Publicamos a homilia do Cardeal ANGELO SCOLA na missa, realizada em Milão no dia 11 de fevereiro, na passagem dos 9 anos de falecimento de Dom Luigi Giussani, fundador do Movimento Comunhão e Libertação
1. Gratuitamente saciados e alimentados
“Vinde à nascente das águas... vinde comprar sem dinheiro” (Leitura, Is 55, 1-2). O profeta, com imagens límpidas e incisivas, descreve o ardente desejo de realização do coração do homem. Um desejo que ninguém é capaz de satisfazer com as próprias forças. Tanto é verdade que o profeta exorta com um convite: “Vinde à nascente das águas, vinde comprar sem dinheiro”. Ninguém pode comprar a própria salvação, quer dizer, solucionar o enigma que cada um de nós é: ontem não existia, hoje existo, amanhã não existirei. De onde vem uma existência assim, enigmática? Toda tentativa de comprar a própria salvação é um desperdício. Somente Deus sacia, somente Deus pode saciar gratuitamente o coração do homem.
2. Um maravilhamento grato
É isso que acontece precisamente naquele dia em que Maria, depois do anúncio do Anjo, comovida e movida por operosa gratuidade, corre até à casa de Isabel levando em seu ventre Jesus, aurora da salvação: “De onde me vem esta honra? Como se dissesse: Que grande favor o que está me acontecendo, de vir a mim a mãe do meu Senhor! Não consigo compreender. Por qual virtude, por quais boas obras, por quais méritos?” (S. Ambrosio). Nenhuma virtude, nenhuma boa obra, nenhum mérito diante da criança que Maria carrega no ventre. Pedido, repetido pedido.
Pois bem, um maravilhamento análogo a este que invadiu Isabel pela dádiva da visita de Maria, que cumpria a história de salvação do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, tomou o coração de muitos quando encontraram Monsenhor Luigi Giussani. O dom, o carisma, dado a este grande sacerdote educador tornou a graça da fé humanamente persuasiva e, por isso, incisiva para muitos.
Então, o tempo da nossa vida seria desperdiçado se a maravilha do encontro não se tornasse pedido incessante. Súplica tenaz para reconhecer Cristo presente e vivo na Sua Igreja e presente e vivo para o bem do mundo, que é o único objetivo da existência da Igreja. Tudo, exatamente tudo o que é humano interessa ao cristão. A doce fé mariana de Dom Giussani foi a expressão privilegiada e cotidianamente perseguida dessa abertura total: “É inconcebível olhar para Nossa Senhora se não como [figura plena de] oração em ato. De fato, a oração em ato é a consciência de si, a consciência do relacionamento de si com o próprio destino e, por isso, a postura mariana é a única digna da vida do homem, onde a vida do homem se realiza segundo toda a sua estatura”, escreve ele. A incessante peregrinação de oração ao túmulo de Dom Giussani, bem como as numerosas mensagens escritas lá depositadas, são sinal benéfico deste desejo de plenitude.
3. Responsáveis pelo dom recebido
Do carisma de Dom Giussani – vivido na Igreja – nasce um amor grato e responsável a Cristo e à Igreja. Por isso, o Servo de Deus, no seu corajoso esforço inovador, pelo qual muitas vezes pagou pessoalmente, sempre perseguiu de todos os modos a unidade fundada sobre a rocha do ministério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele. Rocha que, sozinha, garante a abertura total do coração dos fiéis. E a unidade alimenta-se cotidianamente no seguimento daqueles que foram chamados a guiar a Fraternidade de Comunhão e Libertação e, como tais, foram reconhecidos pela Igreja, nossa mãe.
Celebrar em todos os continentes a Eucaristia por ocasião do nono aniversário de morte do fundador, 32º aniversário do reconhecimento pontifício da Fraternidade de CL e 60 anos do nascimento do Movimento, significa louvar a Deus pela graça da unidade, nota essencial de toda experiência eclesial autêntica. De fato, a unidade assegura o desenvolvimento da liberdade do eu na comunidade. A liberdade plena não acontece se não se expressa no pertencer sensível a uma comunidade eclesial guiada, mas ao mesmo tempo não há verdadeira comunidade que não desenvolva plenamente a liberdade de cada um.
