Alguns meses atrás, Carrón disse a alguns de nós no Paraguai: “Cultivai, olhai bem essa preferência”. Desde então penso qual o significado disso concretamente, historicamente. Eu nunca tive a preocupação de fazer projetos ou obras. Não fui mandado ao Paraguai para fazer obras e nem mesmo por Jesus Cristo. Eu fui lá para ver se meu drama humano encontrava, na fé e obediência, uma companhia, uma resposta correspondente e adequada. Hoje, depois de 22 anos, posso dizer que Cristo é a coisa mais querida. Mas isso é algo que acontece nos últimos sete anos. Antes, eu queria verificar se era verdade aquilo que dizia o profeta Isaías: “Antes que te formasse no ventre de tua mãe eu pronunciei teu nome”. Essa frase sempre me fascinou, mas não entendia o seu significado porque a dor não me permitia. A dor psíquica, não física. Por isso toda a minha vida foi estar diante dessa provocação de Isaías. Pensem em um neurótico em que o único momento de lucidez que tem é quando está diante dessa provocação: “Antes que te formasses no ventre de tua mãe”. Portanto, eu não sou fruto da minha neurose. Eu não sou fruto de todas as besteiras que fiz. Eu venho antes de tudo isso porque Deus decidiu a minha identidade desde a eternidade. Por isso eu me comovo quando Carrón, citando Jeremias, diz: “Foi com amor eterno que eu te amei”. Foi isso que me salvou, não as relações virtuais. Quando vejo as centenas de e-mails que chegam a mim, vejo que aqueles são gritos que eu não posso responder por e-mail. É preciso um abraço como o que eu experimentei. Como essa menina, ontem, antes que eu viajasse, uma adolescente que me disse: “Papai Aldo, te amo muito, nunca te esqueças de mim”. Porque esse é o grito de todas as minhas crianças. Como essa outra garota que me desafiou fugindo de casa. Ela tem 15 anos, foi violentada e acabou chegando à minha casa em condições verdadeiramente desesperadas. Isso me fez passar dias cheios de dor dizendo a Deus: “Senhor, Tu amas mais a liberdade dela do que a salvação dela, me ajude a viver esse desafio”. E quando ela chegou e contou a sua história, que estava bêbada e foi violentada, a única coisa que pude dizer a ela foi: "Podemos rezar juntos um Padre Nosso?" Esperei alguns minutos e ela respondeu: "Sim, Padre". E quando chegamos à frase: "Perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos a quem nos tem ofendido", a voz dela tremeu. Mas conseguiu dizer. Depois me disse: “Padre Aldo, aquilo que eu faço, faço por você e por Jesus”. Porque a realidade é Corpo de Cristo. É diferente dizer “por você e por Jesus” ou dizer “por Jesus e por você”. Porque o versículo de Isaías eu entendi no abraço de Giussani que me disse “o perdão vem antes do pecado. Primeiro vem a misericórdia, não a tua miséria”.
