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Passos N.132, Novembro 2011

IGREJA - O PAPA NA ALEMANHA

Veio para nos despertar

por Christoph Scholz

Do discurso no Parlamento à missa no estádio, da oração com os protestantes ao diálogo com judeus e muçulmanos. Na visita à sua pátria, Bento XVI varreu meses de críticas e hostilidades. Varreu tudo, recolocando no centro de tudo a espera do coração

A visita de Bento XVI à sua pátria foi, paradoxalmente, também uma das mais complexas do Pontificado. A lista de pedidos era muito extensa em relação às reformas no interior da Igreja, sobre os novos passos a fazer para o ecumenismo e também sobre uma mudança nas questões morais. Todavia, o Papa explicou logo desde o início que não tinha vindo para satisfazer as diferentes expectativas.
O seu desejo era, por um lado, mais modesto, e por outro, mais pretencioso, como declarou na cerimônia de boas-vindas no Castelo de Bellevue: “Não vim com determinados objetivos políticos ou econômicos, mas para me encontrar com as pessoas e falar de Deus”.
O presidente federal Christian Wulff submeteu-lhe imediatamente uma lista de pedidos de reformas internas na Igreja: desde a posição em relação aos divorciados e àqueles que se tornaram a casar, ao escândalo dos abusos e ainda sobre o papel das mulheres e dos leigos nas funções eclesiásticas e sobre as questões do ecumenismo. A estes aliou-se depois o presidente do Bundestag, Norbert Lammert, ao perguntar em que medida é que os mais altos representantes do Estado são autorizados a interferir nas questões internas da Igreja. Nas últimas semanas foram, sobretudo, o Linkspartei (herdeiro do SED, o único partido da República Democrática Alemã) e alguns grupos dos Verdes e dos laicistas da SPD a discutir o direito do Pontífice discursar no Bundestag. E cerca de 80 deputados não estiveram presentes, perdendo assim a oportunidade de tomarem parte “num momento decisivo na história do Parlamento alemão”, como foi definido, posteriormente, por outros deputados. O Pontífice foi aplaudido durante vários minutos, uma ovação que se dirigiu também à personalidade e à estatura intelectual do discurso.
Falou dos fundamentos do Estado, transferindo as fontes do direito para o “coração dócil” de Salomão: o homem descobre os critérios dentro de si, se escutar a própria natureza. O discurso foi um conselho a olhar abertamente para a natureza do homem e para a realidade: “É preciso tornar a escancarar as janelas, a olhar para a vastidão do mundo, do céu e da terra, e a aprender a usá-los adequadamente”.
Depois da visita, trezentos parlamentares seguiram o Papa até ao Estádio Olímpico, onde participaram da missa 70 mil fiéis vindos de todo o país. O arcebispo Rainer Maria Woelki falou de “um evento que marca uma época, que se esperava há muito tempo, e não só pela Igreja de Berlim”. Uma cidade “que se caracteriza pelo esquecimento de Deus e pelo ateísmo”, explicou, onde só um habitante sobre três pertence a uma Igreja cristã, mas que, ao mesmo tempo é “cidade dos mártires” (foi aqui que, no século XX, morreu o maior número de cristãos pela fé).