O próprio Cristo, que nos diz “vinde”, estabelece com cada um de nós um laço que, através da comunhão, gera permanentemente a comunidade, que é a condição histórica escolhida por Ele: “Fazei isto em memória de Mim”, e por Ele pensada para doar-se aos homens. Em Cristo Jesus eucaristicamente, eclesiasticamente, Deus quis ter necessidade dos homens. A Eucaristia que estamos celebrando ajuda-nos a compreender melhor este mistério: Cristo está realmente presente; como temos dificuldade para perceber este dado em toda a sua intensidade afetiva e comovente! Está realmente presente, é Ele que nos convoca esta noite, é Ele que se doa a nós no sacrifício eucarístico e, através dele, nos torna uma só coisa, um só Corpo, de modo tal que não é mais possível para os batizados viver separados deste novo Corpo que, na ótica paulina, é justamente compreendido como Corpo cósmico que envolve cada ser. Então, recomendo de coração que não deixem esmorecer o gesto, vivo desde o princípio do Movimento, de participar da Santa Missa com consciência, se possível, também nos dias da semana, com um pouco de sacrifício.
A responsabilidade pelo dom recebido exprime-se no culto cristão. Mas, como Monsenhor Giussani sempre lembrou, seguindo os ensinamentos de São Paulo, o culto cristão coincide com a oferta total da própria vida para que se manifeste a glória da humanidade de Cristo no mundo; em si mesma a vida é vocação: chamado e resposta daquele que o acolhe e se doa. O Papa Francisco fala de uma Igreja “em saída” (Evangelii gaudium 24): o Semeador percorre incansavelmente todo o campo do mundo até os lugares de suas fragilidades e de suas baixezas, de suas fraquezas e de suas contradições, e até o lugar das blasfêmias contra Ele. O Semeador nunca cessa de lançar a boa semente. A missão não é uma questão de estratégias ou de particulares atividades a serem acrescentadas ao tecido da nossa vida cotidiana. A missão é, sobretudo, uma questão de responsável consciência, alimentada cotidianamente por uma experiência de fraternidade, que repropõe a cada indivíduo, todos os dias, a pergunta “o que sou eu?” e, sobretudo, “por Quem eu ajo?”.
4. Realistas ou narcisistas
O Evangelho de hoje propõe com clareza o caminho da resposta a essas perguntas constitutivas como imprescindível recurso para viver a unidade e a missão. É a virtude proclamada pelo Magnificat: “Olhou para a humildade de sua serva”. Assim Maria fala de si mesma indicando a cada um de nós o caminho. Humildade vem do latim húmus. Fala, portanto, de estar inseridos na terra, bem agarrados à realidade. O Magnificat estabelece uma opção radical entre humilde e soberbo. “Desconcertou o coração dos soberbos” (esta imagem potentíssima descreve muito bem a grande tentação do homem pós-moderno, embora se possa entender uma fraqueza tão extrema). Para os filhos da San Carlo, assim como para os ambrosianos, a humilitas não pode deixar de atravessar cada fibra do ser e é conquistada através de um pedido cotidiano e incessante.
A oposição entre humildade e soberba, antes que oposição entre virtude e vício é, observando bem, oposição entre razoabilidade e não razoabilidade. Para terminar, o soberbo é um narcisista que prolonga por toda a vida a inevitável experiência da primeiríssima infância: ver no espelho a si como sendo o outro. A maturidade requer, ao contrário, deixar o outro ser o outro. Este é o conteúdo do amor pleno. Isso acontece na própria Vida da Trindade e, portanto, pode acontecer pela graça e pela liberdade na família, na escola, na comunidade cristã, na vida civil em todas as suas expressões. A soberba nos torna impermeáveis ao outro, acaba por gerar uma dura solidão, mesmo quando se está junto a todos. E, então, a vida pesa, como Dante intuiu genialmente, condenando os soberbos a caminharem esmagados pelo peso de enormes rochas nos ombros.
A humildade, ao contrário, gera fiéis alegres e construtivos e, como dizia Péguy, os torna “os mais civis dos homens”. Foi isso que o servo de Deus, Monsenhor Luigi Giussani, ensinou até seu último respiro. Que a potente intercessão de Maria Santíssima, na terna festa de hoje, conceda à Igreja e ao mundo, nessa época tão tormentosa, mulheres e homens de tal feitio. Amém.
APROFUNDAMENTOS
> A saudação de padre Carrón ao Cardeal Scola e as palavras do Cardeal no fim da celebração
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón