Segunda etapa do nosso giro pelo Continente. Das mães costureiras de Petrópolis aos jovens de Novos Alagados (passando por Rio, São Paulo e Aracaju). Lugares em que a amizade de alguns está mudando a vida de muita gente. E o rosto do Movimento. Introduzindo “um novo modo de ser feliz”
A contece ali, quando a gente vê o dedo grosso e negro de Silvia deslizando devagar pela folha, enquanto a voz segue com dificuldade as palavras. “É preciso prestar atenção, porque muito facilmente não partimos da nossa experiência verdadeira...”. A gente olha, escuta, e se emociona. É o texto dos Exercícios da Fraternidade. Nós conhecemos essas palavras em Rímini, meses atrás. Já lemos e relemos sobre o assunto. Mas não esperava encontrá-las aqui, nesta salinha despojada, lida por doze mães em círculo e tendo ao fundo o barulho alegre das crianças entrando pela fresta da janela. A creche fica ali ao lado, junto ao campanário de São Charbel. Fora, os telhados e o verde de Petrópolis, cidade situada numa colina, que não parece ser o Brasil. A praia de Copacabana está a apenas noventa minutos de carro. Fizemos o caminho ontem à noite, deixando para trás rostos amigos – Bracco, Marcos, Cleuza, Julian de la Morena, Otoney e os demais responsáveis por CL reunidos no Rio de Janeiro para uma assembleia com a comunidade de lá. Viemos para ver o que esse círculo de amizade está gerando por aqui, como cresce e como está mudando o rosto do Movimento em toda a América do Sul. Mas não esperávamos tantas boas surpresas já na primeira etapa.
Mas aconteceu. Tudo por causa dessas mães que trouxeram seus filhos para a creche, às sete da manhã, e agora fazem a Escola de Comunidade. Ali estão Silvia com sua alegria, Tatiane e Raquel com seus rostos felizes mesmo enfrentando situações azedas (álcool, brigas familiares, pobreza...). E Carminha, a diretora da escola, que foi quem as convidou, e Inês, que toda quarta-feira vem aqui somente para se encontrar com elas. E a gente começa a entender aquela frase dita por Julián de la Morena no dia anterior no “Centro”, um almoço mensal entre os responsáveis daqui que impressiona já pelo clima (nada de discursos organizativos, mais que uma reunião dos “chefes”, uma fraternidade): “Cristo está nos conduzindo por um território novo e desconhecido”.
Vamos ouvir essa frase com frequência, nestes dias. Ou ela virá espontaneamente à nossa mente. Ouvimos a história de Carminha. Aprendeu a fé desde pequenina, com os vizinhos de sua casa, “com quem comecei a ir à missa todas as manhãs”; depois, o casamento, a doença do marido. O trabalho na paróquia crescia, “porque eu via que as necessidades aumentavam”. Acabou por assumir a creche, há 24 anos.
Mais tarde, Carminha encontrou um apoio sólido, quando, em julho de 2004, chegou à Diocese o novo bispo Dom Filippo Santoro, que era o responsável por CL no Brasil. Foi aí que a Escola de Comunidade entrou em sua vida, e a transformou. Ela propôs a iniciativa para as mães. E isso mudou a vida delas também. A de Tatiane, por exemplo. “Eu bebia. Mas parei. E quando me levanto de manhã, sinto que é tudo novo: não sou eu que escrevo o meu livro, é Deus”. A de Aldecir, que é evangélica: “Estou aqui porque mesmo com 50 anos é possível a gente aprender”. De Cláudia, que antes sofria de depressão (“eu ria por fora, mas chorava por dentro: queria amar, mas não conseguia”) e agora diz sorrindo que está “triste, mas de uma outra tristeza”. Ou de Raquel, que derrama lágrimas enquanto relata o seu drama: cresceu numa família na qual o pai batia na mãe e nos filhos, “e eu pedia a Deus que me levasse, porque não aguentava mais aquela vida”.
São as mesmas mães que, terminada a Escola, se colocam ao trabalho no andar de cima, numa cooperativa de costura, outro fruto dessa amizade. Que ainda em Petrópolis, dez meses atrás, viveu de perto o drama da inundação, novecentas vítimas e um vale inteiro destruído por um riozinho; vê-lo agora, enquanto Inês nos acompanha na visita à escola onde trabalhava, ele parece apenas um riacho.
