Grazia: Hoje eu passei o dia pensando na frase que está escrita aqui (“Levados para um território desconhecido”), porque para mim foi mesmo uma surpresa estar aqui hoje, nestes lugares desconhecidos e maravilhosos com pessoas desconhecidas e maravilhosas. Ao mesmo tempo eu pensava que há também a surpresa pelos 30 anos de casamento, que comemoramos em 30 de junho deste ano. Porque eu nunca poderia imaginar, nesses 30 anos de casados, esses lugares e pessoas desconhecidas e surpreendentes que entraram na minha vida e a mudaram. Eu e Franco nos conhecemos muito jovens. Ele tinha 17 anos e eu 15. Nós tínhamos encontrado o Movimento há pouquíssimo tempo, e num encontro da comunidade ele se declarou publicamente apaixonado por mim. Isso porque um instante antes outro rapaz tinha se declarado apaixonado por mim também diante de todos. Para os dois eu disse não. E por três ou quatro anos ele me perguntava se eu tinha mudado de ideia, e por três ou quatro anos eu disse não. E depois, quando eu disse “sim, eu sinto que posso começar uma aventura com você”, ou seja, o início da verificação da nossa vocação, não disse isso porque eu tivesse me apaixonado loucamente por ele, eu até gostava dele, mas aquilo que me tocou olhando para ele nesses anos era como ele vivia. E me lembro que a um certo ponto disse a mim mesma “com uma pessoa assim eu posso passar todos os anos da minha vida”. Mas me dei conta logo no início que, mesmo muito apaixonado por mim, ele não olhava para mim, mas ele olhava para outra coisa e corria atrás de uma outra coisa. Ele ia em direção à realidade, tanto que nem me dedicava tanto tempo. Eu não tinha feito universidade e já trabalhava e ele ainda estava estudando, e assim nós nos encontrávamos quando tínhamos tempo para contar um para o outro aquilo que estava acontecendo conosco. E quando decidimos nos casar, escolhemos para o convite do nosso casamento uma frase de Lanza Del Vasto, um italiano seguidor de Gandhi, que dizia: “O amor é um grande milagre, e eu tive o dom de encontrar uma pessoa que em vez de olhar para mim olhava para a mesma direção”. E fomos levar o convite a Dom Giussani dizendo que dávamos a nossa disponibilidade para partirmos em missão. E ele nos disse que, neste primeiro momento, deveríamos ficar na Itália, e depois voltando-se para mim, disse uma coisa que eu sempre guardei no coração. Disse-me: “Você deve ser para Franco aquilo que a raiz é para a árvore. A raiz vive muitas vezes escondida, e tem que penetrar bem na terra para tirar o alimento e possibilitar à árvore de dar flores e frutos. Normalmente quando as pessoas passam vêem as flores e os frutos, e não vêem a raiz. Porém, eu lhe peço que viva escondida para permitir que o Franco viva aquilo que lhe for pedido”. E eu disse sim a Dom Giussani, mesmo não entendendo bem. Com o passar do tempo, compreendi que aquilo que eu vivi nos anos seguintes permitiu que a minha humanidade florescesse. Não sei se isso ajudou o Franco a viver aquilo que o Pai Eterno lhe pediu, mas sei que, mesmo escondida – que foi um aspecto que também aconteceu –, a minha humanidade floresceu. Eu nunca poderia ter imaginado há trinta anos quando me casei, que viveria aquilo que eu vivi. O máximo do meu horizonte, já que vivia numa cidadezinha pequena, era fazer alguma bela viagem, não brigar com meu marido, ter filhos, e não ter