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Passos N.107, Agosto 2009

CULTURA - FÉ E MÉTODO

O pensamento desleal

por Giuseppe Frangi

Os valores “separados da Revelação”. E uma cultura que, “desde o início da Era Moderna”, vem-se delineando como “não-cristã”. Palavras de Romano Guardini citadas nos últimos Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação. Decidimos aprofundá-las com MASSIMO BORGHESI, para entender onde nasce o risco de um “cristianismo sem Cristo”

Ao responder à última pergunta, na assembleia de encerramento dos Exercícios da Fraternidade, Julián Carrón recorreu a uma longa citação de Romano Guardini. A citação foi tirada da parte conclusiva do livro O fim da idade moderna, escrito pelo filósofo alemão em 1950. Guardini, nessas páginas, aborda a questão de como foi que os valores, filhos de uma cultura cristã, puderam ser apossados pelos mesmos que conduziram um ataque feroz ao núcleo da experiência cristã e ao conteúdo da Revelação. “Eles defendiam os frutos trazidos por Cristo, mas separando-os da sua origem”, escreve. Ou seja, propunham um “cristianismo sem Cristo”.
Haveria uma relação entre essa avaliação de Guardini e o nosso tempo? Quais implicações poderíamos tirar daí?
Dialogando com Massimo Borghesi – filósofo, professor de Filosofia Moral na Universidade de Perúgia, autor de numerosos livros, dentre os quais um dedicado justamente a Guardini (Romano Guardini. Dialettica e antropologia, Studium 1994) –, procuramos aprofundar um pouco mais o pensamento expresso por Guardini naquela página. Claro, não para fazer uma exercício filológico, e sim para compreender melhor sua avaliação e compará-la com a nossa experiência atual.
Na parte final de O fim da idade moderna, Guardini afirma que a cultura secularizada assume uma atitude peculiar em relação ao cristianismo. “A negação é direcionada somente contra o conteúdo da Revelação”. Em que consiste essa negação?
Significa que os últimos três séculos, a partir do Iluminismo, não conseguem mais aceitar a hipótese da Revelação, que Deus possa ter se manifestado na carne de um homem. Algo diferente é a moral que Cristo impõe: esta pode ser compartilhada, mesmo por quem não participa da fé em Jesus de Nazaré. Guardini, em seu escrito de 1950, assim como havia feito em “Mundo e pessoa”, de 1939, critica o moderno processo de secularização, esse processo que separa Cristo de Deus, da Igreja, da cultura cristã. Para isso, de um lado, Jesus é glorificado como um personagem excelente, um utopista que, ao lado de Sócrates, se sacrificou por suas ideias; por outro lado, atribui-se à Igreja a mistificação e a deformação da mensagem original de Jesus, a divinização imprópria de uma figura humana exemplar. O dogma seria a falsificação – operada pela comunidade cristã – da obra de um homem que nunca sonhou em se fazer Deus. Por isso, o Iluminismo separa o “Cristo da fé” – isto é, idealizado pela Igreja – do “Cristo da história”, o qual só pode ser “arqueologicamente” descoberto depois que forem removidas as sedimentações produzidas pela consciência eclesial. O resultado é o ateísmo do século XIX. Se o testemunho dos evangelistas não é confiável, se não tem valor “jurídico”, então não existe um Homem-Deus e o cristianismo é fruto de uma grande ilusão.
Guardini diz que a cultura moderna apoia-se nos valores gerados pelo mundo “cristão”, mas nega a ligação deles com a Revelação. Como entender essa operação?
O respeito que, apesar de tudo, o Iluminismo dedica ao personagem Jesus estende-se à moral cristã, considerada a mais “humana”, a mais justa. Os modernos, depois que “humanizaram” Jesus, se apropriaram de sua moral, considerada por eles uma doutrina universal, ao alcance de qualquer homem de boa vontade. Essa “apropriação” é avaliada por Guardini, em O fim da idade moderna, como uma operação “desleal”: não é possível separar os valores cristãos da figura real, humano-divina, de Cristo. Separados dEle, esses valores decaem, perdem intensidade, se deturpam. Em seu livro sobre Pascal, Guardini escreve: “Não é possível separar o ‘pensamento cristão’ de Deus, a ‘verdade cristã’ do Cristo concreto. A doutrina cristã permanece cristã porque é, por assim dizer, captada dos lábios de Jesus Cristo; recebe vida dEle, do Seu ser e do Seu agir. Não existe uma ‘essência do cristianismo’ que possa ser separada de Jesus Cristo – sublinho e repito, que seja desligada dEle – de modo que pudesse ser expressa num sistema conceitual autônomo. A essência do cristianismo é Ele; dEle provém e a Ele se refere; vive nEle e em torno dEle; captada da sua viva voz e lida em sua face”. Os valores cristãos tornam-se evidentes a partir de uma “atmosfera”, a partir de um contexto vivo, de uma relação com alguém que torna Cristo sensivelmente presente. Fora desse contexto tornam-se irreais, utópicos, abstratos.