Carnaval da limpeza. O pároco dali é o padre Rogério, 34 anos. Num dia, viu-se numa encruzilhada, entre drama e certeza. “Eu via o barro, os mortos, toda aquela gente que me pedia ajuda. E em meio àquele desespero, me descobri mais seguro de que Cristo é tudo. E eu, ao lado deles, era essa presença, aquela Presença. Vi que a fé não era um discurso, porque me permitia estar ali sem medo”. A ajuda veio logo. Os amigos do Movimento que vinham do Rio, de São Paulo, de Niterói para dar uma mão. Mas o que mais impressionou acabou acontecendo dois meses depois, em março, enquanto o país já havia esquecido (ou quase) o drama: setenta universitários, em vez de curtir o Carnaval, aceitaram a proposta de passar uma semana no Vale do Cuiabá para fazer a limpeza da igreja e das casas. “Uma coisa incrível. Eu sou do Movimento há quatro anos e sempre tive o problema de como propor isso aos paroquianos. Depois daqueles dias, um monte de jovens daqui veio me procurar. Teve início, então, uma Escola de Comunidade”.
Dá tempo de ir saudar Dom Filippo, que a partir de janeiro regressa à Italia para assumir a Arquidiocese de Taranto. Depois, voltamos de carro ao Rio. Junto com Inês, que nos explica por que, para ela, que é memor Domini, a Escola nos últimos tempos se tornou decisiva: “Entendi que a vida é feita para a gente amar e servir. O problema não é mais aquilo que a gente faz, mas como Cristo responde ao que acontece”.
No dia seguinte, viajamos para Aracaju, no Nordeste do país. Cidade pequena, pelos padrões brasileiros: meio milhão de habitantes. É uma comunidade que nasceu no dia em que Camilo – que já havia reunido um grupinho de amigos com os quais se encontrava para conversar sobre a atualidade da fé (“chamava-se Ecclesia Mater: muita tradição, missas em latim, muitas ideias mas pouca vida”) –, durante o mestrado, encontrou numa livraria o livro É possível viver assim?, de Dom Giussani. Ficou impressionado com o método. “Uma amizade, não uma doutrina. Mas com tudo dentro”. Conheceu Otoney, responsável de Salvador (está a 350 km), e outras pessoas. Falou com Lucas, seu amigo, estudante de História, que também ficou impressionado. “Não havia dicotomia neles. Encontravam Cristo em tudo, e não de maneira instrumental. Estava ali tudo o que eu procurava”. E, pouco depois, desse grupo apareceu o Movimento. Que é um espetáculo de vida, “simples e clara”, como conta Alda, uma das jovens encontradas por Lucas e Camilo na universidade: “Lucas me disse simplesmente: você quer conhecer a verdade ou não? Eu fui. E tudo se tornou claro”. Ou Gualter e Sílvia, que chegaram de São Paulo um pouco temerosos por deixar os amigos, “mas encontramos um tesouro”. Ou ainda Laurinda, a mãe de Lucas: “Através de vocês eu encontrei um Cristo vivo. Não feito de documentos, mas um Deus que ama”. Assim como é um espetáculo de vigor a Escola de Comunidade na universidade: uns quinze jovens que estão descobrindo também o gosto de enfrentar a batalha dentro da sala de aula, diante dos professores.
Revolução dos tijolos. Padre Genário, ao invés, os encontrou da maneira mais imprevisível: via computador. “Eu estudava em Roma e chegou para mim um e-mail de minha sobrinha, Maria Gabriela: ‘O que você sabe a respeito desse pessoal? Eu os encontrei e fiquei interessada’. Eu não conhecia CL, mas pensei: pelo menos é algo dentro da Igreja. E respondi: ‘Vá em frente’. E aquilo despertou a minha curiosidade”. Ao ponto de que, quando voltou para casa e ficou sabendo de Camilo e dos seus amigos, resolveu procurá-los. E ficou com eles. “Eu via que eram jovens normais, mas que, juntos, tinham um modo de pensar diferente. E eu dizia para mim mesmo: mas como é possível que gente assim, num ambiente hostil a Deus, siga Cristo tão de perto?”. Resultado: ele, que poderia dizer àqueles jovens “eu sei tudo, vou explicar-lhes, sou padre recém-formado...”, acaba admitindo que “viver tão intensamente a realidade dá um sentido à minha vocação”.
“Vocês poderiam pensar que depende das circunstâncias”, diz Camilo enquanto nos acompanha até o aeroporto. “Nascemos há pouco tempo, numa pequena cidade, muitos são jovens. Mas não é isso: é que Cristo vai chamando um a um através da nossa amizade”.
Outro voo, outra etapa. Salvador, uma cidade dividida em dois mundos que jamais se encontram, como tantas regiões do Brasil. No sul, os ricos, que à noite lotam os restaurantes da marina. Ao norte, a Ribeira, um milhão de almas espalhadas numa faixa de terra ao longo do oceano e que no decorrer do tempo ficou lotada de barracos, inclusive dentro da água. Um pedaço daquela área se chama Novos Alagados. Falamos dela com frequência, ao relatar os projetos da Fundação Avsi, que Lareyne resume pra nós diante de um mapa, num pré-fabricado bem organizado e cheio de instrumentos de trabalho: os doze anos de atividade, o Banco Mundial, as 1.500 palafitas transformadas em casas num pedaço do bairro, as obras de urbanização, as escolas. A nova vida de milhares de pessoas, e a preocupação “quanto ao que acontecerá agora que o Brasil não é mais considerado um país em via de desenvolvimento e os financiamentos pararam”. Depois se abre uma porta feita de placas de metal. E escancara-se um mundo. A favela e os trabalhos que estão em curso para levantá-la. Os barracos de quatro metros por quatro, com seis pessoas dentro, e os operários que estão construindo a estrada ao longo do mar, para separá-lo das casas e evitar que chegue mais gente e recomece a construção de palafitas.
Quando terminar a reconstrução, será outra vida. Talvez semelhante àquela que se respira poucos quilômetros adiante, onde atravessamos um portão e entramos num outro universo. Ordem, limpeza. É a creche “Dom Giussani”, também levantada com a ajuda da Avsi. “Não trabalhamos por um objetivo qualquer”, diz Layrene. “Buscamos a beleza. Porque dá dignidade ao lugar e às pessoas. Uma creche que traz o nome de Dom Giussani não pode ser uma obra qualquer”. E não é.
Aquele Pai. Basta um giro pelas salas e o refeitório, ou cruzar o olhar com as educadoras e a alegria das crianças, para entender o lema da escola: “Para mudar o coração do homem”. Vale a pena trabalhar só por isso. E vê-lo acontecer nas vidas do povo simples daqui, que mora no bairro novo e vem trabalhar na creche. Como Zelda, a cozinheira: “Em comparação com a palafita, isto aqui é um sonho. Eu me imaginava arrumando a cama numa casa verdadeira, mas a realidade aqui é ainda mais bonita”.
A diretora se chama Dóris. Fala da importância de um lugar assim para todo o bairro: as reuniões com as famílias, os cursos, a busca de professoras entre as pessoas do lugar. A vida. “Dias atrás, um homem estava sentado no corredor. Chorava. Perguntei o que ele tinha e me responderam que ele era o pai de uma criança da creche; a criança achava que o pai estava viajando e por isso jamais o tinha visto. Na verdade, estava preso, e acabara de ser libertado. Vocês precisavam ver como aquele homem abraçou o seu filho. Como se estivesse recuperando todo o tempo perdido, com aquele abraço. Depois me diz: ‘Hoje vou levar ele comigo para casa’. Eu pensei: bem, é justo que estejam juntos alguns dias. E ele: ‘Não, amanhã cedo eu trago ele de volta; vi como isto aqui é importante’. Eu não acreditei, mas no dia seguinte eles estavam aqui”.
A capoeira e o paraíso. Há outra escola desse tipo a quinze minutos daqui. Também ela linda. Chama-se João Paulo II. “Quando a abriram, o povo vinha trazer seus filhos e não queria mais ir embora. Eles nos diziam: aqui dentro é o paraíso; fora, o inferno”, conta Joseilma, a diretora. Ela também queria entrar nesse paraíso. “Fiz de tudo para vir trabalhar aqui. Quando me assumiram, graças a Deus, entendi que a felicidade não era só trabalhar aqui; havia algo mais”. Ela fala de si, dos casamentos fracassados, da difícil criação dos filhos. “Eu só queria educá-los e ser feliz. Depois descobri o Movimento”. E a Fraternidade São José. Metade das crianças, enquanto isso, brinca no pátio. Os outros fazem aula de capoeira, “que aqui é mais do que uma tradição, é a alma da Bahia”, e essa alma precisa ser revelada para as crianças logo cedo.
A raiz deste lugar, porém, está um pouco mais adiante. É a paróquia de Jesus Cristo Ressuscitado. Igreja nova, construída com o financiamento do italiano Angelo Abbondio e sua família. É dirigida por dois sacerdotes italianos, Ignazio Lastrico, do Pime, e Emilio Bellani, que chegou da Itália no ano passado. Nestes dias, só ele está aqui; Ignazio viajou para um encontro. Mas bastou pouco tempo de caminhada com padre Emilio pelo bairro para compreendermos o que ele havia dito antes de começarmos: “Eu cheguei com a ideia de que o povo esperava o missionário como um salvador da pátria. Na verdade, temos que ir ao encontro das pessoas, uma a uma”. E ele o faz. Bate na porta de cada casa, entra, saúda os moradores. Convida as crianças para o passeio da catequese. Ou não entra, fica na soleira, pois às vezes o protestantismo, as seitas ou os “chefes” da área preferem que ele fique longe. E você? “Passo adiante; mas logo em seguida retorno”. É assim que ele e Ignazio se tornaram amigos de muitas pessoas, aqui. Sobretudo das famílias e dos jovens.