dívidas, porque era assim que os meus pais tinham me criado. E nada disso aconteceu porque sempre tivemos muitas dívidas, desde logo que nos casamos, e na verdade, partindo da nossa cidadezinha rodamos o mundo, mas sobretudo, o mundo entrou na nossa casa de um modo incrível e misterioso, primeiro através de nós, mas sobretudo através dos nossos filhos. E é que é muito verdadeiro aquilo que Carrón tem dito e que Bracco nos lembrou: isso não acontece por milagre, mas é um caminho. E para mim foi uma lenta educação, que começou nos primeiros dias, porque logo após o casamento meu marido que tem dez irmãos, me disse: “Espero que nós não fiquemos por muito tempo só em dois”. E depois, uma lenta educação porque, como a maioria das mulheres, me irritava com coisas banais, ficava chateada com coisas que ele fazia... Depois tive quatro filhos homens, e isso me educou ainda mais porque pelos traços da psicologia feminina que torna fácil ficar chateada ou ficar ruminando as coisas, com eles não foi possível. Meu marido um dia me disse: “Olha, estou aqui pronto para me irritar com você, a discutir com você, se for algo de essencial, importante para a nossa vida, mas para coisas pequenas eu não tenho tempo nem energia”. No início foi duro, mas depois me dei conta que ganhava muito com isso, no sentido que discutíamos logo, pensávamos logo sobre as coisas. Quando os meninos eram pequenos, algumas vezes eu ficava esperando até tarde e quando ele chegava eu jogava em cima dele não só todo o trabalho com as crianças, mas também toda a dureza que tinha sido o meu dia, e ele em diversas ocasiões começou a me dizer: “Antes de descarregar tudo em cima de mim, me olhe por aquilo que eu sou, olha-me pelo sinal que eu sou pra você e me cumprimente quando eu chegar na porta de casa. Depois você pode jogar tudo em cima de mim”. E este é um exemplo para dizer que foi uma lenta educação e sobretudo um grande perdão. Eu aprendi e ainda estou aprendendo que Franco e tantos outros se tornaram para mim esse sinal do olhar de perdão de Cristo sobre a minha vida, e que cada dia me retoma por aquilo que eu sou. E acredito que foi isso que nos sustentou, também porque em certos momentos da minha vida, como foi no namoro e nos anos seguintes quando ele viajava com os colegiais, foi ocasião de entender que eu devia responder sozinha diante do Senhor, e que a minha vida não podia apoiar-se sobre eles, que o meu sim cabia a mim dizê-lo sozinha. É diferente ficar contente porque o marido vai viajar e viver algo grande ou só sofrer, submeter-se a essa decisão. E algo parecido aconteceu com os meus filhos, pois paradoxalmente, mesmo não tendo estado muito tempo com Franco, eles nunca sentiram a falta dele, porque quando estávamos juntos comentávamos que papai viajava para viver algo grande. E eu com o tempo me dei conta de que foi um sacrifício – porque muitas vezes era um sacrifício ficar sozinha por dias com quatro crianças –, mas também fiz a verificação de que cada vez que eu tinha a sensação de que estava perdendo alguma coisa, eu tive um retorno superabundante. A ausência de Franco retornou de maneira misteriosa e diferente em casa, de modo inacreditável. Depois, com o tempo, o que eles viveram, foi um ganho pra mim. Outro retorno foi que o mundo entrou na nossa casa, através de amigos, pessoas, ajuda econômica, e nunca nos faltou nada.
