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Passos N.131, Outubro 2011

ENTREVISTA - DOM MATHIAS

Cultura e fé no centro de São Paulo

por Ana Luiza Mahlmeister

O jovem abade, há 18 anos no Mosteiro, fala sobre o dia a dia desse patrimônio espiritual, histórico e cultural, no coração da capital paulista. Ali, o Papa Bento XVI esteve hospedado durante sua visita ao país

Encravado no centro da cidade de São Paulo o Mosteiro de São Bento combina vida monástica, educação e cultura. Há mais de 400 anos ele é a presença da tradição beneditina, que moldou a cultura e o modo de ser da Europa cristã no cenário paulista, e testemunho vivo do Mistério na cidade.
O Mosteiro de São Bento abriga uma escola de ensino médio, fundado em 1903, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a Faculdade de Teologia e um auditório aberto à filosofia, artes e espiritualidade. Suas missas dominicais às 10h com órgão e canto gregoriano são muito disputadas, assim como os pães feitos na padaria. Um dos abades mais jovens a liderar um mosteiro, Dom Mathias Tolentino Braga, que tem 46 anos, nos recebeu para uma conversa em que conta um pouco do dia a dia desse patrimônio espiritual, histórico e cultural.

Qual o papel do Mosteiro de São Bento na Igreja de São Paulo hoje?
O Mosteiro de São Bento é a instituição mais antiga da cidade de São Paulo. Estamos há 414 anos no centro da cidade. Outros mosteiros beneditinos de Olinda e Recife, Salvador e Rio também comungam conosco dessa experiência de mais de 400 anos. Não são mosteiros rurais, longínquos, mas urbanos. O fato de terem essa longevidade é justamente por ser essa presença ativa, de referência na cidade. De certa forma o mosteiro sempre foi um espaço de referência, de encontro de pessoas. Começa pelo canto gregoriano e atividades culturais que aqui se dão. E na própria arquitetura. Nossa Igreja é a terceira basílica construída do país. Para ganhar o título de basílica, é preciso ser monumental, ter expressão. Ela é um espaço físico onde as pessoas entram e se sentem bem em seu interior. Pela beleza, harmonia da decoração. Com as atividades do Ofício ao longo do dia, é uma Igreja que está sempre aberta, na qual as pessoas podem participar das orações dos monges. Assim o mosteiro tem sido presença na cidade de São Paulo nesses mais de 400 anos. Temos feito um esforço para atualizar essas atividades, essa presença, e corresponder àquilo que a Igreja espera do Mosteiro e dos monges no centro de uma grande metrópole.

Como o mosteiro vê sua missão educativa?
Hoje estamos vivendo uma crise em nosso sistema educacional, embora o governo tenha essa preocupação e faça uma série de avaliações para ter uma ideia de como o ensino está no país. O primeiro grande risco que temos são as famílias delegarem a educação à escola, como se esta última fosse a grande responsável por educar seus filhos. Na verdade a escola deve ser uma parceira das famílias. Primeiro a criança é educada em casa, onde recebe seus valores e exemplos, com ação participativa dos pais inclusive dentro da escola. Hoje vemos pessoas afirmarem que em um país laico a religião não pode ter espaço dentro da escola. Mas a religião penetra toda a vida da pessoa e é um dos valores culturais mais fortes da humanidade. Não pode ser negligenciada na educação nem na cultura do conhecimento. Nesse sentido creio que a escola católica deve assumir uma postura firme de oferecer um ensino mais humano, integral e, sobretudo colocar em evidência a família participante da educação. A escola católica deve se apresentar como uma auxiliar, uma parceira da família e não ocupar seu espaço. Na escola pública o Estado arroga para si o direito de afirmar o que a criança deve ou não aprender, inclusive ensinando coisas contrárias aos valores morais e religiosos das famílias. Isso é muito crítico e acho que esse é o momento das escolas católicas assumirem a responsabilidade da missão evangelizadora e humanizadora da educação.
A escola do mosteiro acolhe estudantes chineses. Como começou essa iniciativa?
O centro de São Paulo sempre foi um espaço multicultural ao longo dos anos, recebendo pessoas de diferentes etnias. No passado eram os alemães, italianos, coreanos. Hoje, há um afluxo muito grande de chineses por causa do comércio e tivemos a felicidade, há dez anos, de receber muitas dessas crianças. Em 2007 tínhamos um grupo de 17 crianças que não falava português e percebemos que tínhamos que iniciar um trabalho diferenciado se quiséssemos continuar a recebê-las aqui. Entramos em contato com a missão chinesa em São Paulo e tivemos apoio do Padre Lucas, um padre chinês que está no Brasil há 15 anos e que começou um trabalho conosco. Desde então temos oferecido, além do ensino convencional, várias atividades dentro da cultura chinesa, uma delas é o ensino de mandarim. Hoje a escola é reconhecida pelo governo chinês para as crianças que querem dar continuidade aos seus estudos em mandarim. Temos 180 crianças que têm aulas com quatro professores chineses de física, química e matemática em mandarim, além de alunos brasileiros que têm se interessado pelo mandarim. A maioria vem de famílias chinesas que ao desembarcarem no Brasil procuram nossa escola sem nenhum conhecimento da língua portuguesa. Existe um período de adaptação, com um programa chamado Pleno Português de ensino de língua estrangeira adaptado ao mandarim. Depois as crianças são assimiladas aos poucos dentro das turmas em português, além das atividades próprias chinesas: música, esportes, etc. Para os pais também é muito importante, pois eles chegam sem falar português e o filho é uma ponte de ligação com a sociedade. Ao chegar, as famílias se declaram sem religião, mas não se opõem à catequese, e há crianças que optam pelo batismo e fazem a primeira comunhão. Também fazemos um trabalho com os pais em atividades culturais e esportivas e nossa expectativa é que consigamos também apresentar a fé a essas famílias.

No ano passado o Mosteiro fez uma grande exposição que abriu espaços do mosteiro para a cidade. Como foi esse evento?
Essa exposição foi surpreendente e algo inédito no país. Participamos de um edital de patrimônio e arte do Ministério da Cultura que propunha atividades culturais em prédios tombados incentivando que se promovessem atividades culturais para colocar esses edifícios em evidência. Foram apresentados 200 projetos em todo o Brasil e nove deles foram selecionados, entre eles o nosso “Arte e Espiritualidade” com a participação de um de nossos monges, o artista plástico Dom Carlos Eduardo Uchôa, junto com os artistas Marco Giannotti e José Spaniol. A exposição foi realizada no espaço do colégio e do Mosteiro. Aqui eles exploraram temas como: céu, paraíso e inferno, cruz, ressurreição, morte, oração, vida com instalações, esculturas, pinturas, fotografias. Para nossa surpresa, em menos de um mês vieram 40 mil pessoas, com filas enormes na porta para ver a exposição. O evento foi patrocinado pela Petrobrás, tivemos monitores e colóquios com os três artistas que conversaram com o público sobre arte contemporânea. Foi um espetáculo. Não tenho conhecimento de um evento que teve um afluxo tão grande de pessoas diariamente. Esta exposição foi premiada pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como a melhor de 2010.
Como o senhor define o carisma beneditino?
O carisma beneditino, se assim podemos definir um carisma, não está ligado a um fazer, a uma atividade. Muitas vezes quando falamos da vida religiosa nós a identificamos com aquilo que o religioso faz. Isso é normal porque na nossa sociedade muitas vezes se pergunta: mas o que você faz? Isso determina o que você é: médico, professor, etc. Isso já situa a pessoa. Isso é muito positivo em certos aspectos porque de fato o trabalho realiza a pessoa, não é simplesmente uma obrigação, mas um direito, um jeito dela manifestar sua afetividade, se autodeterminar, de manifestar sua dignidade, participando, atuando, servindo, e isso vem de encontro com o que a Igreja compreende como função social do trabalho. O trabalho não é só para produzir, mas para que a pessoa se realize e se manifeste naquilo que é, assim como a arte. Na vida beneditina o “ora et labora” estão interligados. O próprio trabalho é uma maneira de orar e trabalhar. Mas o carisma do monge não está no que ele faz, mas no que ele é. E dessa forma a vocação de trabalho dentro do mosteiro é muito ampla. O monge pode trabalhar no colégio, na faculdade, na padaria, na arte ou pode se dedicar inteiramente ao estudo, ou dentro da casa, em um trabalho mais prático. Nesse sentido a vocação beneditina é mais universal, ela não está ligada a um fazer específico, a uma atividade específica, a não ser naquele aspecto que é o mais profundo do monge que é a vida de oração. O monge, de fato, tem que ter essa sede de oração, de estar na presença de Deus. Mas isso não está estritamente ligado apenas ao monge: a vida cristã pede que tenhamos essa abertura de perceber Deus em tudo que fazemos e em qualquer ambiente estejamos. O monge, no rompimento com o mundo, na vida de clausura, na dedicação a uma vida comunitária, voltada inteiramente a estar na presença de Deus, é um sinal desta outra dimensão do ser humano que o conduz à vida eterna. É esse o sentido da fuga mundis, a fuga do mundo, a separação do mundo: não desprezar esse mundo, mas perceber que ele de fato é passageiro e é um instrumento, um meio, para eu chegar a uma realidade plena. O carisma do monge é este: olhar para o alto, olhar para Deus, ser uma presença de Deus continuamente, fazer com que percebamos essas realidades que muitas vezes não são visíveis no dia a dia. As preocupações e ocupações do dia, muitas vezes tiram nosso olhar do eterno, do pleno, da totalidade do ser humano. A vocação do monge coloca em evidência a plenitude do ser humano. A palavra monge significa justamente isso, ser um, no sentido de integral, pleno, ser um ser humano total. Se ele vive isso, de certa forma comunga, participa com o outro. Quem se torna monge sente-se humano, encontra-se consigo mesmo.

Como foi o despertar da sua vocação?
Sou uma vocação “tardia”, diriam os antigos, porque só me interessei mesmo pela vida monástica depois dos 25 anos. Sou formado em engenharia eletrônica, e fui cadete na Academia da Força Aérea. Entrei no mosteiro depois de formado, trabalhando. Eu nunca tinha pensado na vida religiosa, monástica. De certa forma minha vocação foi uma surpresa para mim mesmo. Vim por acaso ao mosteiro com um amigo que queria ser monge e eu achava um absurdo, por vários motivos. O acompanhei para conversar com os monges e fazê-lo desistir dessa ideia. Quando cheguei ao mosteiro, com 25 anos, me surpreendi com a densidade espiritual da comunidade no centro da cidade. Para mim era inusitado um mosteiro urbano. Eu sempre associava o mosteiro ao meio rural, à época medieval, no meio de uma floresta, à beira de um lago, em uma montanha, em um lugar aprazível, bucólico. E para mim era uma contradição o mosteiro no meio urbano tão conturbado. E, no entanto, ao entrar, senti uma paz muito grande, que o próprio edifício transmite. Há um ambiente de silêncio, as paredes são grossas, a estrutura física permite isso, o claustro, o jardim interno, que convidava à oração. Descobri uma biblioteca magnífica que é a primeira biblioteca da cidade de São Paulo. E, mais ainda, me encontrei com pessoas que estavam inteiramente presentes na vida da cidade e ao mesmo tempo viviam uma vida profunda de oração e espiritualidade. Foi essa descoberta que me fez então, de início, querer usufruir desse espaço, da convivência com esses monges. Foi esse encontro com as pessoas e com esta experiência muito rica que me atraiu e que era, na verdade, uma tradição milenar da Igreja, a experiência profunda de estar com Deus no centro da cidade, no mundo. Foi assim que a minha vocação foi amadurecendo e hoje já estou no Mosteiro de São Bento há 18 anos.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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