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Passos N.111, Dezembro 2009

SANTOS EM FAMÍLIA - JOANA BERETTA MOLLA

O heroico e o cotidiano

por Paola Bergamini

Com padre Gnocchi, beatificado há poucos meses, cuja história contamos em Passos de novembro, se concluiu a série sobre os “santos sociais”. Demos início a essa série, no começo do ano, para mostrar rostos e histórias de homens que, por causa da fé, foram capazes de gerar humanidade – e obras –, mesmo em situações difíceis, como a que vivemos hoje. Graças a Deus, há muitos outros exemplos desse tipo, talvez mais escondidos e menos conhecidos, e que provavelmente daqui a algum tempo voltaremos a publicar. Por enquanto, queremos dar ênfase a outro âmbito, a outro “pedaço” da realidade com o qual todos temos de nos relacionar e que exige ser vivida com a mesma intensidade, capaz de atravessar e desafiar a aparente banalidade do cotidiano: a família. Essa realidade também pode ser transfigurada pela fé. Nela também, Cristo desafia e interroga o nosso coração, até o fundo. Como demonstram os itinerários de homens e mulheres que, em sua vida familiar, encontraram um modo de realizar sua vocação até a plenitude do humano, até a santidade. O primeiro desses “santos de família” é Joana Beretta Molla.

Uma fé viva desde criança. Os dias simples, entre o ambulatório, os filhos, o terço... E um único segredo: viver a realidade intensamente “a cada instante, porque é um dom”. História de uma esposa e mãe de família que se abandonou “sem reservas à ação da Graça”. Até o sacrifício

O engenheiro Pietro Molla olha pela janela: a primavera está chegando, mas de manhã os campos ainda estão cobertos de orvalho. Vê os operários entrando na Saffa, a fábrica de fósforos em Ponte Nuovo di Magenta (Milão), onde é diretor geral. “Esperemos que hoje não surjam problemas, greves...”, pensa ele. Veste o sobretudo, sai do quarto e a vê ali, apoiada no móvel da sala: está bonita como sempre, os cabelos bem arrumados, portando aquele vestido novo que ganhou, embora suas formas estejam bem arredondadas, pela gravidez avançada. Só o olhar revela profundidade e uma firmeza nova, incomum.
Ela se aproxima dele: “Pietro, peço a você... Se precisar decidir entre mim e a criança, não hesite: escolha – é uma coisa que eu exijo – o bebê. Salvem ele”. Breves palavras. Depois, o silêncio, logo interrompido pelas vozes das três crianças que pedem a presença da mãe lá no quarto. Pietro não diz nada. Nem é preciso. Joana já disse tudo. Agora, ela vai para o quarto, e juntos vão recitar as preces matinais, depois...
Com o pensamento, o engenheiro recorda a primeira vez que se viram: dia 8 de dezembro de 1954, quando um conhecido comum celebrava sua primeira missa. Ele ficou impressionado com a jovem pediatra de Mesero (Milão) e, naquela noite, anotou em seu diário pessoal: “Sinto uma serena tranquilidade com o bom encontro que tive: a Imaculada Conceição me abençoou”. Viram-se de novo no dia 31 de dezembro, no Teatro La Scala, de Milão, durante um espetáculo. Ele, que até aquele momento levava uma vida austera, com ela descobre uma beleza nova: concertos, passeios pela montanha, mas, sobretudo, com Joana, cada gesto está carregado de uma fé simples e imediata, que preenche o espírito e ilumina todos os momentos. E transforma a realidade mais banal. Era uma fé concreta que Joana havia “respirado” em casa, junto com os irmãos, como ela própria escreve: “A fé, nós a respiramos não nos livros e na catequese, mas em casa, observando as atitudes e ouvindo as palavras dos nossos pais”.

CORPOS E ALMAS. Menos de um ano depois, Pietro a pede em casamento. Ela fica muito feliz, só tem um exigência: um tríduo de orações para se prepararem adequadamente para o sacramento do matrimônio. Dia 24 de setembro de 1955, na basílica de São Martinho, em Magenta, padre Giuseppe, irmão de Joana e missionário, celebra o matrimônio de ambos. Pietro tem 43 anos; ela, 32.
Alguns meses depois, numa carta, a recém-casada escreve ao marido: “Pietro, meu amor, o Senhor me quer muito bem. Estou feliz da vida. Tudo aquilo que somos e temos é dom da bondade divina. Eis o segredo da felicidade: viver cada momento, cada instante, entregando-nos sem reservas à ação da Sua graça”.
Joana é assim, sua fé envolve toda a realidade. Décima de treze filhos – três dos quais fazem os votos e partem para as missões –, nasceu em Magenta, no dia 4 de outubro de 1922. A família estabelecera-se primeiro em Bérgamo, depois em Gênova e, enfim, após a morte dos pais, em 1942, foi com os irmãos viver na zona rural de Magenta. Envolveu-se, ela e as irmãs Zita e Virginia, com as atividades do oratório feminino e do apostolado da Ação Católica, na Juventude feminina. Em 1950, forma-se em Medicina em Pavia; em 1952 especializa-se em pediatria. Junto com o irmão, abre em Mesero um ambulatório. Alguns anos depois, torna-se responsável pela creche de Ponte Nuovo.
Sobre sua profissão tem ideias bem claras: é preciso trabalhar com e pelo doente, mas ao mesmo tempo reconhecer o limite humano e confiar em Deus. É o que escreve numa nota: “Como é precioso o nosso trabalho! Há ocasiões em que não temos o sacerdote..., dos corpos nós cuidamos, mas quando os remédios não ajudam mais, temos de conduzir as almas a Deus”. Não se poupa: é vista em seu carrinho vermelho ou de bicicleta, em meio à neblina, mesmo tarde da noite, correndo para atender um doente; e quando este é pobre, além de não cobrar a visita, deixa com a família algum dinheiro para os remédios. Continua seu apostolado na Ação Católica, da qual se tornara presidente em Magenta, no ano de 1949. Em seu coração cultiva o desejo de partir como missionária leiga para o Brasil, para colaborar na obra do irmão. Começa a estudar o português, parece que está tudo pronto, mas o Senhor tem outros projetos. Seus familiares procuram dissuadi-la: o clima tropical não é bom para a sua saúde, o diploma italiano não é reconhecido no Brasil e, portanto, não pode exercer lá a sua profissão...
Justamente nesse período Pietro lhe propõe o casamento. Não sabe o que fazer. Procura, então, seu conselheiro espiritual: “Muitas jovens recebem pedidos de casamento, e quando o pedido vem de um bom rapaz, como esse, por que não aceitá-lo? Hoje temos muita necessidade de mães verdadeiramente cristãs. Se as bem preparadas não se casam, mas só as doidas, como vamos ter boas famílias cristãs?”, lhe diz o sacerdote.
Enfim, tudo fica claro: o casamento, a família, tornam-se a sua missão, a vocação a ser vivida em profundidade. Como havia dito durante uma palestra às colegas da Juventude feminina, em 1950: “A vocação é um dom de Deus. Se é um dom de Deus, a nossa preocupação deve ser o conhecimento da vontade do Senhor. Devemos entrar nessa estrada sem forçar nada, sabendo esperar o momento de Deus, a forma querida por Deus. Há muitas dificuldades, mas com a ajuda divina devemos caminhar sem medo, pois se, na luta pela nossa vocação, devêssemos morrer, esse seria o dia mais belo da nossa vida”. Não sabe que o Senhor lhe pedirá isso também.

UMA LONGA VIAGEM. Depois do casamento, a vida prossegue normalmente: o ambulatório, o cuidado da casa e da família: o Senhor doa-lhe os filhos, três no espaço de quatro anos. Todo dia recitam o terço e, quando possível, vão à missa. Em 1961, a quarta gravidez. No segundo mês, percebe que alguma coisa não vai bem: um inchaço anormal no abdômen. O ginecologista detecta um fibroma no útero. É necessário submeter-se imediatamente a uma cirurgia. A cirurgia corre bem, mas permanece o risco de um aborto e, sobretudo, há risco para a vida de Joana. Ela está bem consciente de tudo. Não fala do problema com ninguém. Reza, pede a Nossa Senhora que a criança que carrega no ventre não comporte o sacrifício da sua vida, para permanecer ao lado do marido e dos filhos. Mas entrega-se totalmente à Providência: só o Senhor sabe o que é melhor para todos. Pietro não compreende por que ela organizou todos os cantos da casa, cada gaveta, como se estivesse para partir para uma longa viagem.
Faltam poucas semanas para o parto. Dia 21 de abril de 1962, Sábado Santo, nasce Gianna Emanuela. A partir desse momento, começa o calvário. O que os médicos temiam se manifesta: peritonite séptica. Não se pode fazer nada. As dores são atrozes, mas ela não aceita nenhum calmante: deseja permanecer lúcida para poder rezar. Chega, vinda da Índia, sua irmã, a freira Virginia. Tão logo a vê, Joana exclama: “Finalmente você veio! Se você soubesse, Ginia, como a gente sofre ao saber que vai morrer e deixar para trás crianças tão pequenas! Ainda bem que temos Jesus a nos consolar nesses momentos”. A irmã dá-lhe o Crucifixo e ela o beija.
Dia 28 de abril, às quatro da manhã, levam-na para casa. Ao amanhecer, a respiração é difícil. Às oito, as última palavras: “Meu Jesus, eu te amo”. Do quarto vizinho vêm as vozes das crianças, que acabaram de despertar.
O velório dura três dias. Uma longa procissão de pessoas – operários, médicos, pacientes – vai lhe levar a última saudação. Muitos, sobretudo homens que raramente são vistos na igreja, sentem a necessidade de se confessar. Dia 30 de abril, o enterro.
Dia 16 de maio de 2004, João Paulo II, o Papa do “cotidiano que deve se tornar heroico”, eleva-a à honra dos altares, com o título de “mãe de família”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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