Trechos dos discursos do Santo Padre durante a viagem apostólica de 22-25 de setembro de 2011
AS GRANDES COISAS QUE TEMOS EM COMUM
Que significa a questão de Deus na nossa vida, no nosso anúncio? Hoje a maioria das pessoas, mesmo cristãs, dá por suposto que Deus, em última análise, não se interessa dos nossos pecados e das nossas virtudes. (...)
A pergunta: qual é a posição de Deus a meu respeito, como apareço a seus olhos? – esta pergunta que desinquietava Lutero deve tornar-se de novo, certamente numa forma diversa, também a nossa pergunta, não acadêmica, mas concreta. (...)
A coisa mais necessária para o ecumenismo é primariamente que, sob a pressão da secularização, não percamos, quase sem dar por isso, as grandes coisas que temos em comum. (...)
Naturalmente, a fé deve ser repensada e sobretudo vivida hoje de um modo novo, para se tornar uma realidade que pertença ao presente. Para isso ajuda não a mitigação da fé, mas somente o vivê-la integralmente no nosso hoje. (...) Não serão as táticas a salvar-nos, a salvar o cristianismo, mas uma fé repensada e vivida de modo novo, através da qual Cristo, e com Ele o Deus vivo, entre neste nosso mundo. (...) A fé, vivida a partir do íntimo de nós mesmos, num mundo secularizado, é a força ecumênica mais poderosa.
(Encontro com os representantes da Igreja Evangélica Alemã, Erfurt, 23 de setembro)
A SEDE DE INFINITO É INEXTIRPÁVEL
O homem tem necessidade de Deus, ou, pelo contrário, as coisas continuam bastante bem mesmo sem Ele? Quando, numa primeira fase da ausência de Deus, a sua luz continua ainda a enviar os seus reflexos e mantém unida a ordem da existência humana, tem-se a impressão de que as coisas funcionem bastante bem mesmo sem Deus. Mas, à medida que o mundo se afasta de Deus, vai-se tornando cada vez mais claro que o homem, na petulância do poder, no vazio do coração e na ânsia de prazer e felicidade, “perde” progressivamente a vida. A sede de infinito está presente no homem de modo inextirpável. O homem foi criado para a relação com Deus e precisa d'Ele. Neste tempo, o nosso primeiro serviço ecumênico deve ser testemunharmos juntos a presença de Deus vivo e, deste modo, dar ao mundo a resposta de que tem necessidade. Naturalmente, deste testemunho fundamental de Deus faz parte, de maneira absolutamente central, o testemunho de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que viveu no nosso meio, sofreu por nós, morreu por nós e, na ressurreição, abriu a porta da morte. Queridos amigos, fortaleçamo-nos nesta fé! Ajudemo-nos mutuamente a vivê-la! Trata-se de uma grande tarefa ecumênica. (...)
A fé dos cristãos não se baseia numa ponderação das nossas vantagens e desvantagens. Uma fé construída por nós próprios não tem valor. A fé não é algo que nós esquadrinhamos e concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos. A unidade não cresce através da ponderação de vantagens e desvantagens, mas só graças a uma penetração cada vez mais profunda na fé mediante o pensamento e a vida.
(Celebração ecumênica, Erfurt, 23 de setembro)
A RAZÃO POSITIVISTA E A RAZÃO ABERTA À LINGUAGEM DO SER
“Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiça ao teu povo e discernir o bem do mal” (1 Re 3, 9). Com esta narração, a Bíblia quer indicar-nos o que deve, em última análise, ser importante para um político. (...)
Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente, pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio maioritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação. (...)
Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado da parte da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção realizara-a já São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: “Quando os gentios que não têm a Lei [a Torah de Israel], por natureza agem segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta do testemunho da sua consciência” (Rm 2, 14-15). Aqui aparecem os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a “consciência” o mesmo que o “coração dócil” de Salomão, a razão aberta à linguagem do ser. (...)
A concepção positivista, quase geralmente adotada hoje, de natureza, (...) considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen - “um agregado de dados objetivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos”. (...) Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. (...) A visão positivista do mundo (...) no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. (...)
É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra. (...)
Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? (...)
O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. (...) É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?
(Discurso ao Parlamento Federal, Berlim, 22 de setembro)
UMA PEQUENA CHAMA
MAIS FORTE DO QUE A ESCURIDÃO
Não são os nossos esforços humanos nem o progresso técnico do nosso tempo que trazem a luz a este mundo. Experimentamos sempre de novo que o nosso esforço por uma ordem melhor e mais justa tem os seus limites. (...) Mas, no fim, permanece uma escuridão angustiante.
Ao nosso redor pode haver a escuridão e as trevas, e todavia vemos uma luz: uma chama pequena, minúscula, que é mais forte do que a escuridão, aparentemente tão poderosa e insuperável. Cristo. (...) A fé n’Ele penetra, como uma pequena luz, tudo o que é escuro e ameaçador. Certamente quem acredita em Jesus não é que vê sempre só o sol na vida, como se fosse possível poupar-lhe sofrimentos e dificuldades, mas há sempre uma luz clara que lhe indica um caminho. (...)