Guardini, constatando com olhar realista o avanço da secularização, sublinha que o “tempo que virá vai criar uma clareza terrível, mas salutar”. O que ele quer dizer com esse tipo de afirmação?
A “clareza” significa o fim do usufruto, pelo qual o Iluminismo se apropria dos valores cristãos mas rejeitando a sua origem. É o fim da moderna “deslealdade”, desse “jogo duplo”, escreve Guardini, “que de um lado rejeita a doutrina e a ordem cristã da vida e, por outro, reivindica para si as consequências humanas e culturais dessa mesma doutrina”. Poderíamos observar que a posição atual de Habermas – para quem o Iluminismo deve voltar a se confrontar seriamente com a dimensão religiosa, porque não é mais capaz de produzir sentido em causa própria – é uma inteligente resposta à crítica guardiniana. Note-se que, para Guardini, o equívoco não estava somente na apropriação indevida dos valores cristãos por parte da cultura laica, e sim pela sua utilização contra o próprio cristianismo. Um cristianismo sem Cristo tem como alvo o cristianismo com Cristo: é a história do humanitarismo nos séculos XIX e XX. Pois bem, segundo Guardini (que escreve em 1950), “essas ambiguidades vão acabar. Os valores cristãos secularizados passarão a ser considerados sentimentalismos, e a atmosfera será purificada. Plena de hostilidade e de perigo, mas purificada e aberta”. Guardini prevê o resultado niilista da secularização e vê nisso uma oportunidade clarificadora para a fé. O fim do mundo cristão e da cultura cristã obriga a fé a uma renovada decisão, a sair da neblina da mundanização.
De fato, segundo Guardini, o cristão, na época que se inicia, ver-se-á vivendo cada vez mais sem pátria, incompreendido. Para resistir ao perigo, Guardini indica duas condições: “a maturidade do julgamento e a liberdade de opção”. Vamos entender o que significam essas duas condições.
Segundo Guardini, o crente só conseguirá suportar a hostilidade da época atual se a sua fé se basear na consciência e na liberdade pessoal. Giussani traduz de um modo todo seu essa intuição, quando, num colóquio com Testori, em 1980, afirma que “este é o tempo da consciência pessoal. É como se não fosse mais possível fazer cruzadas ou movimento [...]. Cruzadas organizadas; movimentos organizados. Um movimento nasce justamente com o despertar da pessoa, é uma coisa impressionante”. Diferentemente de Giussani, em Guardini essa percepção leva-o a uma visão pessimista, tendencialmente apocalíptica: “A solidão da fé será tremenda. O amor desaparecerá da conduta geral. Não será mais compreendido, e se tornará tanto mais precioso pelo fato de passar de um ser solitário a outro ser solitário”. A força da graça se comunica entre solitários. Joseph Ratzinger, em Olhar o Cristo, prefere dizer “entre experiências”. É diferente. Em Guardini, na conclusão de O fim da idade moderna, não há Igreja, não há tradição cristã, não há mais nada. Permanece a fé heroica dos solitários que resistirem ao vento gelado do niilismo. Num artigo que escrevi para a 30 Giorni, em 1992, com o título “Um novo início”, comparei essa perspectiva, parecida com a de Mounier em Feu la Chrétienté, com a de Giussani. Emergiu uma sensível diferença: entre o crente que permanece cristão e resiste, mesmo com a queda de um certo mundo (Guardini, Mounier), e quem vive imerso no mundo e se torna, pela graça, cristão (Giussani). Esse tornar-se cristão está ligado à graça de certos encontros, à presença de testemunhas que tornam presente a humanidade de Cristo. À decisão de Guardini falta a “alteridade”, o rosto do Outro. Ninguém “decide” permanecer se o lugar for inóspito e a companhia, péssima. O tempo do niilismo não é só o tempo da decisão; é também, e sobretudo, o tempo da “graça”. Só podemos decidir seguir o Cristo se pudermos olhá-Lo de frente, se nos sentirmos “olhados” por Ele com misericórdia, e não condenados pelos nossos pecados.

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ROMANO GUARDINI. Nasceu em Verona (Itália), a 17 de fevereiro de 1885. Ainda na infância, mudou-se para Mogúncia (Alemanha). Sacerdote desde 1910, lecionou na Universidade de Berlim até 1939, quando foi expulso pelos nazistas. Voltou ao ensino em Tubinga, em 1945; morreu em Munique no dia 1º de outubro de 1968. Examinou temas tradicionalistas à luz dos desafios da modernidade e analisou problemas atuais do ponto de vista católico. Entre suas obras estão: O espírito da liturgia, O fim da Idade Moderna, O poder, Estudos sobre Dante, A essência do cristianismo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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