Premissa: não sou crítica de cinema nem uma apaixonada por musicais. Estudo letras. E li apenas algumas páginas de Os Miseráveis, de Victor Hugo. Porém, fui assistir o filme e, saindo do cinema, não pude deixar de pensar que este realmente é um filme que merece ser comentado. Estou falando de Os Miseráveis, de Tom Hooper (diretor que venceu o Oscar pelo filme O Discurso do Rei, em 2011), em cartaz desde o início de fevereiro. Assim, longe de querer dar um parecer de “especialista”, tentarei colocar de forma clara as coisas que me tocaram.
O filme foi baseado no musical há mais tempo em cartaz no West End londrino: Os Miseráveis, de Alain Boublil e Claude Michel Schönberg. Escrito em 1980, até agora já recebeu um público de mais de 60 milhões de pessoas.
O filme de Hooper lembra, narrativamente, a ópera, da qual reproduz o “recitativo”, ou seja, o “recitar cantando”. Todos os atores cantaram ao vivo durante as filmagens e não em cima de um play back, como normalmente se usa – gravando depois as partes cantadas. O ganho com essa escolha é evidente. Cantar durante a gravação da cena permite aos atores uma maior identificação e liberdade expressiva, como declarou Hugh Jackman, ator protagonista, que faz o papel de Jean Valjean: “A ideia de cantar ao vivo pode assustar. Porém, dá aos atores uma grande liberdade. Uma história como Os Miseráveis deve ser verossímil e espontânea”. Fiquei impressionada em ver como a música e o talento de certos atores (Anne Hathaway é candidata ao Oscar de melhor atriz coadjuvante) está tão à altura dessa história épica de um homem, feita de miséria, piedade e redenção.
A figura central é Jean Valjean, detento número 24601 que, depois de 19 anos de prisão é resgatado pela prataria que rouba de monsenhor Bienvenu, em 1815. As palavras do bispo, no auge do filme, falam do sangue dos mártires e de salvação, reverberando as palavras de Victor Hugo: “Jean Valjean , irmão, você não pertence mais ao mal, mas ao bem; eu resgato a sua alma; subtraio-a dos pensamentos negros e do espírito de perdição e a consagro a Deus”. Tendo sido perdoado, o protagonista começa a se lembrar da sua humanidade, há muito tempo esquecida e violentada, e despertada pelo bispo. Mas não é de modo algum uma questão tranquila. Na cena de sua luta interior diante o Santíssimo, quando a tentação ainda quer dominá-lo: “Deram-me um número e mataram Jean Valjean” , nasce um pensamento estranho: “Por que permiti que esse homem tocasse a minha alma e me ensinasse o amor? (...) Minha vida reclama pelo Deus supremo. Isso é possível?” . E não é suficiente dizer sim apenas uma vez. A indecisão, da qual fala Hugo, no filme se direciona cada vez mais para o bem através de monólogos ou retomadas em que o ex-prisioneiro dialoga entre si e o ambiente em volta dele. A escolha pelo bem nunca é mecânica. Tanto que uma das canções mais belas se chama ”Who I am?” . Há sempre um momento em que Valjean precisa decidir lembrar quem é realmente. “A única coisa que o seu comportamento e a sua fisionomia revelavam claramente era uma estranha indecisão, quase como se ele hesitasse entre os dois abismos, da perdição e da salvação. Parecia pronto a esmagar aquele crânio e a beijar aquela mão”.
É um filme sobre um miserável, certo. Mas purificado pelo Amor que “me lembra que tenho uma alma” . Todo o resto vem como consequência e é fruto disso. Bom ou mal. Porque, no meio, está sempre a liberdade. Bem é o amor de Fantine, ou aquele que sente por Cosette, adotada por Jean, e Marius. Amor que chega até o sacrifico extremo de Eponine, apesar dos chacais que a criaram. Mal é Javert (Russel Crowe), o capitão do exército francês que tem como objetivo de vida caçar o prisioneiro 24601. Mas ele também, quando caiu a máscara de sua falsa justiça e da sua moral puritana e contraditória, torna-se apenas outro Jean Valjean, prisioneiro, por sua vez, de um sistema que o levará à morte. O que o difere do verdadeiro Vanjean? O declinar-se misterioso da liberdade. Interessante que a palavra piedade seja a que mais recorre entre os diálogos cantados pelos dois. “No fim, cuspirei minha piedade na sua cara” .
Eu poderia falar muito mais, mas é melhor ver o filme do que falar sobre ele. Apenas uma última observação, em relação à segunda parte do filme, sobre a Insurreição Republicana de 1832. A história conta que não deu certo. O filme também mostra isso, e foca tudo sobre o forte idealismo de um grupo de jovens que têm um desejo de liberdade apaixonado e justo, e no entanto, irreal, e pagarão duramente. Mas aqui também, a grande história de Valjean, que é uma história de providência, abraça tudo, realargando o horizonte inesperadamente: uma surpresa genial do final.
Em suma, é preciso ver o filme. Ainda há tempo para fazê-lo. Vale a pena também para estar diante de uma obra que, independente das várias indicações ao Oscar, tem a coragem de usar certas palavras: “Receba o meu amor, porque o amor é eterno. E lembre-se da verdade que certa vez foi dita. Amar o outro é ver o rosto de Deus”.
Os Miseráveis
de Tom Hooper
com Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried
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