Lutero e a pergunta. As perseguições sob o regime da RDA entram na história dos mártires da Igreja. Para além da perseguição física, também houve condenações sociais e discriminações: desde a proibição da inscrição na universidade à perda de oportunidades de trabalho e à vida privada. Foi sobretudo a experiência de uma Igreja de povo, concretamente vivida, que continuou a unir os católicos dos subúrbios de Eichsfeld e aqueles que pertenciam ao grupo étnico dos sorábios. Para agradecer aos cristãos a sua firmeza, o Papa visitou Erfurt e o santuário mariano de Etzelsbach: “As mudanças políticas de 1989 não eram só motivadas pelo desejo de bem-estar e de liberdade de ação, mas, de modo decisivo, pelo desejo de veracidade”, sublinhou. Na missa em que gostariam de ter participado 50 mil pessoas, por motivos de segurança foi seguida apenas por 27 mil fiéis. No dia seguinte um jornal comentou: “É como se o Papa tivesse beijado o cristianismo que outrora era tão vivo na Turíngia e talvez em toda a RDA, tornando a despertá-lo do sono em que tinha caído durante anos”.
A etapa de Erfurt foi dedicada também ao ecumenismo, com um momento de oração com expoentes do protestantismo no antigo convento dos Agostinhos. Pela primeira vez um Papa falou no lugar em que Lutero interpretou a palavra de Deus: “A pergunta: qual a posição de Deus a meu respeito, como é que eu estou diante de Deus? – esta pergunta lancinante de Lutero deve tornar-se de novo, e certamente de uma maneira nova, também a nossa pergunta, não uma pergunta acadêmica, mas concreta. Penso que este é o primeiro apelo que deveremos escutar no encontro com Martinho Lutero”, afirmou o Papa neste encontro cordial e ao mesmo tempo doloroso, porque recordou a divisão entre as duas confissões. Mas Bento XVI sublinhou que o ecumenismo não pode basear-se em compromissos de ordem político-eclesiástica: “A unidade não cresce mediante a avaliação das vantagens e das desvantagens, mas somente através de uma penetração cada vez mais profunda na fé”. À luz da crescente secularização, o Papa exortou a um testemunho coletivo: “Como cristãos, devemos defender a dignidade inviolável do homem, desde a concepção até à morte – nas questões desde o diagnóstico de pré-implantação até à eutanásia. A fé em Deus deve concretizar-se no nosso empenho comum pelo homem”.
Tanto o encontro com a comunidade judaica no Reichstag como o encontro com a comunidade muçulmana na Nunciatura da capital se desenvolveram sob o signo do ecumenismo. No primeiro encontro, Bento XVI recordou que “uma comunhão de amor e compreensão entre Israel e a Igreja, no mútuo respeito pelo ser do outro, deve crescer mais”. Seis anos depois da visita à Sinagoga de Colônia, o Papa convidou os cristãos a tornarem-se cada vez mais cientes “da afinidade interior com o Judaísmo. Para os cristãos, não pode haver uma quebra no evento salvífico”. O motivo está ligado ao mundo em que vivemos, onde “este diálogo deve reforçar a esperança comum em Deus. Sem essa esperança, a sociedade perde a sua humanidade”.
Assim, diante dos representantes muçulmanos, o Papa sublinhou a importância da dimensão religiosa: “Uma provocação numa sociedade que tende a marginalizar este aspecto ou, quando muito, a admiti-lo no âmbito das escolhas privadas dos indivíduos”. Em vez disso, “trata-se de uma exigência que não se torna irrelevante pelo fato de surgir no contexto de uma sociedade majoritariamente pluralista. Nisso, é preciso estar atento para que se mantenha sempre o respeito do outro. Este respeito recíproco só cresce na base de um entendimento sobre alguns valores inalienáveis, próprios da natureza humana, sobretudo a dignidade inviolável de cada pessoa como criatura de Deus”. Recordando a iminente Jornada de reflexão, diálogo e oração pela paz e pela justiça do mundo (em Assis, em 27 de Outubro), o Papa disse: “Penso que é possível uma colaboração fecunda entre cristãos e muçulmanos... Enquanto homens religiosos, a partir das respectivas convicções, podemos dar um testemunho importante em muitos setores cruciais da vida social. Estou pensando, por exemplo, na tutela da família fundada sobre o matrimônio, no respeito pela vida em cada fase do seu desenvolvimento natural ou na promoção de uma justiça social mais ampla”.

