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Passos N.131, Outubro 2011

ÁSIA - DIÁRIO DE VIAGEM

Férias no Cazaquistão

por Davide Perillo

Uma amizade que nasceu a partir da presença de alguns padres italianos. E hoje todos esses rostos vão sendo encontrados aos poucos: a mãe de Tanja, os amores de Olga, as colegas de Ljuba. Dias simples, cheios de jogos, alma e estrelas. E muitas perguntas, que valem uma vida

“O que quer dizer amar?” Olga fez a pergunta à queima roupa. Tínhamos acabado de nos sentar à mesa para o primeiro almoço depois de 36 horas de viagem, apenas quatro horas de sono e uma manhã inteira de jogos, e logo vem uma pergunta que vale uma vida. Eu estava com padre Eugenio, Enrico, Paolo, Roberta..., o grupo que veio da Itália para umas férias não propriamente ali na esquina: em Borovo, no Cazaquistão. Duzentos quilômetros da capital, Astana, e oito mil da nossa casa, no nordeste de um país tão grande quanto a Europa ocidental, habitado por dezesseis milhões de pessoas (dois terços, muçulmanos) e onde CL existe há quase vinte anos: conta, aqui, com uma centena de pessoas de todas as idades. Quase a metade são novos: é a primeira vez que participam de um gesto do Movimento, a primeira vez que ouvem o nome “Jesus”. Alguns são ateus. Outros simplesmente nunca se colocaram o problema da fé em Jesus. Como Olga, que antes ficava meio afastada, um tanto triste, se perguntando por que Dima – o advogado que conheceu três meses antes na pizzaria onde ela trabalha e ele supervisiona as contas – a havia convidado para estar aqui. Não conhecia ninguém, a não ser ele e sua esposa Ramzija. Mas veio. E bastou uma manhã para perceber que podia colocar em discussão o tema que mais a preocupava. “Tive muitos amores, mas nenhum duradouro. O que quer dizer amar?”.
Quem conhece padre Eugenio Nembrini – diretor do colégio Sagrado Coração, de Milão, que antes de voltar para a Itália esteve por estas bandas em missão por dez anos (“não havia nada, mas nada mesmo: às seis da tarde, sem luz, velas e frio”) – sabe muito bem que tipo de diálogo se pode iniciar com ele a partir de questões desse tipo: provocações, respostas, exemplos, risadas. Tudo muito verdadeiro, baseado na experiência. Em torno daquela mesa, aos poucos se juntam umas vinte pessoas. Mas acontecerão vários momentos do gênero, nesses dias; contínuos; coisa simples e verdadeira, sem rodeios intelectuais, sem discursos já sabidos. A vida.

Ir é ser. Olho em volta e vejo rostos com traços mongóis, eslavos, e me pergunto como o carisma de Dom Giussani chegou até aqui. Já tinham me contado, claro. Mas ver é diferente. Nasce uma ternura infinita por esses primeiros contatos no Leste europeu, dos quais já havíamos lido nos livros e em Passos. Padre Edo Canetta foi o primeiro a desembarcar em Karaganda, deu aulas de italiano, depois lecionou na universidade e, em seguida, numa escola para diplomatas. Estudou a língua (o cazaque, além do russo) e o povo, e abre para nós um universo quando explica que os verbos ir e ser, “em certos casos”, se usam com a mesma palavra (bar), diz que o verbo ter existe só para os objetos (“a gente não diz tenho quando está falando de pessoas; por exemplo, devemos dizer aqui comigo está uma mulher”), e que segundo as lendas desse povo nômade, “a vida é seguir uma estrela, e quando nasce uma criança, os parentes saem imediatamente para buscar a estrela dela”.
Depois dele, chegaram outros sacerdotes: padre Adelio, padre Eugenio, padre Livio, que está lá participando da corrida de saco, como se fosse uma criança. E, aos poucos, as pessoas foram sendo encontradas: Ljuba, professora; Dima, um jovem que vivia em situação de risco e que hoje é um advogado famoso; Maša, Julija, Maksim. Antes eram nomes. Agora, rostos. Junto com outros que já são amigos, e que encontro aqui depois de anos: Lucia estudava comigo na Universidade Católica de Milão, agora vive em Almaty, leva adiante, junto com outros amigos, o Centro Juvenil levantado pelo padre Eugenio e é ela quem comanda os jogos, que acabam tomando metade das férias, ou até mais. Impera a simplicidade; não há outro jeito: cantos; uma noite de relatos; um passeio no meio da semana; e muitas, muitíssimas ocasiões de diálogo; com frequência, diante de uma cerveja e šašlyk, iscas de carne de carneiro.

Uma estranha alegria. É assim que encontramos Nastja, colegial, e suas perguntas (“por que vocês estão aqui? Mas na Itália existe uma coisa como esta?”). E Ainur, filha de um muçulmano que organiza as peregrinações a Meca (o Islã é light por estas bandas, de influência sufista: permitiu que se traduzisse o Alcorão para o cazaque e que se sepultem os mortos em cemitérios semelhantes aos nossos, com imagens e monumentos). E Julija, uma das primeiras encontradas pelo padre Edo, que diz: “Eu o conheci em 1995, na universidade: ele me impressionou porque era livre e tinha dentro de si uma alegria estranha”. Hoje ela é Memor Domini (há duas casas, no Cazaquistão ). E Tanja, que para as férias convidou também sua mãe. E Ljuba, professora em Karaganda e responsável pelo Movimento, que fala de si, de quando explicou aos parentes e ao marido o que era o Batismo (“ele me disse: não entendo, mas confio na minha esposa. Agora ele também está aqui”), e nos apresenta as suas amigas, que se conheceram na escola e foram atraídas, uma por uma, por “essa colega que, quando cheguei, ingênua e sem conhecer ninguém, me dava atenção, ficava comigo”, conta Olga. “Eu não entendia. Não entendi até três anos atrás, quando fomos ao Meeting de Rímini, na Itália, e vi muitas pessoas assim, que se interessavam por mim. Aí entendi. É Deus mesmo que me abraça”. Katja também leciona naquela escola. “Se olho minha vida, vejo que mudou tudo. Fui batizada aos quinze anos, mas até os trinta a fé não queria dizer nada para mim. Só tradição. Eu sempre amei a beleza. Mas agora eu sei por quê”. Sempre amou também a sua mãe, ateia, cheia de perguntas, “que agora também começou a rezar comigo. Parece minha filha. O que ela me deu – amor gratuito, um modo de olhar as coisas, um bem sem retorno – agora eu lhe estou devolvendo”. Ou Aljona, ortodoxa: “Eu olhava Ljuba e sentia inveja. Para mim, a amizade com ela levou também ao aprofundamento da minha fé, que era apenas uma tradição e agora coincide com a vida, me leva a enfrentar a existência, incluindo aí os dramas”. Mas aconteceu – ainda acontece – o mesmo também com Zamzagul, que, com razão, faz questão de traduzir para nós o seu nome (“quer dizer flor de santidade”), mas, sobretudo, quer nos contar o que ela, muçulmana, encontrou neste lugar: “Todas as pergun-tas mais importantes que tenho são levadas a sério. A minha vida é aqui”. Ao ponto de os irmãos mais velhos, quando têm perguntas urgentes, “vêm fazê-las a mim; eles me chamam de a católica”.

O céu de Leopardi. No dia seguinte, foi ela quem – num encontro organizado por um grupo de alunos de Ljuba sobre o “por que a gente escreve” – escreveu linhas que dizem muito de si e deste lugar. Antes disso, o encontro da noite foi de tirar o fôlego: uma hora olhando as estrelas, entre cantos, poesias russas e textos de Leopardi. Imaginem o que é ler o Pastor errante sob a sua lua, numa noite de céu claro como só a estepe pode oferecer. Zamzagul, que jamais ouvira falar do poeta italiano Leopardi, conta como foi: “Ontem, quando vi as estrelas, vi a profundidade da minha alma. Pareciam as boas palavras que digo aos meus pais quando volto para casa depois de ter estado com vocês. Mas aquele céu imenso e escuro é infinito. E eu gostaria que houvesse mais estrelas”.
Alma. Céu. Estrelas. E perguntas, sempre. “É assim: uma humanidade simples, aberta”, resume Enrico, que viaja para o Cazaquistão desde os anos 90, em função do trabalho, e que se tornou amigo de padre Eugenio justamente aqui, “uma vez que ampliei a permanência e gastei um dia de viagem para ir encontrá-lo e estar com ele durante duas horas”. As mesmas coisas que diz Eugenio, que nunca deixa de comparecer às férias, mesmo depois de ter voltado para a Itália; para os amigos daqui, ele é um ponto de referência contínuo: “A gente não encontra discursos, mas uma grande espera”. E descobertas. Como a de Lena: “Quando eu era pequena, os adultos me diziam: não ria assim, pois um dia vai chorar. Eu vivia sentindo o medo de perder tudo. No entanto, aqui estou descobrindo que a gente simplesmente pode ser feliz, e ponto. Sem medo”.
Terceiro dia. Passeio. Claro, não temos aqui as Dolomitas como na Itália e os picos não passam dos setecentos metros de altura, nem há refúgios ou espaços abertos para a gente parar, cantar ou celebrar a missa. Mas é a única altura possível na região. A visão, daqui, pode alcançar todo o horizonte; lagos e estepes, nada mais. Um oceano de terra que dá calafrio, de tão bonito. Na volta, contornamos os lagos e entrelaçamos diálogos. Irene, que se juntou ao grupinho de italianos em férias, nos explica por que, a partir de setembro, estará em Bogotá (Colômbia) para lecionar. Roberta fala do seu trabalho como enfermeira. Lucia narra as descobertas deste período, desde que a Escola de Comunidade se tornou mais urgente e poderosa: “À noite ouço a Sua pergunta: Onde você Me viu hoje? O que você viveu, Lucia? Olhe para Mim”.
A noite será para festejar padre Edo, que deve retornar para a Itália. Festa simples, cantos, paródias. Um simulado processo, no palco, relembra os anos que ele passou aqui (o juiz, naturalmente, é o advogado Dima). “Quando cheguei aqui, não era problema acompanhar a comunidade ou inventar estratégias: não havia nada!”, conta ele. “Eu só precisava acompanhar o que Deus fazia.”

Curso de computador. Último jantar, antes de partir para Astana e, depois, para casa. Dá tempo de pedir a Galja – que me havia impressionado pelo olhar e pelo modo como participava de tudo – que fale mais de si. E fico de boca aberta. “O que eu faço? Sou pedreira”. Mas o que toca o coração é como ela chegou até aqui. Desde pequena, foi criada num orfanato. “Com nove anos, eu saía para fazer serviços nas casas. Às vezes, eu via as imagens. Ficava curiosa e me perguntava: quem é? Eles me respondiam: Deus. Mas no orfanato, se eu fizesse perguntas me faziam calar: ‘não existe nenhum Deus; Deus para você é o educador: você pergunta, ele responde’. Mas essa coisa me roía por dentro”. E isso durou muito tempo. O que a levou a ler livros proibidos pelo regime soviético, recuperados às escondidas (“todos diziam: largue isso; mas eu sentia que havia algo”). Com 14 anos, arrumou emprego numa fábrica. O suficiente para sair do instituto, mas não para se alimentar. Estudava e trabalhava. “Um dia, a professora de russo viu que eu dormia sobre a carteira. E perguntou: ‘Galja, há quantos dias você não come?’ E eu: ‘Quatro’. Foi o meu primeiro grito de socorro. No orfanato, eu havia aprendido a não pedir nada, nunca; tinha que aguentar firme”. E aguentou durante muito tempo, pois se distanciou daquela professora, e aí começou a beber. “Depois, numa noite foi como se a minha alma se separasse do corpo: eu estava jogada no chão, bêbada. Aí eu disse: chega! E voltei a procurar aquela professora”. Ela encontrou o Movimento a partir de um aviso: havia um italiano que estava organizando cursos de informática, grátis. Era padre Adelio. Galja vai e encontra um rosto conhecido, “um moço que vinha também de um orfanato, não do nosso, mas de um outro: quando vinham se divertir à nossa custa, nós sempre partíamos para a briga”. Era Dima. “Só que não era mais ele. O aspecto externo sim, mas dentro era uma outra pessoa. Eu disse isso para ele. E ele disse: venha ver por que”. Agora Galja está aqui. Ela fala da Fraternidade, que “agora é a minha família”. E me comove quando dirige o olhar para os quatro italianos que estão ali e acrescenta: “Hoje estou feliz porque a família cresceu: agora temos vocês também”.
Quando embarcamos no carro rumo ao aeroporto, tinha gravado na mente o rosto dela. Dela e de tantos outros: Maša e Maksim, Armand... Katja, a adolescente loira que nos bombardeou com perguntas (“mas você é feliz? E como pode saber que isso vai durar? E se quando eu voltar para casa acabar tudo?”). Até três dias atrás, nós não nos conhecíamos; agora, eles fazem parte de mim. O cristianismo é isso, Olga. Eis porque se pode amar.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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