O Cazaquistão tem 16 milhões de habitantes, um cruzamento infinito de histórias e etnias (cazaques e russos, polacos e coreanos, mongóis, tártaros, uzbeques, ucranianos...), um pequeno pelotão de católicos (insignificantes 300 mil, menos de 2%) e a presença do Movimento Comunhão e Libertação, que festejou vinte anos em 2014. As histórias que chegam dali continuam a nos surpreender por sua simplicidade radical, e nos mostram Cristo em ação.
Nesta viagem foram seis dias de rostos e de encontros, dos conjuntos residenciais no estilo soviético de Karaganda, onde no alto de um lance de escadas ainda existe o Djevjatyj Etazh, o Nono Andar, primeiro apartamento dos padres que chegaram aqui e que agora é a Sede de CL; aos 27ºC negativos de Astana, a capital toda de vidro, futurista e cheia de edifícios; às montanhas de Almaty, 1.200 km ao sul, perto da fronteira com o Quirguistão e, mais adiante, com a China. Seis dias ricos e intensos e o que relato aqui é apenas uma amostra.
Dostoiévski como amigo
A sala de aula de uma escola e o estranho início desta viagem. Mas é ali, no Complexo 38 de Karaganda, que Ljuba Khon, 59 anos, dá aulas de Literatura russa. Ela é a responsável de CL no país. Hoje o assunto é Dostoiévski. Duas aulas consecutivas, sempre para turmas de adolescentes. O tema é o livro O Mujique Marei, conto no qual vinte anos depois, na prisão, o grande escritor lembra o encontro com o camponês que o resgatou quando se perdeu na floresta, quando criança: “Agora, tenho em minha volta bêbados, pessoas corruptas (...), no entanto em cada um deles pode existir, no fundo, aquele camponês que me mostrou tanta caridade...”. Esperávamos a clássica explicação de um professor e, no entanto, é um fluxo contínuo de perguntas que suscitam perguntas: “Quem vocês acham que Marei é para Dostoiévski? Como ele se sentia enquanto escrevia? Já aconteceu algo assim com vocês...?”. Uma comparação com a vida. Que faz Polina, 15 anos e um olhar já adulto, dizer que “ele fala do mistério que há em nós, e não vejo a hora de saber as respostas a estas perguntas eternas”. Ou Júlia, cabelos raspados de um lado e pontas cor de fúcsia: “O homem que não tem perguntas não segue adiante”. “Entenderam que esse homem tem alguma coisa e querem saber o quê”, diz Ljuba: “Talvez porque é a mesma coisa que eles também carregam”.
Ljuba é assim. Apresenta Dostoiévski a seus alunos como um amigo. Mas, sobretudo, doa a si mesma. “Para mim, ensinar é dar tudo o que recebi na vida. O olhar que experimentei. Nós nos acompanhamos assim, no caminho”.
Maria e o vento do Buran
“Meninos, agora podemos discutir sobre a felicidade. Podem citar um momento em que foram felizes de verdade?”. A pergunta de Enrico chega durante do almoço. À mesa com ele, que agora é aposentado, estão Ljuba, padre Pier (pároco vindo de Fidenza), dois amigos e seis colegiais. Quinze, dezesseis anos, não mais, mas Maria nos ilumina quando fala do momento em que se deu conta de que a felicidade existe. “Estava num ponto de ônibus e começou uma tempestade. Ninguém por perto. Apenas silêncio, vento e neve. Podia decidir se ficava ali ou se voltava para casa caminhando. Pensava no futuro, no que podia fazer na vida... Tinha o coração aberto e o mundo estava ali, inteiro para mim”. O coração grande como o universo, e o universo que é dado a você, agora.
Ao lado dela está Nikolaj, mesma idade, corpo franzino e olhos grandes. Quando abre a boca, nos deixa perplexos: “Sou feliz quando levanto de manhã e vejo que tenho tudo: braços, mãos, pernas...”. Está doente há três anos. Aprendeu a bordar quadros em ponto cruz para ajudar a mãe a pagar o tratamento. Mas a maior dificuldade foi se ver sozinho: “Meus colegas não conseguiam mais ficar comigo”. Todos, exceto uma, Camilla. Está sentada ao lado dele. Há quase três anos, vai à sua casa diariamente estudar com ele. Basta olhar para ela e quase não há necessidade de fazer a tradução do russo para entender o que ela diz: “Não podemos ser feliz sozinhos”. E entendemos melhor a resposta dada por David, quando perguntamos por que eles dois e Ljuba são tão amigos: “Porque não somos indiferentes”.
No jantar na casa de Ramzia
Vista do alto, da esfera dourada no alto da Torre de Bayterek, Astana é um espetáculo estranho. Algo entre Paris e Disneylândia: avenidas no estilo boulevard e edifícios com a assinatura de Norman Foster, sobrados de luxo e velhos bairros de casas térreas. O rosto de uma cidade que está crescendo depressa porque tornou-se a capital há apenas vinte anos, quando o dinheiro do petróleo, gás e minério começaram a girar no mercado. Vê-se casas até o horizonte, depois, de repente, a estepe. É a impressão potente, física, de que o homem é muito grande e, ao mesmo tempo, nada diante do infinito. Que há sempre um “além”.
Como nas poesias italianas que Ramzia aprendeu a conhecer quinze anos atrás quando encontrou padre Edo Canetta, o primeiro de CL que chegou por estas partes, e começou a estudar italiano. Agora fala e ensina a língua na universidade. E nos explica o projeto de criar um Centro Cultural dedicado à Itália enquanto Dima, o marido, advogado famoso, fala sem parar, segurando nos braços a terceira filha, Miriam.
A casa deles é o centro do Movimento, aqui. Não há obras, estruturas, nem padres de CL. Apenas uma amizade muito forte. Tão forte a ponto de continuamente encontrar pessoas novas, ou atrair de novo pessoas que passaram pelo Movimento anos atrás e, depois, por vários motivos, se afastaram. Como Leila, que trabalha em uma think tank, onde estuda a China e o Oriente Médio, e agora está aqui novamente jantando com outras vinte e seis pessoas simplesmente conversando sobre a vida, o trabalho, a descoberta de si e do mundo. E no fim da noite abraça Enrico dizendo uma frase que corta o coração: “Todas as manhãs preciso decidir entre viver e não viver. Por isso estou aqui”.
O perdão de Nasgul
Em 2005 Nasgul não encontrava trabalho em Almaty, e mesmo depois de todos os sacrifícios para estudar estava fazendo as malas para partir. “Estava pronta para voltar para casa quando uma mulher que morava no meu pensionato me disse: tente ir ao Centro, talvez ajudem você”. O Centro se chama Alfa & Ômega e nasceu há treze anos para ajudar adolescentes problemáticos e suas famílias. Nasgul leva seu currículo até lá. E Silvia Galbiati, a diretora, ao invés de ajudá-la a procurar trabalho, a contrata. “Era o dia 18 de maio, ainda me lembro. Quem sabe onde estaria agora, se tivesse fechado aquela mala”. No entanto, está aqui, trabalhando em uma realidade que hoje ajuda os refugiados afegãos, organiza oficinas de pães e massas, ajuda os jovens a estudar, forma assistentes sociais... “Nos primeiros dias não entendia nada. Via Sílvia, minha chefe, se levantar da mesa no almoço para me servir. Também pedia minha opinião sobre o trabalho ao invés de me dizer “faça isto”. Para mim, eram coisas que nunca tinha visto, um outro mundo. Mas me sentia bem”. Como na amizade que nasce aos poucos com outras pessoas.
Seu pai havia saído de casa há quinze anos, depois do nascimento do quarto filho. Estava com outra mulher, e a mãe de Nasgul adoeceu. Imaginem o rosto de Silvia quando, depois de alguns meses, ela se apresentou ao trabalho e disse: “Queria lhe dizer uma coisa. Estamos aqui o dia inteiro, ajudamos várias pessoas. Então, pensei: e meu pai? Em suma, ontem à noite falei com meus irmãos e decidimos levá-lo de volta para casa”. Por quê? “Vi como vocês me tratam. Entendi que Deus está em todas as pessoas. E comecei a pensar: se ele é assim, talvez seja porque ninguém nunca o tenha olhado de outro modo. Assim que nasceu, seus pais o entregaram a outro casal: aqui acontece a mesma coisa. Ele não teve a sua família, cresceu com uma ferida dentro... Como é possível amar se não somos amados?”. Uma revolução. Séculos de tradições e diferenças culturais – e anos de dor, naquela casa – abraçados por um encontro. Transformados por uma história particular. “Eu escolhi ter este olhar. Porque entendi que somente assim poderia reconstruir o relacionamento com ele”.
Não foi fácil. “Entendi que é preciso decidir pelo perdão todos os dias, de novo. Pedia a Deus paciência. Percebi que ele não a dá de repente, mas doa os fatos que nos fazem aprendê-la”. Agora, seu pai passa o dia cuidando da esposa. “Descobri que ele é uma pessoa interessantíssima, que lê muito”. Quis conhecer os amigos italianos de Nasgul. E mesmo que tenha muitas perguntas sobre aquela filha, olha para ela com outros olhos. Porque sabe que não está sozinha.
As portas de Amina
Amina também encontrou uma companhia inesperada. A vida era plena: família rica, três filhos pequenos, a paixão pela moda e o restaurante vegano para administrar. “Mas buscava. Buscava muito”. A resposta chegou do modo mais inesperado. E tem o rosto de Mimmo, italiano que veio para o Cazaquistão para trabalhar exatamente com moda. O fato é que quando Amina pediu para se encontrar com ele por questões de trabalho, se viu diante de uma surpresa: “Tudo bem, mas amanhã de manhã não posso porque vou à caritativa na casa das Irmãs de Madre Teresa”. Ela perguntou do que se tratava e ele explicou que toda semana ia cozinhar para os sem-teto. E Amina, de repente, percebeu que “buscava algo assim há muito tempo”. Na manhã seguinte, às 6h, estavam no carro se dirigindo à casa das Irmãs. E Amina conheceu os amigos de Mimmo: padre Livio, Silvia, Lucia...
Logo em seguida ela começou a fazer Escola de Comunidade, a ajudar o Centro e a agradecer pelo encontro que, como diz, “abriu-me as portas nas quais batia tanto. Aqui, todas essas coisas estão juntas. Estar com vocês me ajuda a viver”.
E seu marido? Ele é cazaque e muçulmano, como você: o que diz disso? “Ele não se incomoda. Sabe que o que vivo não é contra ele ou a família, pelo contrário. Apenas, de vez em quando, me pede para não fazer tudo”. Como num outro dia. Amina queria ir à Escola de Comunidade, mas ele pediu que ficasse em casa e ela escreveu uma mensagem aos amigos. Resposta de Silvia: “Certo, fique aí, você vai ver que pode viver a mesma plenitude”. À noite, Amina lhe escreve: “Foi realmente assim: disse sim, e não perdi nada”.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón