"O imperador se dirigiu aos cristãos dizendo: 'Estranhos homens... dizei-me cristãos, abandonados pela maioria de vossos irmãos e chefes: o que tendes de mais caro no cristianismo?'" (Soloviev. O relato do Anticristo). Escutar essa pergunta dirigida a nós nos balança agora da mesma maneira como tantos de nós foram balançados quando a escutaram feita por Dom Giussani. Ainda mais, na medida em que cresceu em nós a consciência do seu alcance. Ela nos coloca nus diante de nós mesmos. É talvez a única pergunta que verdadeiramente nos coloca nus. Provavelmente porque cada um de nós sabe que, diante dela, não há como enganar. E é inútil fingir: não é possível que nos escondamos atrás das coisas de sempre que nos servem de álibi para não a olhar de frente.
Mas, nada nos coloca mais contra a parede – desafiando a nossa ambiguidade , perturbando a nossa tranquilidade, os nossos compromissos – do que a resposta do stárets João, no relato de Soloviev, escolhido por Dom Giussani como Cartaz de Páscoa em 1988: “Então, o stárets João ficou de pé e respondeu com doçura: ‘Grande soberano! O que temos de mais caro no cristianismo é Cristo mesmo. Ele mesmo e tudo aquilo que vem dEle, já que sabemos que nEle habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”. Não os valores, não a ética, não as oras, mas Cristo mesmo.
Mas, é preciso prestar atenção: não basta estar de acordo com o stárets para encerrar a partida, porque é possível estar de acordo sem ser provocado, como nos disse Dom Giussani: “Quanto vocês leram as palavras do stárets [...], vocês estavam de acordo, [...] porém aquilo que vocês leram não necessariamente os provocou. Para alguns, foi como ler um livro policial ou um romance. Para muitos, não foi uma provocação; foi como uma coisa óbvia, teoricamente óbvia, e não uma provocação”. A razão desta reação é identificada bem por Dom Giussani: “Este ‘estar de acordo sem ser provocado’ é uma característica comum entre nós, devida à presença devastadora da cultura no poder (é um exemplo, mas um exemplo não apenas pertinente, mas determinante). A presença devastadora do poder é aquilo pelo que, enquanto que o problema do dinheiro e da carreira tem um efeito imediato, sensivelmente emotivo, assim como o problema da saúde ou do prazer da mulher ou do homem, aquilo que vocês leram de Soloviev, normalmente – perdoem-me o a priori – não teve um efeito emocionante: vocês estavam todos de acordo, mas sem serem provocados”.
A pretensão do cristianismo é ser uma presença inquietante para o poder, como disse Dom Giussani: “O que caracteriza o fato cristão? [...] Cristo é uma dramática presença. Por que dramática? Exatamente porque e uma presença inquietante para o presente – eis o drama –, ou seja, provocante para o presente. Está nesta provocação do presente – que transforma o presente, age sobre o presente – a dramaticidade”. E insiste: “Cristo é uma presença dramática. Cristo: nEle habita corporalmente a divindade. Vocês falaram da ‘fisicidade’ de Cristo. E é exatamente isto que a mentalidade dominante extermina, desculpem-me, tenta exterminar, diante de nossos olhos”.
Exatamente na medida em que compreendemos a natureza da luta que está em curso, poderemos responder de forma consciente à pergunta do imperador: “’O que tendes de mais caro?’ [...] ‘Aquilo que temos de mais caro, grande soberano, é Cristo e tudo aquilo que dEle deriva’”. E “o que deriva dEle? Tudo”. De fato, nada, nem os valores cristãos, nem a ética, nem as iniciativas, poderia resistir, sem a Sua pessoa. Desvinculados dEle, têm os dias contados, como vemos em nós e nos outros.
Pelo contrário, nEle tudo adquire uma consistência desconhecida. É assim que podemos entender São Paulo, quando escreve: “Cristo é a consistência de todas as coisas, tudo nEle consiste”. Ou São João, quando afirma: “Tudo foi feito por meio dEle, sem Ele nada foi feito do que existe”. Dom Giussani conclui: “NEle está a vida, ou seja, o existir; nEle, nAquele homem!”. Mas, como se torna presente aquele Fato, como nos alcança do passado, a ponto de ser uma presença provocante para cada um de nós, hoje, que não se reduz às nossas pretensões e interpretações? “Ou Cristo incide, coincide, determina o tempo e o espaço, ou seja, a realidade de uma companhia, que se torna sinal dEle (determina a realidade da nossa companhia, a realidade de uma companhia)”, nos diz Dom Giussani, “ou então, não existe, é um pensamento”.
