O filme de Martin Scorsese, Silêncio, relata a perseguição aos cristãos no Japão feudal do século XVII. A película é inspirada no homônimo romance do escritor católico japonês Shusaku Endo. O livro (publicado em 1956) se tornou uma obsessão para Scorsese durante anos. “A história tocava cordas em mim tão profundas que eu nem sabia se poderia fazer uma tentativa de enfrentá-la”. A gestação do filme durou dezenove anos. O diretor americano disse que passou a “viver com” aquela história: a viver a vida, “a minha vida, em torno das ideias que estavam no livro”. A fé, antes de tudo, a Encarnação, a graça e como a pessoa a recebe. São muitas as questões que vibram na narrativa de Endo, são poderosas, entrelaçadas, e em geral deixadas em aberto, mas que se congregam em uma: o que significa viver e comunicar o Evangelho.
O protagonista é o padre Sebastião Rodrigues, que em 1634, junto com outros dois jesuítas portugueses, embarca para o Japão seguindo as pegadas do padre Cristóvão Ferreira, superior provincial da Companhia de Jesus: noticiou-se que ele fora capturado em Nagasaki. E que havia abjurado. Era impossível, para eles, que o amado mestre tivesse renegado a fé. Incrédulos, partiram. E eles próprios foram ao encontro da perseguição.
“Esperamos que o filme ajude a conhecer melhor o cristianismo e a sua história”, diz a Passos o padre Renzo De Luca, jesuíta argentino mandado ao Japão por Jorge Bergoglio em 1985, que hoje dirige o Museu dos 26 mártires em Nagasaki, o mais importante museu cristão do país. A Igreja japonesa viveu uma aventura que ainda é pouco conhecida, com as suas repressões e a vida clandestina dos kakure kirishitan, os “cristãos ocultos”, que por dois séculos guardaram a fé no silêncio.
A comunidade cristã japonesa nasce com a primeira pregação de Francisco Xavier, que lá desembarcou em 1549. Trinta anos depois, os batizados eram 150 mil. Mas as suspeitas em relação aos católicos crescem, misturadas com os interesses comerciais, agravados pela hostilidade dos comerciantes protestantes, até que em 1612 a fé católica foi proibida por lei como doutrina perversa (jakyo). Os missionários são expulsos e começa a feroz perseguição à comunidade, já com trezentas mil pessoas.
O fumie. Hoje são muitos os que visitam o Museu para conhecer o que aconteceu: “Temos material que é único no mundo. Mesmo quem nunca vai à igreja vem aqui”, continua padre Renzo: “A quantidade de peregrinos mostra o quanto essa história, embora de sofrimento, é importante para todo o Japão”. Ainda mais hoje, quando “a vida da fé aqui está debilitada. Existe, mas é menor do que antes. Falta vitalidade. Estamos num país com completa liberdade religiosa: há universidades e escolas cristãs, não há nenhuma restrição. Mas há uma forte indiferença em relação à experiência religiosa”.
A despeito do título, o livro de Endo está cheio de vidas que “falam” de Deus. Até dos que O negam, dos que O traem, pede perdão e trai de novo, e novamente pede perdão. Inclusive do padre Ferreira, que optou pela abjuração (na realidade, voltou à fé e foi reintegrado na Companhia de Jesus). O “silêncio” nessa história tem muitas formas. Há aquele em que os jesuítas devem transcorrer as jornadas, ocultos nas montanhas, esperando a noite para celebrar a missa e os batismos. O silêncio dos rostos dos convertidos, que a clandestinidade transformou em máscaras, ou dos que suportam as torturas sem nenhum gemido: aqueles que não abjuram são pendurados de cabeça para baixo numa fossa, imersos na água fervente, crucificados em paus no mar, na superfície da água, até que as ondas, dia após dia, os reduzam a esqueletos. O vento que leva para longe o canto deles (“Estamos a caminho, estamos a caminho rumo ao templo do Paraíso”), o suplício que apaga a voz e deixa espaço para o silêncio do mar, no qual o padre Rodrigues sente o silêncio de Deus.
“Por que te calas?”, ele implora. Mas nem é essa a pergunta mais dramática, e sim aquela em que o protagonista chega, num vórtice de consciência, diante do rosto de Jesus: “o que quer dizer seguir-Te?”. É o rosto pelo qual o padre Rodrigues sente o amor maior, o tem sempre nos olhos, mas precisa decidir se o pisoteia ou não: os cristãos são submetidos à prática do fumie, devem profanar com os pés os ícones do Cristo e da Virgem Maria em sinal de apostasia. Se o jesuíta pisoteia aquele rosto, salva a vida dos outros convertidos, que estão para ser condenados. É essa a escolha a que eram constrangidos os missionários que, tendo chegado para dar a vida para aquela gente, se encontravam diante de camponeses e pescadores, mães, pobres homens que morriam por eles.
