A primeira premissa é que quem escreve este texto não conhece as ambições de um crítico cinematográfico, embora a minha noitada ideal seja sempre apreciar alguma história verdadeira e convincente narrada nas páginas de um livro ou na tela de um filme. A segunda é que dentre tantas películas vistas, a minha natural inclinação – não obstante o gosto pelos preferidos Olmi, Lynch, Branagh, Kurosawa – tende para as boas e velhas aventuras “à laocidental” (espionagem, policiais, históricos), e que os filmes cerebrais e os chamados “intelectuais” assumem, aos meus olhos, a mesma atratividade de um par de horas de canoagem forçada, e sob chuva. Não, obrigado!
Não sabia direito o que esperar do filme A árvore da vida, de Terrence Malick; pela leitura de certas resenhas, teria razões para fugir dele, mas as opiniões e as reações tão díspares (obra-prima, tédio mortal, filme com perguntas interessantes e respostas parciais, filme panteísta, filme protestante...) de pessoas que me falaram dele só fizeram crescer em mim uma forte e benevolente curiosidade. Claro, outras obras suas, e em especial Além da Linha Vermelha e O Novo Mundo, haviam me surpreendido, impressionado e questionado, e o novo trailer fazia prever algo de muito interessante, mas francamente nenhum desses dados prévios se sustentariam frente ao que eu iria assistir.
O primeiro pensamento, no final da projeção, levantando-me em silêncio numa sala também silenciosa, foi simplesmente dizer-me: “Nem acredito que era possível fazer filmes assim”; e ao mesmo tempo retomar as imagens, os detalhes, reconhecendo ali muito do que eu havia vivido e conhecido: creio que seja esse um dos traços distintivos e basilares de todas as obras de arte: são tanto novas e inesperadas – um mundo todo novo, uma nova linguagem, às vezes – quanto capazes de lançar luz sobre o que já estava presente e verdadeiro e que de repente se reacende, é redescoberto: é muito verdade que a grande arte, como sublinhava Flannery O´Connor, quanto mais “local” for, expressa num determinado contexto, numa história, numa linguagem, tal como é essa família do Texas, tanto mais resulta autenticamente universal, capaz de evocar aquela série de infinitas e em geral indizíveis nuances que constroem a nossa caminhada de homens sobre a Terra, os jogos de crianças com a luz no sótão, a descoberta do mundo, as corridas dos jovens pelos campos ou os mergulhos nos rios, quase que dando vazão à energia que queima dentro e nos faz crescer; e também o medo, e a dor, a contradição, a descoberta do mal dentro e fora de si, o primeiro amor e a sexualidade (com o realismo e a atenção dos primeiros livros das Confissões de Santo Agostinho e a doçura evocativa de Steinbeck ou Wendell Berry), a relação com a família no seio da qual viemos ao mundo, a sedução da violência. Como Malick consegue realizar tudo isso numa única sinfonia de imagens, música e palavras, como ele consegue apresentar todo um mundo interior com a simples história de um pai que percorre um intrincado mundo de píer de aço com a segura marcha de um soldado ou um rei conquistador, para depois voltar para casa curvo e cansado, não pode ser adequadamente descrito. Simplesmente visto.
Tudo isso poderia constituir apenas uma série de âncoras magníficas e decompostas, ou talvez um grande afresco de humanidade, mas Malick os dispõe numa história que os conta captando aí um secreto e inesgotável diálogo com Quem suscita a dança das galáxias e dos mares, Quem toca o coração com a beleza, a majestosidade e a delicadeza, e no entanto parece em geral excluir justamente o que temos de mais caro, justo como no livro de Jó, que abre o filme. E para quem escreve, as cenas mais belas são justamente as da vida cotidiana de Sean Penn, que como o Eliot de Os homens vazios ou o Dante no meio de uma vida afirmada, mas da qual não encontra mais o sentido, prisioneiro de um mundo gélido que nada mais é que a gigantesca projeção da sua própria alma confusa, para e repercorre a própria história questionado e guiado até “bater à Tua porta” pela fé de sua mãe e pela simples presença de seu irmão, protagonista de um gesto de perdão que, tal como em O Novo Mundo, centralizado porém na natureza do amor e da fidelidade entre um homem e uma mulher, é o ponto para o qual converge toda a narrativa. É ele que traz de volta o que parecia perdido para sempre e a enfocar as relações e as pessoas no único horizonte que conta de fato, redescobrindo quem já estava ao nosso lado, como um pai cheio de defeitos, secretas incertezas mas também de ternura e sincero desejo de amor. Um perdão que mendigado e distribuído permite voltar a ver todo um mundo novo, ouvindo de novo Aquela Voz que o esquecimento, os limites e o mal pareciam ter afastado para longe.
O que também fica claro na praia da eternidade não é algo que se espera fora e após o tempo, mas a profundidade do próprio tempo, tanto que, justo como Dante e Eliot, é possível cumprir essa “outra viagem” em qualquer momento e lugar, e como Sean Penn voltar a sorrir em meio aos arranha-céus e às estradas, num mundo que volta a se manifestar como ponte que sempre foi, porque, como recentemente lembrou Bento XVI, “o homem carrega em si uma sede de infinito, uma saudade da eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impulsionam para o Absoluto; o homem traz dentro de si o desejo de Deus. E o homem sabe, de algum modo, que pode se dirigir a Deus, sabe que pode rezar a Ele”. Assistir esta obra quer dizer expor-se ao trabalho que ela é capaz de exercer sobre nós; e a minha imaginação e os meus pensamentos continuam a retornar às cenas do filme de Malick, alcançando aí nada menos que isso. A esse inesgotável “de algum modo” do nosso diálogo com Deus, da nossa necessidade de perdão, verdade e eternidade, Malick dá expressão poética com uma força e uma lírica beleza que são um conforto e uma surpresa. A meu juízo, um grande passo artístico do nosso tempo. E não só.
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