Minha vida toda foi passar de um abraço a outro. No meu desespero Giussani me olhou e durante dois meses eu fiquei com ele em Corvara, perto das montanhas onde nasci. Depois Giussani me acompanhou até o aeroporto e me mandou ao Paraguai como resposta, porém confiando-me a outra companhia, ao abraço de padre Alberto que eu não conhecia. Porque eu nunca escolhi uma amizade, nunca. Giussani se tornou meu amigo porque eu estava mal, eu buscava, mendigava. Todas as minhas amizades nasceram por causa de um grito, não por uma simpatia ou por um projeto. Assim também nas 16 obras do Paraguai, a amizade entre os responsáveis é fruto de uma dor, de uma depressão, de pessoas que tinham a mesma pergunta que eu. E quando padre Alberto teve um infarto e precisou voltar para a Itália, eu dizia a Giussani: “Não estou aguentando”. E ele me dizia: “Corações ao alto”. E Deus escuta um grito quando o grito é sincero, e me mandou meu superior que é o padre Paolino, que também tinha seus problemas, mas era a certeza de que Cristo se aproximava de mim. E a única ajuda que eles podiam me dar era dizer: “Coragem, ânimo, olhe para Cristo”. E eu, com 42 anos, era levado por eles a todos os lugares, como uma criança. E nesse caminho de luta como a de Jacó diante do Anjo, entendi que uma obra e um eu não nascem a não ser que se tenha a postura de Abraão. Porque quando Deus te escolhe Ele te pede tudo. Devemos viver como uma sentinela. A vida deve ser vivida assim, senão não é vida. A graça maior desses 22 anos é que vivi sempre como Abraão, como as sentinelas de Assis, gritando. E escuto Deus que me diz todos os dias: “Toma teu filho único, que amas (diz até o seu nome próprio, Isaac, como se o pai não soubesse), e o sacrifica a mim”. Imaginem aquele homem, que toma um burrinho, um criado e o filho e subiu a montanha. A certo momento seu filho pergunta: “Papai temos tudo, mas falta a vítima”. Imaginem aquele velho, que tinha deixado a casa, a terra. Imaginem o rasgo que sentiu no coração ao escutar aquele inocente que diz: “Papai, falta a vítima”. Ele sabe que a vítima é aquele filho, o filho da promessa. Por isso dá para entender quando Monier diz: “é necessário sofrer para que a verdade não se cristalize em doutrina”. E assim foi a forma com que Deus, triturando meu coração e minha vida, reconstruiu o meu eu. Falo de sete anos atrás quando eu disse com alegria pela primeira vez: “eu”. Porque pela primeira vez experimentei que era concretamente, historicamente, amado por Deus. Aquele abraço que depois se tornou ainda mais carnal, com um amor imprevisto e doado. Porque a minha vida tem uma única regra: a única coisa prevista é o imprevisto.
Foi assim que, em certo momento, me senti olhado por Carrón, naquele hotel em São Paulo. Disse a ele que o que me cabe é a minha humanidade, é o gosto de finalmente poder dizer “eu” e ver realizada a promessa que Dom Giussani me tinha feito aquele dia em Milão. Depois de 19 anos, ter visto realizada essa promessa é uma graça para mim e para todos. E aquele relacionamento nasceu em cima do grito, porque todas as minhas amizades nasceram de um grito, de uma preferência que Deus doava. E a outra amizade que não foi buscada e eu nem sabia que existia foi com Marcos e Cleuza. Foi Carrón que me disse: “olha ali”. Como disse a eles “olhe lá”. Foi algo não previsto. E por que entrei direto naquela provocação de Carrón? Porque vi neles dois a mesma paixão e pergunta por Cristo, a mesma paixão pelo homem e pela realidade. E daí a amizade com eles que se tornou para mim essencial, porque a vida é um pertencer concreto e não virtual.
Deus não te dá um mapa, mas Ele sabe onde está te conduzindo. E quando Deus reconstruiu o meu eu, a partir da misericórdia e do abraço que sentia na minha carne – que é mantido vivo pela amizade com Marcos, Cleuza, Paolino e o grupinho com quem nos vemos mais frequentemente –, nasceu todo aquele conjunto de obras que não tem uma explicação do ponto de vista humano. São milhões de Euros e se vocês me perguntarem de onde vem esse dinheiro, eu não sei dizer nem como começou, nem quando nem como. Porque aprendi duas coisas que Carrón sempre fala: a realidade é positiva porque a realidade é o corpo de Cristo. Também o câncer é corpo de Cristo e também o esgotamento é corpo de Cristo. Atenção, ele não fala que Cristo é a realidade. Se dissesse isso cada um imaginaria Cristo como quisesse e o aplicaria como quisesse. Ao contrário, diz que a realidade é o corpo de Cristo. Por isso, na clínica, dessa consciência nasce um modo novo de as enfermeiras lavarem os pinicos, de as faxineiras limparem o banheiro. Porque Cristo tem a ver com tudo. Quando cheguei ao Paraguai não havia