Franco: Vamos ouvir o outro lado da moeda. Posso dizer que o segredo da minha vida está todo no início, na fidelidade ao início, no sentido que o início re-acontece sempre, e hoje com 56 anos, o dia começa exatamente como começava há 40 anos. E como o dia começava quando eu tinha 15 anos? De um modo muito simples, muito sintético: eu vivia um momento de crise muito profunda, muito dolorosa, e sentia de um modo meio confuso a necessidade de três coisas. Agora tenho clareza sobre essas três coisas, mas na época era bem mais confuso. Eu queria saber, conhecer a verdade, saber por que existimos, por que estou no mundo, quem sou eu verdadeiramente. A segunda coisa que desejava profundamente era poder amar, por exemplo, poder amar uma mulher, mas também poder ter amigos. E a terceira coisa que sentia era a necessidade de que a vida não fosse inútil, ou seja, encontrar o meu caminho, a minha vocação, entender qual seria a minha contribuição ao mundo. E justamente nesses dois anos de crise terrível tudo parecia desmoronar, tudo parecia morrer nas minhas mãos. Naqueles anos eu chorei todas as minhas lágrimas com a sensação de que o nada levava embora tudo aquilo que eu amava, levava minha família, minha mãe, meu pai, que eu amava tanto. E eu os olhava desesperadamente dizendo: entre mim e eles, no fundo no fundo, não existe nada. O nada levava embora outra coisa que eu amava muito que era estudar, a tal ponto que num certo momento me veio nojo de estudar e eu abandonei a escola. Outra coisa é que eu estava absolutamente convicto de que um homem e uma mulher não eram capazes de se amar, que a maior mentira que homens e mulheres se contavam uns aos outros era a de que eles pudesses se amar. E nessa situação, chegou Dom Giussani. Um dia ele veio à minha casa porque a minha irmã mais velha tinha encontrado o Movimento e em pouquíssimo tempo decidiu se tornar monja de clausura. Então, para acompanhar a vocação da minha irmã, ele veio conhecer sua família. E quando ele veio à minha casa pela primeira vez, minha mãe lhe contou sobre a maior dor da sua vida, que era o fato de que o meu irmão mais velho tinha feito seminário e depois que saiu virou inimigo da Igreja. Naquele dia meu irmão não estava em casa e então Dom Giussani não se encontrou com ele, mas na semana seguinte chegou um pacote de livros de Milão, como presente de Dom Giussani para esse meu irmão que ele nem tinha visto. Eu pensei que fosse um padre comum que para converter um ateu lhe manda a Bíblia, história da Igreja, vida dos santos... Ao invés, naquele pacote havia livros comunistas ou de autores comunistas que naquele momento agradariam ao meu irmão. E agora, depois de 40 anos, eu me lembro que veio à minha cabeça, pela primeira vez, esse pensamento: esse padre tem a ver com Deus, porque só Deus pode fazer uma coisa assim: permanecendo Deus, compartilha na carne a dor e a dureza do homem. E eu entendi, intui pela primeira vez, aos 17 anos, que Deus é Misericórdia, e que Giussani tratava o meu irmão com misericórdia. Dom Giussani, para amar o meu irmão, não precisava que ele mudasse primeiro, não precisava pedir que ele mudasse, que ele se tornasse melhor. Por essa intuição, por essa suspeita de que aquele homem tivesse a ver com Deus, aceitei ir a uma reunião de CL. Era um congresso dos colegiais, de quatro dias, em 1972 e eu tinha 17 anos. Eu voltei desses quatro dias e aconteceu literalmente um milagre. Não vi Deus nem Nossa Senhora sobre nenhuma árvore, não vi anjinhos voando, mas vi seis mil jovens que, pelo menos aparentemente, viviam a felicidade de uma forma que eu não tinha conseguido encontrar, mas, sobretudo, a coisa incrível é que voltando percebi que a vida tinha sido restituída a mim. Isto é, como se uma faixa tivesse sido tirada dos meus olhos, comecei a ver a realidade como uma coisa boa, feita para mim, cheia de sentido, cheia de bem, cheia de beleza. Eu que tinha abandonado a escola porque tinha nojo de estudar, me senti apaixonado de novo pelos estudos, comecei a ler e a estudar por conta própria. Eu que teorizava que o amor não podia existir, no primeiro encontro da comunidade me apaixonei como um bobo por essa garotinha. Entendi depois, com o passar dos anos, que as três coisas que o homem precisa para viver são: uma certeza em relação ao destino; a possibilidade que essa certeza dê um formato aos relacionamentos, portanto seja amor; que esse amor se torne vocação, isto é, que a própria vida se torne um bem para o mundo. A semente de tudo isso foi colocada em mim naqueles quatro dias. Minha vida é isso! São 40 anos que me levanto de manhã com a mesma ferida que eu tinha quando tinha 15 anos, aliás, mais profunda e mais dolorosa. E são 40 anos que busco desfrutar da realidade seguindo os passos da sua Presença. Sem sonhos estranhos, mas simplesmente obedecendo às circunstâncias que ele coloca à minha frente, e assim, respondendo a Ele dentro das circunstâncias, a minha vida, como a Grazia disse antes, mudou completamente e o meu mundo foi literalmente revirado. E assim acabei construindo uma escola na Itália, acabei construindo outra em Serra Leoa na África, acabei aqui. Se me pedissem para dizer o que é o Movimento para mim, o que é a fé para mim, o que é Jesus para mim, eu responderei: uma promessa mantida. Uma promessa mantida não quer dizer um desejo que foi respondido e, portanto não existe mais. É o contrário! Porque a natureza do desejo de que somos feito é tal que quanto mais se degusta da resposta, mais o desejo se aprofunda. Só quem se apaixonou pode entender isso, porque o amor é desejo de infinito ao qual de repente corresponde um rosto, uma pessoa física, e estar com essa pessoa aprofunda o desejo. Se o desejo acabasse seria a morte do amor, ao invés o amor exige ser continuamente aprofundado e descoberto. O relacionamento com Jesus é igual: vem ao seu encontro de forma totalmente inesperada e surpreendente e surpreendendo-lhe faz você desejá-Lo. Justamente porque Cristo é um rosto, pelo qual o desejo nunca acaba, mas ao contrário se aprofunda, a vida, a cada dia, é uma aventura a um território desconhecido, verdadeiramente uma surpresa, como foram estes dias.