Por isto, Dom Giussani sublinha que a Sua Presença “emerge corporalmente numa companhia; ‘corporalmente’ é analógico, mas a analogia estabelece e identifica uma verdade real, uma realidade. O Fato, o grande Fato, a dramática presença de Cristo é tal exatamente porque emerge numa companhia. Uma companhia é o lugar daquela Presença, uma companhia que participa por isso da dramaticidade daquela Presença. E se não é dramática, esta companhia é como uma realidade morta”. Mas esta companhia, para nós se tornar uma realidade morta, deve prestar contas com uma alternativa: “Ou nasce do coração de cada um, ou nasce do reconhecimento e da liberdade de cada um, ou então não existe como companhia e como comunidade, existe como grupo, ou seja, é uma associação, é uma expressão associativa, não é um movimento de ser”. Neste segundo caso, cedo ou tarde, vencerão a abstração e a estranheza.
Então, “o que é importante, como instrumento, para que o acontecimento possua a nossa vida e, através da nossa vida, a vida do mundo? ‘Que a amizade continue a existir’. É a amizade ‘que faz com que Cristo seja provocação cotidiana’. O oposto da primeira coisa que dissemos, quer dizer da presença devastadora da mentalidade comum. ‘A amizade faz com que Cristo seja provocação cotidiana’”. Giussani indica qual é a lei desta amizade: seguir, “seguir ‘os exemplos’”. E explica: “A grande lei do instrumento que Cristo escolheu – a amizade que é a Igreja na medida em que vive próxima de nós, abraçando-nos fisicamente –, a grande lei deste instrumento é o seguir”. Assim, coloca-nos diante da verdadeira alternativa com a qual cada um de nós deve prestar contas: seguir ou interpretar.
De fato, “ou se segue, então a companhia é verdadeiramente a fraternidade, a fraternidade ‘como lugar próprio, lugar próprio para o eu’, onde o próprio eu reconhece o seu sentido e reconhece os sentidos do seu caminhar, ou se interpreta”. Esta é precisamente “a diferença entre catolicismo e todas as outras religiões cristãs. Ou se segue, ou se interpreta. Ou se sege e se está em companhia profunda, em unidade com o passado e com o futuro e com todos os fatores do presente, ou se interpreta e se está na solidão”.
Onde está, então, a questão? A resposta de Dom Giussani é claríssima: “Meu Deus, como é evidente que a questão está dentro de você, em você! A questão está toda no tu [...], está no seu coração, aquilo que vibra nos seus olhos e faz como que você mova os pés e as mãos, sobretudo aquilo que, tocado pela realidade que está diante de você, faz sonhar, aspira e espera. Toda a questão está em mim, é que ‘eu’ tenha dito: ‘Eis a geração dos que Te buscam; buscam o Teu rosto, Deus de Israel’, que ‘eu’ tenha dito isto. Eu o disse, você o disse (ou então não o disse)!”. Por isto, de nossa parte é preciso apenas uma coisa: a implicação de cada um de nós. “Tudo isto, rapazes, não acontece por acaso, é um trabalho, é o resultado de um trabalho, assim como a imponência da sabedoria e da sugestividade da afeição madura são o resultado de um trabalho, de um desenvolvimento. Não de um desenvolvimento mecânico, porque um desenvolvimento mecânico entristece”.
Somente uma companhia assim pode desafiar o mundo, como sempre nos lembra Dom Giussani: “A companhia nos atacar o mundo, e o mundo são as circunstâncias nas quais vocês entram, depois do início do dia: todas, do café da manhã com o pai e a mãe, que já está no estômago de vocês, aos livros que devem carregar, ao tédio no metrô, às circunstâncias que nos incomodam tão logo entram na universidade e veem que o professor veio, e têm que ir para a ala que não lhes agrada, ou então começam a não ver os seus amigos e a ver apenas pessoas hostis, ou então mesmo os seus amigos não lhes cumprimentam mais e o professor diz certas coisas para as quais vocês não encontram resposta [...]. O ataque ao mundo. A companhia é ataque ao mundo”.
Este trabalho – o único verdadeiramente digno de um homem que não queira se tornar “cortesão do mundo” – e o caminho que Dom Giussani nos consignou, tendo ele percorrido antes de nós, para poder desafiar o mundo – que está dentro e fora de nós – com a força daquilo que temos de mais caro. E para fazer a verificação que a fé é um fluxo contínuo de novidade que torna a vida mais plena, maior e mais feliz. Assim, poderemos finalmente dizer como nossa a frase do stárets João.
* Extraído de L'Osservatore Romano, do di 14 de junho de 2011 (p. 7).
SERVIÇO:
Luigi Giussani
Ciò che abbiamo di più caro (1988-1989)
Prefácio de Julián Carrón
BUR - L'Equipe , Milão / pp. 546
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Credits /
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