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OS FATOS

Um filme e um livro para os meus jovens de cristal

por padre Alberto Caccaro
31/01/2011 - Há dez anos morando neste país do sudeste asiático, padre Alberto conta o que está descobrindo em missão. E o que deseja: “Ensinar aos jovens a chamar as coisas pelo nome”
Pelas ruas do vilarejo de Balang.
Pelas ruas do vilarejo de Balang.

Batismo do Senhor, 9 de janeiro

“A fragilidade do cristal não é a sua fraqueza,
mas a sua espessura

... para chamar cada coisa pelo seu próprio nome”


(do filme "Na natureza selvagem")

Há um grupo de estudantes que sempre chega atrasado à escola. E nem são os que moram mais longe. Têm sempre uma desculpa pronta. Então, quando se atrasam, eu me antecipo a eles. Tento estimulá-los, fazê-los acreditar que podem fazer melhor... chegar no horário. Nossa escola não tem ambições particulares. Desde o início gostávamos da ideia de ter pelo menos um relógio. Com professores pontuais e estudantes para quem sete horas fossem sete horas e que uma prova fosse uma prova. Coisas simples, óbvias, mas verdadeiras, para serem tratadas como tais no tempo. Em resumo: fazer bem o bem, fazer aquilo que neste momento é verdadeiramente oportuno para a nossa vida e para a vida deles... Um horário de verdade, um professor de verdade, uma prova de verdade, um diploma de conclusão de verdade, uma vida de verdade, com as próprias capacidades e os próprios sonhos, de verdade! Não uma ficção...
Há algumas semanas assistimos ao filme “Na natureza selvagem” (Into the wild), do diretor americano Sean Penn, que conta a história real de Christopher McCandless. Aos 22 anos, depois da universidade, deixa tudo e começa uma viagem que o leva até o Alasca, exatamente na natureza selvagem. É impulsionado pelo desejo de procurar a natureza das coisas, seu sentido, seu verdadeiro sabor. Sai sem dinheiro, sem acessórios, sem máscaras, buscando na natureza mais selvagem aquilo que ainda não tinha encontrado na família e na sociedade do seu tempo. Uma necessidade da verdade que o torna vulnerável, o expõe. É frágil como o cristal, diz à irmã que intervém durante o filme como narradora e explica o porquê dessa busca. “A fragilidade do cristal não é a sua fraqueza, mas a sua espessura”. O cristal é frágil não porque é débil, mas porque é fino, transparente, puro. Christopher tem uma extrema necessidade de verdade, até o fim. Quando, a um certo ponto da busca, quer voltar atrás depois de ter entendido que precisa “chamar cada coisa pelo seu próprio nome”, não pode mais fazê-lo. E morre de cansaço.
“Chamar cada coisa pelo seu próprio nome” é uma das últimas frases do filme. Christopher pega esta citação de “O Doutor Jivago”, de Pasternak. É preciso chamar cada coisa pelo seu próprio nome e respeitar a natureza. Um horário é um horário, uma prova é uma prova, um casamento é um casamento, um filho é um filho. Quero dizer aos meus alunos: “Chamem cada coisa pelo seu próprio nome”. A voz da irmã nos conta que o casamento do qual Christopher nasceu não é um casamento verdadeiro. A mãe é apenas a segunda mulher de seu pai. Mas não são realmente casados. Depois do nascimento de Christopher, o pai ainda consegue ter uma relação com a primeira mulher da qual nasce outro filho, nunca reconhecido. “Este casamento falso e a negação de nosso pai desse outro filho foi, para Chris, o assassinato da verdade de cada dia”. Por isso, precisa da verdade, porque “Eles fizeram com que toda sua infância parecesse ficção”. Christopher nunca revela nada dessas coisas, mas caminha, caminha, e morre. Nasceu em 1968, como eu.
Asher Lev, ao contrário, é apenas o protagonista de um romance. Nasce do gênio literário de Chaim Potok, do outro lado do mundo. No romance “O meu nome é Asher Lev”, Asher é um judeu praticante que pinta com uma criatividade que rompe todas as fronteiras. Um dos seus temas favoritos é a Crucifixão: “Eu sou um judeu praticante que trabalha sobre a crucifixão porque na minha tradição religiosa não existe nenhum modelo estético que remonte um quadro de angústia e tormento extremos”. (Chaim Potok, O meu nome é Asher Lev, Milão 2002, p. 280). Ele luta para poder se exprimir, porque seu pai e a tradição religiosa que segue lhe proíbem de se dedicar à pintura e a um tema como este. Pinta uma primeira Crucifixão, mas não fica satisfeito: “O quadro não exprimia completamente aquilo que eu queria dizer. Não refletia completamente a angustia e o tormento que eu queria demonstrar através dele. Dentro de mim, uma voz falou tacitamente de fraude. Eu tinha trazido ao mundo algo de incompleto”.
“Deixá-lo incompleto teria feito de mim uma prostituta (...) Ficou cada vez mais difícil desenhar com aquele a mais de dor que no esforço criativo sempre constitui a diferença entre integridade e engano. Não queria ser uma prostituta nos desafios de minha própria existência”. E prova isso com um segundo quadro, o mesmo tema, mas, enquanto no primeiro a figura da mãe aparece em segundo plano em relação à cruz, no segundo, a mãe está na cruz: “Por toda a dor que você sofreu, mãe. (...) Pelo Pai do Universo cujo mundo de sofrimento eu não entendo”. Com este segundo quadro, chamado Crucifixão de Brooklyn II, Asher ficou satisfeito. O que eu gostaria de salientar, e guardar, é a honestidade intelectual deste jovem pintor. Seu gênio criativo não cala, não mente, resiste a qualquer compromisso e violência para se exprimir a qualquer custo, frequentemente rompendo as regras. Teme levar “ao mundo algo de incompleto”. Quero que a escola, no Camboja ou em outro lugar, se ocupe deste sagrado temor e se empenhe em assegurar a todo estudante profundidade de ânimo, autonomia de pensamento e a coragem de não mentir para si mesmo. “Tudo está nas mãos do céu, exceto o temor do céu”, diz o Rabi a Asher, por isso nós devemos nos ocupar disso.
Penso nos meus alunos como aquele cristal do qual fala a irmã de Christopher. Frágeis. E penso que cada um deles precisa da verdade. Como Christopher e como Asher. Não devem se tornar instrumentos da mentira e levar “ao mundo algo de incompleto”, mas ser capazes de dizer, de fazer, de sonhar a verdade. E chamar cada coisa pelo seu verdadeiro nome. A vida não é uma ficção.
Na natureza selvagem é um filme para ser visto e O meu nome é Asher é um livro para ser lido.
Não falarei sobre o Alasca e sobre o fim trágico da vida de Christopher. Permanece, porém, a urgência de oferecer aos jovens a possibilidade de procurar o sentido, não em outro lugar, mas nos horizontes da vida cotidiana. Nas relações de todos os dias. E, depois, ler, ler muito. Ler para ler-se por dentro. O nosso mundo interior é muito maior!
Que pais, mães, professores, médicos, psicólogos, analistas, todos, possam considerar “o relacionamento com Deus como a hipótese de trabalho mais adequada ao incremento e à realização da unidade da personalidade” (Luigi Giussani, Em busca do rosto do homem, CI 1996, p. 192)

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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