Queridos amigos, a imagem dos santos foi repetidamente objeto de caricatura e apresentada de modo distorcido, como se o ser santo significasse estar fora da realidade, ser ingênuo e viver sem alegria. Não é raro pensar-se que um santo seja apenas aquele que realiza ações ascéticas e morais de nível altíssimo, pelo que se pode certamente venerar, mas nunca imitar na própria vida. Como é errada e desalentadora esta visão! (...)
Queridos amigos, Cristo não se interessa tanto de quantas vezes vacilamos e caímos na vida, como sobretudo de quantas vezes nós, com a Sua ajuda, nos erguemos. Não exige ações extraordinárias, mas quer que a sua luz brilhe em vós. Não vos chama porque sois bons e perfeitos, mas porque Ele é bom e quer tornar-vos seus amigos. (...) Vós sois cristãos, não porque realizais coisas singulares e extraordinárias, mas porque Ele, Cristo, é a vossa, a nossa vida. (...)
Permiti que Cristo arda em vós, ainda que isto possa às vezes implicar sacrifício e renúncia. Não tenhais medo de poder perder alguma coisa, ficando, no fim, por assim dizer de mãos vazias. Tende a coragem de empenhar os vossos talentos e os vossos dotes (...) para que o Senhor ilumine, por vosso meio, a escuridão.
(Discurso aos jovens, Friburgo, 24 de setembro)
UM RELATIVISMO QUE PENETRA TODOS
OS ÂMBITOS DA VIDA
Vivemos num tempo caracterizado em grande parte por um relativismo subliminar que penetra todos os âmbitos da vida. Às vezes, este relativismo torna-se combativo, lançando-se contra pessoas que dizem saber onde se encontra a verdade ou o sentido da vida. (...)
Na Alemanha, a Igreja está otimamente organizada. Mas, por detrás das estruturas, porventura existe também a correlativa força espiritual, a força da fé no Deus vivo? Sinceramente devemos afirmar que se verifica um excedente das estruturas em relação ao Espírito. Digo mais: a verdadeira crise da Igreja no mundo ocidental é uma crise de fé. (...)
Mas, voltemos às pessoas a quem falta a experiência da bondade de Deus. Precisam de lugares, onde possam expor a sua nostalgia interior. E, aqui somos chamados a procurar novos caminhos da evangelização. (...) Que o Senhor nos indique sempre o caminho para, juntos, sermos luzes no mundo e mostrarmos ao nosso próximo o caminho para a fonte, onde possam saciar o seu profundo anseio de vida.
(Discurso ao comitê central dos católicos alemães, Friburgo, 24 de setembro)
ELE AGUARDA O NOSSO “SIM” E O MENDIGA
Deus, o Onipotente, (...) exerce o seu poder de maneira diferente de como costumamos fazer nós, os homens. Ele próprio impôs um limite ao seu poder, ao reconhecer a liberdade das suas criaturas. (...) Ele está perto de nós, e o seu coração comove-se por nós, inclina-se sobre nós. Para que o poder da sua misericórdia possa tocar os nossos corações, requer-se a abertura a Ele. (...) Deus respeita a nossa liberdade; não nos constrange. Ele aguarda o nosso “sim” e, por assim dizer, mendiga-o.
No Evangelho, Jesus (...) narra a parábola dos dois filhos que são convidados pelo pai para irem trabalhar na vinha. O primeiro filho respondeu: ““Não quero”. Depois, porém, arrependeu-se e foi” (Mt 21, 29). O outro, ao contrário, disse ao pai: ““Eu vou, senhor.” Mas, de fato, não foi” (Mt 21, 30). (...) Jesus (...) dirige esta mensagem aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo de Israel, isto é, aos peritos de religião do seu povo. Estes começam por dizer “sim” à vontade de Deus; mas a sua religiosidade torna-se rotineira, e Deus já não os inquieta. Por isso sentem a mensagem de João Batista e a de Jesus como um incômodo. E assim o Senhor conclui a sua parábola com estas palavras drásticas: “Os publicanos e as mulheres de má vida vão antes de vós para o Reino de Deus”. Traduzida em linguagem de hoje, a frase poderia soar mais ou menos assim: agnósticos que, por causa da questão de Deus, não encontram paz e pessoas que sofrem por causa dos seus pecados e sentem desejo dum coração puro, estão mais perto do Reino de Deus de quanto o estejam os fiéis rotineiros, que na Igreja já só conseguem ver o aparato sem que o seu coração seja tocado por isto: pela fé. (...)
No espírito do ensinamento de Jesus, exige-se ´(...) o coração aberto, que se deixa tocar pelo amor de Cristo, e deste modo dá ao próximo, que precisa de nós, mais do que um serviço técnico: o amor, no qual se torna visível ao outro o Deus que ama, Cristo. (...) A renovação da Igreja só poderá realizar-se através da disponibilidade à conversão e duma fé renovada.
