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Passos N.103, Abril 2009

DOCUMENTO

Ao contrário de hegemonia mundana

por Angelo Scola

Do jornal italiano “Avvenire”, edição de 20.02.2009

“O Ocidente precisa definir, afinal, qual o peso da fé na vida pública dos seus cidadãos; não pode simplesmente ignorar o problema”.
Essas palavras fulminantes, ditas por um bispo do Oriente Médio durante uma reunião do Comitê científico internacional do Oásis, em Amã, me vieram à mente nestes dias, quando se acende na mídia um vivo debate sobre a ação dos cristãos na sociedade civil, sobre o diálogo entre cidadãos laicos e católicos – que, segundo alguns, teria chegado ao seu ponto terminal –, sobre a suposta derrota do cristianismo e a ingerência dos homens da Igreja nos assuntos públicos. Numa palavra, sobre o estilo com que os católicos deveriam intervir ou não nos delicados temas da vida comum, como o da bioética.
Parece-me que, com frequência, se perde de vista o coração da questão: toda fé está sempre sujeita a uma interpretação cultural pública. É um dado inevitável. De um lado porque, como escreveu João Paulo II, “uma fé que não se tornasse cultura não teria sido plenamente aceita, inteiramente pensada, nem fielmente vivida”. Por outro lado, sendo a fé – tanto a judaica quanto a cristã – fruto de um Deus que se comprometeu com a história, inevitavelmente tem que ver com a concretude da vida e da morte, do amor e da dor, do trabalho e do repouso, bem como com a ação cívica. Por isso, ela mesma está inevitavelmente sujeita a diversas leituras culturais, que podem entrar em conflito entre si.
Nesta fase de “pós-secularismo”, confrontam-se, particularmente na sociedade italiana, duas interpretações culturais do cristianismo. A mim, ambas me parecem reducionistas. A primeira é a que trata o cristianismo como uma religião civil, como mero suporte ético, capaz de desempenhar o papel de agregador social para a nossa democracia e para as democracias europeias, em período de grave inquietação.
Se tal posição parece plausível para os que não creem, para quem crê deve ficar evidente a sua estrutural insuficiência. A outra, mais sutil, é a que tende a reduzir o cristianismo ao anúncio puro e cru da Cruz para a salvação de “todos”.
Ocupar-se, por exemplo, com bioética ou biopolítica seria afastar-se da autêntica mensagem de misericórdia de Cristo. Como se essa mensagem fosse, em si, a-histórica e não possuísse implicações antropológicas, sociais e cosmológicas. Tal atitude produz uma dispersão (diáspora) dos cristãos na sociedade e termina por ocultar (cripto) a relevância humana da fé enquanto tal. Chega-se ao ponto de, frente aos dramas inclusive públicos da vida, exigir-se um silêncio que arrisca a anular o senso de pertença a Cristo e à Igreja, aos olhos dos outros.
Nenhuma dessas duas interpretações culturais, na minha visão, consegue expressar de maneira adequada a verdadeira natureza do cristianismo e da sua ação na sociedade civil: a primeira, porque o reduz à sua dimensão secular, separando-o da força originária do sujeito cristão, dom do encontro com o acontecimento pessoal de Jesus Cristo na Igreja; a segunda, porque priva a fé da sua dimensão carnal.
Parece-me mais respeitosa da natureza do homem e do seu ser-em-relação uma outra interpretação cultural. Ela corre ao longo do fio-de-navalha que separa a religião civil da criptodiáspora. Propõe o acontecimento de Jesus Cristo em toda a sua inteireza – que não pode ser capturado por nenhuma ideologia humana –, torna evidente o coração que vive na fé da Igreja, para o bem de todo o povo.
De que modo? Pelo do anúncio, por obra do sujeito eclesial, de todos os mistérios da fé em sua integralidade, sabiamente compendiados no catecismo da Igreja. Mas explicitando todos os aspectos e implicações que brotam de tais mistérios. Eles se cruzam com os acontecimentos humanos de cada época, mostrando a beleza e a fecundidade da fé para a vida de todos os dias.
Só um exemplo: se creio que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, terei uma determinada concepção do nascimento e da morte, da relação entre homem e mulher, do casamento e da família. Concepção que inevitavelmente se encontra e se confronta com a experiência de todos os homens, inclusive dos não-crentes. Qualquer que seja o seu modo de conceber esses dados elementares da existência.
Mesmo respeitando-se a específica função dos fiéis leigos no campo político, é evidente que se cada fiel, do Papa ao último dos batizados, não colocasse em comum as respostas que considera válidas para as perguntas que diariamente agitam o coração do homem, isto é, se não testemunhasse as implicações práticas da própria fé, tiraria algo dos outros. Subtrairia algo positivo, deixaria de contribuir para o bem civil, para uma vida melhor.
Hoje, pois, numa sociedade plural e, por isso, tendencialmente muito conflitiva, essa confrontação deve ser total, com todos, sem excluir ninguém.
Em tal confronto, que leva os cristãos (o Papa e os bispos incluídos) a dialogar humilde mas tenazmente com todos, se vê que a ação eclesial não tem como objetivo a hegemonia, não visa usar o ideal da fé de olho no poder.
Seu verdadeiro objetivo, à imitação do seu Fundador, é oferecer a todos a consoladora esperança na vida eterna. Uma esperança que, experimentada no “cêntuplo já aqui”, ajuda a enfrentar os problemas cruciais que tornam fascinante e dramático o cotidiano de todos.
Só por meio dessa incansável exposição, voltada ao reconhecimento recíproco, respeitosa dos procedimentos pactuados num Estado de direito, se pode fazer frutificar esse grande valor prático que brota do fato de vivermos juntos.

Cardeal Angelo Scola, Patriarca de Veneza

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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