A verdadeira crise. Foi em Friburgo que se desenrolou finalmente o encontro com aquele catolicismo laico organizado que muitas vezes entra em polêmica com Roma. Alois Glück, presidente do Comitê central dos católicos alemães, pediu a realização de grandes reformas à luz da crescente secularização, da diminuição das vocações e da forte pressão pública que se seguiu aos casos dos abusos.
Bento XVI fez um balanço desencantado sobre a condição da Igreja no Estado Alemão: “Na Alemanha, a Igreja está muitíssimo bem organizada. Mas será que, por detrás das estruturas, se pode encontrar também uma força espiritual que lhes corresponda, a força da fé no Deus vivo? Temos de dizer sinceramente que há um excesso de estruturas em relação ao Espírito. Acrescentaria ainda: a verdadeira crise da Igreja no mundo ocidental é uma crise de fé. Se não conseguirmos uma verdadeira renovação da fé, qualquer reforma estrutural continuará a ser ineficaz”.
Também os jovens esperam mais da Igreja. Referindo-se às velas que os jovens tinham acendido na vigília da Feira de Friburgo, o Papa disse: “Uma vela continuaria a ser inútil se a sua cera não alimentasse o fogo. Permitam que Cristo arda em vós, ainda que isto possa, por vezes, implicar sacrifício e renúncia. Não tenhais medo de poder perder alguma coisa e no fim ficar, por assim dizer, com as mãos vazias. Tende a coragem de empenhar os vossos talentos e os vossos dotes pelo Reino de Deus e de vos dar a vós mesmos – como a cera da vela – para que através de vós o Senhor ilumine as trevas. Sabei ousar ser santos ardorosos, em cujos olhos e corações brilha o amor de Cristo e que, deste modo, trazem luz ao mundo”.
Bento XVI também evitou uma redução moralista da figura do santo, muitas vezes objeto de caricaturas e distorções, “como se isso significasse estar fora da realidade, ingênuo e sem alegria. Muitas vezes pensa-se que um santo é aquele que só faz coisas ascéticas e morais de alto nível e que por isso, se pode decerto venerar, mas nunca imitar na própria vida. Quão errada e desencorajante é esta opinião!”. Cristo não dá tanta importância a “quantas vezes na vida vacilamos e caímos, mas a quantas vezes nós, com a sua ajuda, nos reerguemos. Não exige ações extraordinárias, mas quer que a sua luz resplandeça em vós. Não vos chama porque sois bons e perfeitos, mas porque Ele é bom e quer tornar-vos seus amigos. Sim, vós sois a luz do mundo, porque Jesus é a vossa luz. Vós sois cristãos, não porque fazeis coisas especiais e extraordinárias, mas porque Ele, Cristo, é a vossa, nossa vida. Vós sois santos, nós somos santos, se deixarmos que a sua Graça aja em nós”.
A transmissão da fé foi uma das questões que o Papa teve mais atenção durante esta visita. A resposta não reside na implementação de uma determinada série de reformas, mas na dedicação concreta aos homens “a quem falta a esperiência da bondade de Deus”. Estes homens “precisam de lugares onde possam falar da sua nostalgia interior. E é aqui que somos chamados a procurar novos caminhos para a evangelização”, afirmou o Papa em Friburgo. “Um destes caminhos poderia ser constituído por pequenas comunidades, onde se vivem amizades, que são aprofundadas na frequente adoração comunitária de Deus. Aqui há pessoas que contam as suas pequenas experiências de fé no local de trabalho e no âmbito da família e dos seus conhecimentos, testemunhando, desse modo, uma nova aproximação da Igreja à sociedade”.
As grandes celebrações no Estádio Olímpico de Berlim, em Erfurt e em Friburgo, não foram uma encenação eclesiástica, mas sinais de uma resposta concreta que a Igreja tem para oferecer às perguntas fundamentais do homem. Sinais da presença de Deus. O Papa soube devolver uma nova consciência a uma Igreja insegura e desalentada. Uma consciência que caminha ao lado da humildade do cristão que sabe que não é ele a “fazer a Igreja”.
Um destes sinais de humildade e de caridade foi o diálogo com as vítimas dos abusos sexuais. Um encontro que, contudo, foi ao mesmo tempo um desafio, lançado a cada indivíduo, a tornar a confrontar-se seriamente com as suas próprias perguntas fundamentais: “Agnósticos que, por causa da questão sobre Deus, não conseguem encontrar a paz; pessoas que sofrem por causa dos seus pecados e têm o desejo de um coração puro, estão mais próximos do Reino de Deus do que os fiéis ‘habituais’, que já vêem na Igreja só a pompa e circunstância, sem que o seu coração seja tocado pela fé”.
E no encontro conclusivo, dirigindo-se aos católicos empenhados na Igreja e na sociedade, o Papa recordou a beata Madre Teresa, que uma vez, face à pergunta de uma pessoa: “Qual é a primeira coisa a mudar na Igreja?”, respondeu: “Você e eu”. Este discurso foi ao mesmo tempo o vértice e a síntese da mensagem que Bento XVI quis levar à sua pátria e não só. Em apenas vinte minutos fez resplandecer a grandeza e a profundidade misteriosa da Igreja católica. A Igreja, por si mesma, “nada possui diante d’Aquele que a fundou. O seu sentido é ser o instrumento da redenção, deixar-se invadir pela palavra de Deus e introduzir o mundo à união de amor com Deus”. A Igreja, portanto, deve fazer continuamente o esforço de “se afastar da secularização”, que o Papa enquadrou na história da salvação: “A história vem em auxílio da Igreja através das diversas épocas de secularização, que contribuíram de modo essencial para a sua purificação e reforma interior”.

Sem fardos. E depois chegou o que, para alguns, representou o verdadeiro desafio, e para outros, o verdadeiro escândalo de toda a viagem: Bento XVI exigiu da comunidade talvez materialmente mais rica, mas espiritualmente mais pobre, aquela “libertação da mundanidade” que a tornaria de novo pronta a cumprir a sua verdadeira missão: “Liberta dos fardos e dos privilégios materiais e políticos, a Igreja pode dedicar-se melhor e de uma forma verdadeiramente cristã ao mundo inteiro, pode estar verdadeiramente aberta ao mundo. Pode novamente viver com mais agilidade o seu chamamento ao ministério da adoração de Deus e ao serviço do próximo”.
O discurso teve o efeito de uma bomba, como conclusão de uma viagem em que o Papa desiludiu muitas previsões, para tornar a colocar no centro a espera do coração humano e a missão da Igreja como resposta a esta necessidade de cumprimento e de redenção. Como tinha dito há seis anos, no início do seu ministério: “Não há nada mais belo do que conhecê-L’o e comunicar aos outros a amizade que Lhe temos”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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