Samurai. “A primeira coisa que aprendemos da história dos nossos mártires”, continua padre Renzo, “é que a perseguição não destrói o cristianismo, mas o reforça”. Essa misteriosa fecundidade foi recentemente colocada diante de todos com o “samurai de Cristo”, o primeiro daimyo, senhor feudal, a se tornar beato por decisão do Papa Francisco. Takayama Ukon, que no Batismo se chamou Justo, morreu no exílio nas Filipinas por não ter querido abandonar a “religião do Ocidente”, que se tornou proibida. “É um fato grande para a nossa pequena Igreja”, diz o padre Mario Bianchin, que relata qual é hoje o desafio para um missionário no menos cristianizado dos cinco Continentes.
À exceção dos emigrados de países católicos, a comunidade católica japonesa não chega a meio milhão de pessoas, tal “como era nos anos 50-60”, explica padre Mario. Ele está no Japão há quase meio século. Para ele foi “um caminho espiritual”, diz. “A missão hoje, aqui, não é aventurosa, mas é uma aventura. Uma descoberta, um aprofundamento irrefreável, antes de tudo interior. E sou imensamente grato por isso”. Quando chegou tinha 31 anos, com o mesmo e simples desejo de quando era criança: “Eu conhecia Jesus, mas no mundo havia tantas crianças que não O conheciam ainda. Se alguém não for atrás delas... permanecerão infelizes”. E o desafio que vive desde então até hoje é um só: “Que a visão com que se chega seja reformada e clarificada pela experiência. É preciso encontrar vias novas. Encontrar o modo mais adequado de anunciar Cristo”. No Japão todos conhecem “o Xavier”, o estudam na escola, “mas a história do cristianismo ainda é vista, em grande parte, como história política. E até hoje a fé cristã sente dificuldade para crescer”.
Quando, depois de dois séculos, no séc. XIX, os missionários voltaram ao país do Sol Nascente, “a Igreja recomeçou a partir dos mais pobres, como sempre faz, mas num contexto hostil. A intellighenzia é que era hostil ao Ocidente e à sua fé. Começamos a partir da caridade”. E ainda hoje é essa positividade de presença que é reconhecida e imitada. “Mas não abraçada”, sublinha padre Mario. “A sociedade japonesa persegue os mesmos valores, mas são valores que não carregam mais dentro de si a alma deles”. Além disso, o anúncio da fé é “expresso ainda muitas vezes em termos culturais que os japoneses não encontram nas próprias raízes. Percebem-na como uma alternativa”. Por isso admiram, agradecem, mas dizem: “Não é para mim”. “Isso nós precisamos nos questionar muito”, diz o missionário. “É a grande questão da relação entre cultura e fé: a fé cristã não é uma cultura. Faz cultura, mas não é cultura: abençoa as culturas que encontra e as enriquece”.
A surpresa. A vida aqui é vivida em “círculos”, em grupos, funcionais a apoiar-se nos determinados âmbitos: “Sobre as pessoas é fortíssima a pressão externa, social. Se a Igreja se apresenta como um outro círculo, as pessoas a rejeitam, porque é um acréscimo. Não traz alegria”. Como escreveu em 2005 o padre Adolfo Nicolás, então superior geral dos jesuítas, sobre a crise do cristianismo na Ásia: “A nossa mensagem não se torna visível pela nossa vida”.
Quando acontece um encontro profundo com a fé, “acontece porque o Senhor age. E, pela minha experiência, posso dizer que na maioria das vezes passa a partir de uma provação. De uma dificuldade em família, de uma doença... Nunca é um processo, sobretudo, intelectual. Uma evangelização por conceitos não cria raízes; só se houver uma relação profunda, coração a coração”. Aquele “calor humano desconhecido”, como o descreve Endo, que abriu uma brecha no Japão do shogunato dos Tokugawa. Tanto que a fé se manteve viva, secretamente, embora não houvesse mais nem igrejas nem padres.
“Foram os missionários franceses que descobriram as comunidades secretas de fiéis, quando, no séc. XIX, o Japão ficou incomodado com o seu isolamento e reabriu, em meio a muitas dificuldades, as portas para a Igreja”, explica o padre Mario. Nos arquivos da Sociedade das Missões externas, de Paris, é preservada a aventura do padre Bernard Petitjean, que em 1865 construiu uma igreja em Oura, periferia ao sul de Nagasaki. Os “cristãos ocultos”, que viviam nas aldeias em volta, compreenderam que haviam retornado os bateren, aqueles padres que haviam ensinado a religião de Jesus aos seus antepassados. Assim, procuram um contato: um grupinho se apresenta, certa manhã, ao padre Petitjean. Em nome de todos, fala uma senhora: “O nosso coração é como o vosso”, lhe diz. “Onde nós moramos, há 1.300 pessoas que têm o nosso mesmo coração...”.
(artigo publicado na revista Passos 188, jan/fev 2017)
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