nada, só lama. Tinha lama no exterior e lama dentro de mim. Não tive tantos amigos, talvez cinco ou seis, mas do abraço de um amigo nasceu as três regras educativas que ditam todas as nossas obras educativas: Calos nos joelhos. “Eu sou Tu que me fazes”, relação com o Mistério. Ou seja, quer dizer que nossa escola é leiga, não temos a disciplina religião, para que as crianças entendam que não há fratura na realidade. Que o cosmos é uma sinfonia e se tem uma nota que desafina é o pecado que existe dentro do homem e por isso que Deus se fez carne. Segundo: Calos na cabeça. Olhar, e ter muita observação. Ali consegui fazer com que os meninos se apaixonassem pela matemática. Porém, depois que eu me apaixonei por ela. Porque até os meus 50 anos não conseguia explicar aos colegiais a utilidade de estudar matemática. E sabem quando isso aconteceu? Quando levei a sério o 10º capítulo de “O Senso Religioso”. O assombro, a maravilha diante do cosmos. Porque não podia deixar de me perguntar ao dizer que bela é a água, quais as leis que regem essa água. Dá para entender porque a química, física e botânica são fascinantes? Porque a pessoa que olha o Mistério no cosmos não pode não desejar compreender como são aquelas coisas. E em companhia os meninos aprendem que a matemática é bonita. E a terceira regra é: Calos nas mãos. Porque “é, se opera”. O que significa o trabalho? Afirmar um nexo entre o efêmero e o eterno. Em minhas homilias de domingo eu explicava o valor da vassoura, da cama, da colher... É uma paixão pela realidade. É disso que nasceu tudo. Cada detalhe é relação com o infinito. Por isso você pega o copo sujo e põe no lixo. E também vale para as 40 crianças que tenho no orfanato que aprendem a arrumar os chinelos e os sapatos e a deixar o banheiro limpo. Entendo que não é a violência que os define, mas o fato de eu ser Tu que me fazes, que se torna genético com o tempo. Por exemplo, como sou diabético, como maçãs verdes e elas são muito amargas. E todas as minhas crianças também comem maçãs verdes. Porque comer também depende do pertencer. O gosto depende do pertencer. Entender isso está dentro do abraço que antes eu mencionava.
E, assim, respondo a realidade todos os dias. Por isso nasceu um jornal semanal que tem uma tiragem enorme no Paraguai. Porque, se você ama Cristo não dá para não sofrer diante daquilo que aconteceu na Noruega. E assim você não pode deixar de arriscar um juízo. Você não pode deixar de se perguntar diante da morte da cantora Amy Winehouse: “Porque ela morreu?” E assim dá uma resposta aos meninos que perguntavam, porque ela é um símbolo para milhões de garotos. Ela morreu porque quis eliminar a desproporção estrutural que existe entre o coração e o Mistério, pois ela não O encontrou. Somente quem encontra Cristo percebe a positividade da desproporção. Mas quem não encontra Cristo não suporta a desproporção e busca ele próprio responder. E quando se dá conta que não existe resposta humana, é essa a conclusão. Mas a gente não pode deixar passar sem nos perguntar: Por que Amy morreu? Não basta rezar pela alma dela. Porque do contrário qual seria a utilidade da companhia e a razoabilidade da fé? A isso que Giussani nos educou: todo fato que acontece é uma provocação para mim. Portanto, todo dia de manhã leio jornais não porque gosto, mas isso nasce de uma paixão que tenho por Cristo. Então, todo tempo livre que tenho me coloco a escrever: “Carrón está dizendo isso, e o que isso tem a ver com que os jornais estão contando?”
E atenção, antes das obras de caridade aconteceu a dimensão cultural, missionária. Porque as obras de caridade sem a dimensão cultural e missionária não têm nenhum valor. Não conseguem manter as razões da gratuidade. Por anos eu me preocupei em afirmar a minha paixão por Cristo dentro da vida, portanto a paixão pelos homens. E foi disso que Deus construiu e fez aquilo que fez. Porque também caí na tentação de responder a necessidade dos homens dando-lhes comida. Mas depois entendi que se o jovem e o adulto não encontram a razão da vida, qualquer refeição é inútil. E assim nasceu a escola, para dar as razões da fé, para que a fé tornasse a vida mais humana. E dali nasceu todo o resto e, sobretudo, a beleza. Porque se vocês prestarem atenção, todos os mitos indígenas do Paraguai são horríveis. Porque aonde Cristo não chegou, chega a feiúra. Só aonde Cristo chega, chega a beleza. E chega junto uma maneira de arrumar a casa, de fazer a cama, uma maneira de comer e de beber. Por isso a beleza que reina na minha paróquia e nas minhas obras é sinal da presença de Cristo. A cultura é ver como tudo se torna mais humano. Não é uma questão de capacidade intelectual.
