Vai para os conteúdos

Passos N.108, Setembro 2009

DESTAQUE - A BELEZA DA FAMÍLIA

Um tesouro em vasos de barro

por Carolina Oliveira e Paola Bergamini

Nos anos da contestação, a família era dada como morta. Hoje, por bem ou por mal, está no centro do debate público. Julián Carrón, num encontro recente, definiu-a como “experiência indelével de um bem”. Quatro famílias – do Brasil, do Quênia e da Itália – aceitaram o desafio de Carrón. E contam sua história

Olhar um pai brincando com o filho de um ano de idade poderia ser uma cena comum para alguns. Porém, na família Fernandes, de São Paulo, esse gesto tem um significado muito mais intenso. Após 14 anos de casamento chegou o filho tão aguardado por Raul e Teresa. “O Paulo foi um presente de Deus e é muito melhor do que eu imaginava”, afirma a mãe. Essa e muitas outras experiências evidenciam o que padre Julián Carrón disse há alguns meses durante uma palestra no Centro Cultural de Milão que tinha como tema “A experiência da família – Uma beleza a ser reconquistada”. Ele afirmava que, apesar de toda propaganda contrária à família, “somos obrigados a reconhecer quase com surpresa: esse aparato impressionante (da mídia) demonstrou não ser mais forte que a experiência elementar que muitos de nós viveram em sua família, a experiência inextirpável de um bem. Um bem pelo qual somos gratos e que queremos transmitir às futuras gerações, para compartilhá-lo com elas”.
Carrón diz ainda. “A própria relação amorosa contribui de maneira precípua para a descoberta da verdade do eu e do tu; e, com a verdade do eu e do tu, manifesta-se a natureza da vocação comum. O que somos nos é revelado com clareza pela relação com a pessoa amada. Nada nos desperta tanto, nos torna tão conscientes do desejo de felicidade que nos constitui, quanto a pessoa amada. Sua presença é um bem tão grandioso, que nos faz perceber a profundidade e a verdadeira dimensão desse desejo: um desejo infinito”.
A partir dessas provocações feitas por Carrón, Passos propôs a quatro famílias que se confrontassem com duas questões: hoje, o que quer dizer amar o outro com desejo de que dure “para sempre”? O que significa dizer que “fazer família” é viver a “experiência indelével de um bem”? Casais de São Paulo, Abbiaterasso (Itália) e Nairóbi (Quênia) aceitaram o desafio.

SIM E GRATUIDADE. Casados há 10 anos, Claudiana é professora de educação física e Olavo, economista, em São Paulo. Eles estão esperando gêmeas, que devem nascer nos próximos dias, e completam uma família com quatro filhas. Quatro, após longos anos de perdas diante do desejo de serem pais. Claudiana diz que a abertura do coração foi imprescindível para que fosse possível viver um relacionamento de amor e de respeito nesses anos. “Uma abertura àquilo que Deus pede e solicita, através dessa pessoa específica que foi colocada na minha vida, totalmente dada e feita para ser meu companheiro de destino, nas horas boas e ruins”.
Fatos concretos demonstram isso. “Pude perceber que os momentos mais dramáticos que passamos, como a perda de dois tão desejados filhos, e antes da superação dessa dor surgindo outro desafio – o de acolher uma filha não gerada por nós, mas amada de forma tão gratuita, apostando naquilo que era pedido a cada dia, sem medir o que poderia ocorrer – foram acontecimentos que tornaram mais forte e mais verdadeiro o nosso relacionamento, uma cumplicidade àquilo que Deus nos pedia, aumentando a certeza de que tudo é para um bem e nos permitindo uma maior intimidade com o Mistério”. Permanecer na certeza e o apoio mútuo foi importante para que o casamento gerasse frutos, inclusive para não desistirem de ter mais filhos. “Nossa ferida aberta tornou o desejo mais agudo e o pedido mais intenso. Deus, em toda sua misericórdia, nos concedeu mais filhos, ou melhor, filhas, hoje são quatro e esperamos que possam ser muitos mais conforme a vontade d’Ele para conosco, pois só assim é possível viver um amor que dure para sempre e que corresponda ao coração”.

“URGÊNCIA DE SENTIDO”. Teresa é médica pediatra e Raul, professor universitário, de São Paulo. Casados há 14 anos, estavam com a vida confortável. Porém, há pouco mais de três meses chegou Paulo, um garoto de um ano de idade que revolucionou a vida dos dois. “Depois de tanto tempo casados, a tendência é que as coisas fiquem encaixadas e estava vivendo assim, acomodado”, conta Raul. “Mas eu sempre tive a urgência de que a minha vida tivesse sentido. E quando eu encontrei o Movimento, entendi que a minha vida tinha que ser para construir a igreja e ser doada a Cristo. E foi bonito porque na companhia da Teresa e também pela educação que eu tive em CL essa exigência aflorou novamente. Entendi que a minha vocação era construir uma família. Nunca sonhei em ser pai, mas a Teresa – e também o período que acompanhei o CLU (grupo de universitários de CL) – me ajudaram a entender que eu tinha que doar minha vida para um Outro, dentro dessa experiência da paternidade. Nesse caminho, fiquei tranquilo com a adoção, que era uma coisa da qual eu tinha muito receio, mas que está sendo muito mais legal do que eu imaginei”.
Carrón, a certa altura, falou da virgindade como “a autêntica esperança para os casados: é a raiz da possibilidade de viver o casamento sem pretensão e sem ilusão”. Teresa conta da amplitude que isso atinge em sua vida. “O que sempre me marcou muito é que todos são chamados à virgindade. Temos um caminho juntos, mas o outro, é o outro, cada um tem suas particularidades. E fui aprendendo a amá-lo desse jeito. Isso extrapola o casamento, porque eu aprendo a viver isso com tudo: no trabalho, com o dinheiro, agora com o filho. Aprendemos isso fazendo um caminho dentro da igreja. E isso tudo é fruto do sim inicial”.
A companhia tem uma participação importante nesse caminho. “Sabemos que sempre teremos rostos para olhar, pois, dentro da nossa companhia, sempre vai ter alguém que vai quebrar nossos esquemas”. E Teresa finaliza. “O Senhor nos deu sempre um coração para que disséssemos sim. Pedimos para que possamos dizer sempre sim, apesar da incerteza ou medo que possamos ter”.

EXPERIÊNCIAS DO ALÉM-MAR. Giovanna e Giuseppe vivem em Abbiategrasso, perto de Milão, e em breve vão comemorar quarenta anos de casamento. O Senhor lhes deu quatro filhos naturais, uma filha adotiva e a experiência de várias adoções temporárias. “Isso não fazia parte dos nossos projetos quando nos casamos”, diz Giovanna. “Juntos havíamos decidido que eu ficaria em casa. Depois seguimos o que o Senhor foi colocando em nosso caminho. Aquela noite, ouvindo padre Carrón no Centro Cultural, eu repassei esses anos de vida conjugal a partir das palavras que Dom Giussani nos disse durante a homilia no dia do casamento: ‘Estejam certos da história que estão para começar, porque o Cristo que vocês encontraram é fiel. Nesse gesto que vocês estão fazendo, Ele lhes pede: Ajudem-me a estar presente no mundo’. Carrón definiu os esposos como ‘dois sujeitos humanos, um eu e um tu, um homem e uma mulher, que decidem caminhar juntos na direção do destino, rumo à felicidade’. Todo dia precisamos nos lembrar de que o outro é diferente. O exemplo mais concreto disso são os filhos. Quando, sobre um mesmo assunto – como sair ou não de moto – eu penso de um jeito e ele de outro, o que fazer diante desta diversidade de julgamento? Podemos tentar puxá-lo para o nosso lado ou parar um pouco, olhar em seus olhos, como um Outro o faz. A diversidade se torna, então, uma riqueza. Isso me tornou criativa, no sentido de que, olhando o outro, a gente muda, coloca em jogo a própria liberdade. Isso acontece todo dia”. Uma vida em contínuo movimento. “É isso mesmo!”, diz Giuseppe. “É muito interessante. Depois de quarenta anos juntos, eu presto cada vez mais atenção nela, porque ela me revela, me põe em movimento, em relação ao ponto que está na base da nossa relação: seguir Cristo. Ainda estamos caminhando, fazemos companhia um ao outro a respeito da coisa mais importante que aconteceu conosco”.

NADA É ÓBVIO. As palavras de Carrón ecoaram também na África. Em Nairóbi, Joakim é presidente de uma escola de ensino médio, “Cardeal Otunga”, e sua mulher, Romana, é vice-presidente da Fundação Avsi no país. Joakim diz: “Ler o discurso de Carrón suscitou em mim, mais radicalmente, a pergunta: ‘O quer dizer verdadeiramente amar?’ Há sempre a tentação de considerar óbvio o significado do casamento, de quem é o outro. Eu, paradoxalmente, descobri mais sobre mim mesmo depois que passei a amar minha mulher. E isso nós vemos na vida de todos os dias”. Um exemplo? “Quando vou à escola e carrego no coração minha esposa e nossos quatro filhos, minha atitude em relação aos alunos é diferente. A ternura que sinto pela minha família me permite ser terno e atento ao que tenho diante de mim. A ação nasce de uma afeição. É por amor que nos movemos. Quando conheci Romana, me impressionou a paixão que ela demonstrava ao enfrentar cada situação. Uma paixão que se originava do encontro com Cristo, no Movimento. Eu a segui, queria a mesma coisa para a minha vida”. E Romana acrescenta: “E para os nossos filhos não queremos nada menos que isso! A escola surgiu justamente desse desejo que compartilhávamos com outros amigos da Fraternidade. Só por amor a Cristo eu posso amar Joakim para sempre”.
Carrón conclui a palestra dizendo que a maior contribuição que os casais cristãos podem dar hoje ante as adversidades encontradas no dia-a-dia é exatamente essa. “Estreitar uma unidade fraternal, criar moradas acolhedoras pode favorecer e acompanhar a experiência da família como um caminho que não se esgota rumo à plenitude constituída por Cristo”. E finaliza. “É um testemunho gratuito, que desafiara a razão e a liberdade daqueles que, procurando uma resposta autentica a sua exigência de felicidade, não conseguem encontrá-la. É um testemunho que procuramos dar conscientes de que ‘trazemos esse tesouro em vasos de barro para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página