É um espetáculo observar aqueles rapazes que formam o grupo de Jovens Trabalhadores de CL. Eles estão tomando o ônibus para ir à caritativa junto aos velhinhos de uma casa de repouso, perto do centro da cidade. Ali fazem cantos e jogam bingo, e estes dois mundos nunca se encontrariam se Deus não fosse caridade. E são sempre eles que fazem a Coleta de Alimentos para pobres mais pobres do que eles. Outra novidade é o Centro Educativo, que está reabrindo as portas. “Uma aventura nova também para mim”, explica a coordenadora Paola Cigarini, que se transferiu para estas bandas há bastante tempo, mas pela primeira vez assume a gestão dos professores e do reforço escolar. Os jovens, ao invés, ela conhece bem. Muitos deles, um pouco maiores, ela os convidou um a um para a Escola de Comunidade. Voltamos para casa carregando a imagem daqueles jovens, e entendemos a resposta de Paola quando lhe perguntamos por que está aqui com eles? “Porque me ajuda”.
Na verdade, há uma outra pergunta, poderosa: mas de onde brota essa retomada de vida tão intensa? Qual é a origem, a fonte? A amizade que se formou entre os responsáveis, certamente. Os Zerbini, Bracco, Julián de la Morena... E padre Aldo Trento, que está no Paraguai, mas se tornou mais que um irmão para eles. Mas como foi possível essa expansão? De novo, encontramos a resposta em torno de uma mesa, na Casa das Memores Domini, em Salvador: umas vinte pessoas reunidas para a reunião da diaconia local. Uma avalanche de intervenções, todas falando de uma mudança.
Onde o “já visto” não existe. Vejam Silvana: vinte anos de Movimento e de amizade com Otoney, e nos últimos tempos sentia um desconforto. “Ouvir dizer que é preciso olhar Cristo nos acontecimentos me parecia abstrato. Eu dizia para mim mesma frente a qualquer coisa: é Ele que se apresenta, e eu aceito. Mas dentro de mim não era suficiente. Comecei a ficar insatisfeita. Por exemplo, no relacionamento com minha filha, que adotamos. Às vezes é uma luta. Eu me dizia: mas se é Cristo que me doou essa filha, deveria mudar tudo; no entanto, havia um abismo entre mim e esse fato. Descobri isso através do trabalho na Escola de Comunidade. Comecei a me questionar: mas quem ela é, de fato? E eu a quero? Foi um turbilhão. Não resolve os problemas, mas agora eu a olho de um outro modo”. Como para Patrícia, que fala da Escola como “um divisor de águas: vivendo, vejo que me convém”. Ou Luís, protestante, que conheceu Otoney “e agora me parece que sempre estive aqui: o ponto chave da vida é estar próximo de Cristo. E o Movimento me permite isso”. Quando beatificaram Irmã Dulce, ele também estava lá na praça.
“É gente em trabalho”, diz Otoney quando nos saúda. No fundo, é o que vimos por toda parte, e é o pensamento que nos ocorre ao retornarmos a São Paulo, o coração dessa agitação toda. É como dizia Bracco, dias atrás: “O meu impacto com Cristo não é algo externo: é o florescimento da minha própria humanidade. É esse o primeiro sinal de Cristo presente”. E quem sabe como floresce nos lugares que visitamos rapidamente, como a escola do Morro dos Cabritos, uma favela do Rio; ou em lugares que nem pudemos ver: Belo Horizonte, Manaus, Brasília. Ou em realidades que estão fazendo renascer a Companhia das Obras.
“Mas, quem sabe o que vai acontecer agora”, é o pensamento que nos ocorre ao entrar no salão da Associação Educar para a Vida, porque hoje é o sábado das assembleias grandes, uma depois da outra, com dois mil jovens de cada vez, com Marcos e Cleuza no palco, incansáveis, acolhendo-os, discutindo, propondo. Já vimos e ouvimos esses dois várias vezes. Mas vê-los agora em ação é outra coisa. É outra coisa ouvir de Cleuza palavras que já nos haviam impressionado, mas que agora são ainda mais profundas: “Há um antes e um depois do Movimento. Antes, eu dava a vida pela Associação, mas a minha vida não tinha valor. Hoje faço a mesma coisa, mas a vida vale. Isso eu descobri aqui. Cristo introduziu um novo modo da gente ser feliz. O que acontece não é mais uma preocupação, mas uma provocação. Estou triste, mas com uma tristeza tranquila”. Por que, Cleuza? “Porque tudo é positivo”.
(o primeiro artigo, sobre a Argentina, saiu em Passos nov/2011)
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