O coração da minha clínica é Cristo. Eu desejo que os meus médicos participem de congressos e se desenvolvam também cientificamente. Por isso todas as semanas os pacientes são vistos um por um, não importa o tempo que leve, por todos os responsáveis de todos os setores da clínica. Primeiro pela equipe médica que vêm juntos ver os doentes e depois eles descem e discutem caso por caso com os outros profissionais (nutricionistas, psicólogos, psiquiatras, ...). Veem tudo, da cabeça até a unha do pé. Porque aquele homem doente é Cristo. “Médico, o que você está fazendo aqui?”. “Você está prolongando a vida da pessoa por alguns anos?”. O que me interessa prolongar a vida dessa pessoa até 20 anos, se ela vai acabar morrendo mesmo? Para mim o que me interessa é que você, médico, a ajude a encontrar a Cristo. Como aquele amigo argentino que morreu conosco e que compôs uma música na qual dizia “eu vou morrer cantando”. Porque todas as obras ou são fruto de um desígnio de Deus e nos educam a dizer “Tu, ó meu Cristo”, ou eu simplesmente digo: “Senhor, que tudo desapareça”. O objetivo da vida não é realizar obras, é fazer a única obra que vale e que só Deus pode fazer: poder dizer “eu”. Poder levantar-se de manhã e dizer comovido, mesmo que tenha dormido mal: “Eu sou Tu que me fazes”, como Carrón continuamente nos diz. Porque eu gostaria muito de ter o mesmo maravilhamento com o qual ele falou ontem aos jovens de Madri. Como o pai que vê seus filhos dispersos, perdidos, vítimas da televisão e dos meios de comunicação e os desafia dizendo: vocês têm um coração, algo em que vos indica um caminho, que permite a vocês sair dessa confusão. E o coração é a relação com o infinito, isso é a cultura. Daqui nascem também as obras. Do contrário são simplesmente projetos nojentos. Não estamos aqui para fazer dinheiro, estamos aqui para fazer o que Cristo quer, não o que eu quero. E a companhia é importante por isso, porque a obra é fruto de um povo, de um sujeito. E o sujeito nasce aonde o homem diz “Tu, ó meu Cristo”. Por isso hoje posso estar aqui enquanto no Paraguai estão os meus irmãos paraguaios, que se tornam cada vez mais adultos, graças a ajuda dessa companhia cheia de ternura, como a de Marcos e Cleuza que estiveram lá na semana passada e disseram uma coisa com a qual quero terminar. Uma enfermeira descrevia sua vida como aquela do Sr. Freedman, descrito no livro “O Senso Religioso”. Tudo era calculado, perfeito, programado. Ela era uma perfeita empregada do Senhor. Porém, tinha esquecido uma coisa, de ser uma mulher, uma pessoa humana. E aí ela teve um esgotamento nervoso. E Cleuza lhe disse: “O seu problema, assim como o meu, é que temos que parar de viver como empregados de Deus, como funcionários do paraíso, como assalariados do Pai Eterno. Temos que pedir ao Espírito Santo que cheguemos a entender o fato que somos objetos de seu amor, a razão da própria existência de Deus. Você existe porque Deus te ama, não para fazer as coisas de Deus, mas para dizer Tu, meu Cristo”. Desde então aquela garota é uma outra pessoa, mudou. Basta um único instante que um amigo te relembra isso, e tudo muda, mesmo que você tenha 60 anos. Isso é cultura e nada mais.
(Notas não revistas pelo autor da palestra)
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