Humilitas, a palavra latina donde deriva “humildade”, tem a ver com humus, isto é, com a aderência à terra, à realidade. As pessoas humildes vivem com ambos os pés na terra. (...) Peçamos a Deus a coragem e a humildade de prosseguirmos pelo caminho da fé.
(Homilia da Missa, Friburgo, 25 de setembro)
TORNAR VISÍVEL E AUDÍVEL
O TESTEMUNHO DE CRISTO
Os santos põem em evidência o fato de que Deus (...) se dirigiu a nós primeiro. Nós não poderíamos chegar a Ele e nem tender, de qualquer forma, para aquilo que é desconhecido, se Ele não nos tivesse amado primeiro, se não tivesse vindo ao nosso encontro primeiro. (...)
Também hoje, Cristo vem ao nosso encontro, fala a cada um. (...) Os santos (...) deixaram-se, por assim dizer, contagiar por Ele e, a partir do íntimo de si mesmos, propenderam para Ele. (...)
A fé é sempre também um acreditar junto com os outros. Ninguém pode crer sozinho. Recebemos a fé, diz-nos Paulo, através da escuta. E a escuta é um processo que requer o estar juntos de modo espiritual e físico. (...) O fato de poder crer devo-o, antes de mais nada, a Deus que Se dirige a mim e, por assim dizer, “acende” a minha fé. Mas, de um modo muito concreto, devo a minha fé àqueles que vivem ao meu redor e que acreditaram antes de mim e acreditam juntamente comigo. Este grande “com”, sem o qual não pode haver qualquer fé pessoal, é a Igreja.(...) Se nos abrirmos à fé integral ao longo de toda a história e nos seus testemunhos em toda a Igreja, então a fé católica tem um futuro, mesmo como força pública. (...)
Os santos, mesmo onde são poucos, mudam o mundo. E os grandes santos continuam a ser forças transformadoras em cada tempo. (...) Então seremos semelhantes ao famoso sino da catedral de Erfurt que se chama “Glorioso”. (...) Possa servir-nos de estímulo para – a exemplo dos santos – tornarmos visível e audível o testemunho de Cristo no mundo; para tornarmos visível e audível a glória de Deus e, desse modo, viver num mundo onde Deus está presente e torna a vida bela e rica de significado.
(Homilia da Missa, Erfurt, 24 de setembro)
ELE É MAIS ÍNTIMO A MIM DO QUE EU MESMO
Assistimos, há decênios, a uma diminuição da prática religiosa, constatamos o crescente afastamento duma parte notável de batizados da vida da Igreja. Surge a pergunta: Porventura não deverá a Igreja mudar? Não deverá ela, nos seus serviços e nas suas estruturas, adaptar-se ao tempo presente, para chegar às pessoas de hoje que vivem em estado de busca e na dúvida? Uma vez alguém instou a beata Madre Teresa a dizer qual seria, segundo ela, a primeira coisa a mudar na Igreja. A sua resposta foi: tu e eu!
A Igreja fica-se a dever totalmente a esta permuta desigual. Por si mesma nada possui diante d’Aquele que a fundou, de modo que possa dizer: fizemo-lo muito bem! (...)
No desenvolvimento histórico da Igreja manifesta-se também uma tendência contrária, ou seja, a de uma Igreja satisfeita consigo mesma, que se acomoda neste mundo, que é auto-suficiente e se adapta aos critérios do mundo. Assim não é raro dar à organização e à institucionalização uma importância maior do que dá ao seu chamamento a permanecer aberta a Deus. (...)
Para corresponder à sua verdadeira tarefa, a Igreja deve esforçar-se sem cessar por distanciar-se desta sua secularização e tornar-se novamente aberta para Deus. (...) Em certo sentido, a história vem em ajuda da Igreja com as diversas épocas de secularização, que contribuíram de modo essencial para a sua purificação e reforma interior. (...)
A Igreja abre-se ao mundo, não para obter a adesão dos homens a uma instituição com as suas próprias pretensões de poder, mas sim para os fazer reentrar em si mesmos e, deste modo, conduzi-los a Deus – Àquele de Quem cada pessoa pode afirmar com Agostinho: Ele é mais íntimo a mim do que eu mesmo (cf. Conf. III, 6, 11). (...) Não se trata aqui de encontrar uma nova tática para relançar a Igreja. (...)
Que o Deus eterno se preocupe conosco, seres humanos, e nos conheça; que o Inatingível, num determinado momento e num determinado lugar, se tenha colocado ao nosso alcance; que o Imortal tenha sofrido e morrido na cruz; que nos sejam prometidas a nós, seres mortais, a ressurreição e a vida eterna – crer em tudo isto não passa, aos olhos dos homens, de uma real presunção.
(Discurso aos católicos que atuam na Igreja e na sociedade, Friburgo, 25 de setembro)
© Copyright 2011 - Libreria Editrice Vaticana
Editado por Comunhão e Libertação
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón