma coisa padre Gnocchi está certo: a religião não é uma roupa (de boas maneiras ou de boa educação, tanto faz) que vestimos e tiramos à vontade; o catolicismo é o que sua mãe lhe ensinou em Milão, dirigida pelo Cardeal Ferrari: é uma aposta que vai direto ao coração e à liberdade de cada um. Cristo transforma a liberdade do homem numa bomba poderosa, multiplicando as suas energias e a sua paixão. Do contrário, torna-se uma ficção. Um faz de conta. Um joguinho pelas laterais do campo, que não entusiasma ninguém.
Liberdade e amor. De fato, padre Gnocchi insiste: quer acompanhar os soldados, os seus alpinos, que partem para a guerra. O capelão derrota o diretor espiritual: faz de tudo até que os superiores lhe dão permissão para partir em direção à Grécia. Lá, a guerra é suja: emboscadas, fuzilamentos sumários, ferocidade inaudita. “Os outros foram para a guerra por dever; eu, por amor”. Tudo bem, mas e depois?
Esse ponto de interrogação perturba-o interiormente; enquanto isso, da Grécia, padre Gnocchi parte para a Rússia. Estamos no epicentro da guerra, do mal, da morte do Homem, com H maiúsculo. Uma carnificina. Os alpinos, cercados, abrem com sangue a estrada para casa. Padre Gnocchi vê e transcreve aquela cadeia de horrores em seu livro Cristo con gli alpini. Parece um grande correspondente de guerra, detalha os egoísmos e as maldades dos homens capturados naquelas fronteiras distantes. Mas não cai no ceticismo e no cinismo. Ao contrário, volta da Rússia – por incrível que pareça – com o coração sereno e esclarecido. Finalmente havia encontrado a própria estrada. A vocação que buscava, a sua missão. Onde outros batiam a cabeça contra o muro do mal e do silêncio de Deus, ele descobriu a fonte que lhe dará de beber por toda a vida: ao voltar para a Itália, irá se dedicar aos filhos dos alpinos mortos na guerra.
Retornando a Milão, padre Gnocchi desenvolve o projeto, adequando-o às exigências da realidade: em vez dos filhos dos alpinos, as crianças mutiladas; ou as pequenas vítimas que, nos infinitos escalões do mal, ocupam, talvez, a posição mais escandalosa e insustentável: a da dor inocente.
Os dez anos seguintes transformarão esse sonho visionário numa obra de caridade. No leito extremo da humanidade mortificada, padre Gnocchi faz germinar uma nova civilização: as crianças mutiladas, aos milhares, serão restituídas à vida, frequentarão uma escola, terão assistência. A Itália descobrirá, graças a ele, uma palavra nova: reabilitação.
O raciocínio do padre é simples: muita coisa foi tirada dessas crianças; portanto, muita coisa precisa ser restituída a elas. Sem meio termo. Bate à porta das grandes famílias da burguesia ambrosiana, buscando os Moratti em primeiro lugar. Convoca os políticos para sua causa, como o então jovem Giulio Andreotti. Mobiliza os jornais. E, sem muita cerimônia, convoca a Providência.
A homilia do menino. Padre Gnocchi é um furacão. Mas é também o autor de um milagre: transformar aqueles meninos que estavam à deriva numa flor aos olhos da assistência sanitária italiana do Pós-Guerra. Há uma capacidade empresarial toda lombarda nesse trabalho frenético e incansável. Mas, por baixo, o motor que o empurra cada vez mais para frente é a fé desmesurada no homem e em Cristo, o melhor de todos os homens. A consciência – como dirá a uma dessas crianças, durante uma conversa – de que até a dor, a dor mais indecifrável, a dor inocente pode ser oferecida. E pode construir, tijolo por tijolo, um mundo novo e positivo.
No leito de morte, em 1956, com apenas 54 anos, padre Gnocchi leva às extremas consequências essa sua visão e decide, contra a lei e cercado pela dúvida dos teólogos, doar as próprias córneas a dois jovens cegos.
“Outros poderão servi-los melhor do que eu; mas ninguém, talvez, os amará mais do que eu”, dirá aos pequenos mutilados em seu testamento. Durante os funerais, celebrados na Catedral, diante de cem mil pessoas, o Cardeal Montini cedeu a palavra a um dos seus jovens, que se sai brilhantemente: “Adeus; antes eu o chamava de padre Carlo Gnocchi; agora o chamo de São Carlo”. Diante disso, dirá o futuro Papa Paulo VI: “Foi muito melhor que o sermão tenha sido feito por ele”. É verdade: com o que foi descartado pela humanidade, o padre de San Colombano construiu uma cidade à medida dos homens.
(Publicado em Passos n. 110, novembro 2009)