Meus pais eram camponeses e, portanto, muito pobres. Quando encontramos o Movimento, começamos a ir ao retiro dos colegiais de três dias, às férias... Era uma despesa enorme para a minha família. Só o telefone já era impossível pagar. Meu pai e minha mãe nunca chamaram a nossa atenção por esses gastos. Descobrimos depois que eles morreram que pegavam dinheiro emprestado dos amigos para nos mandarem para os retiros, para as férias, para os gestos do Movimento. Eles compravam fiado e todas as lojas da cidade tinham as cadernetas com as nossas despesas, por anos e anos. Mas quando meu pai ouviu eu falar pela primeira vez sobre o fundo comum, pegou seu salário daquele mês e disse: “essa parte aqui é para o fundo comum”. E nós dissemos para ele: “O senhor é bobo? Pai, talvez o senhor não tenha entendido que somos pobres!’ E ele, muito sério, disse: “Qual é coisa que mais amamos nessa casa? O que salvou a vida de vocês e a minha? Então, servir a isso é a coisa mais importante! Primeiro vamos escrever fundo comum, depois pão, carne, leite... depois passamos um traço e vamos ver o que sobra. Se formos esperar ter dinheiro para pagar o fundo comum, não o pagaremos nunca”. É um exemplo simples para dizer que, para meu pai e minha mãe, o encontro com Dom Giussani revolucionou completamente a vida e Dom Giussani os amava por causa disso. E por isso quando nos encontrávamos à mesa, Dom Giussani nos perguntava o que estávamos estudando, e depois de feita a volta toda, olhava o meu pai e dizia: “Fazem bem em estudar, mas o homem verdadeiramente inteligente é ele, porque a verdadeira cultura é a dele”. Esta é a outra coisa que me entusiasmava: para Dom Giussani o cristianismo é verdadeiramente simples. Era algo simples para pessoas simples. Simples não quer dizer ignorante ou estúpido, simples quer dizer gente tão maravilhada com o que tem à sua frente que adere, se agarra e se afeiçoa a tudo aquilo que tem à frente, com toda sua liberdade. Alguns estudando, alguns trabalhando, fazendo aquilo que tem que ser feito.
Última coisa, porque me parece importante para entender aquilo que a Grazia disse. Em 21 de janeiro de 2003 vi Dom Giussani pela última vez. Ele me chamou, porque soube que eu tinha estado em Serra Leoa, e queria que eu lhe contasse o que eu tinha encontrado. Estivemos três horas juntos, almoçando, num diálogo belíssimo, inesquecível. Lembro de duas coisas. Quando me perguntou “como está a Grazia?” eu lhe disse “Está bem! Tem 25 anos que ela faz aquilo que você lhe pediu”. E ele me pergunta: “O que eu lhe disse?” E então eu contei pra ele a história da raiz, da árvore... E ele se comoveu como eu nunca tinha visto, e durante aquelas três horas disse umas dez vezes: ‘Isto é o cristianismo. Todas as vezes que você for a algum lugar você tem que contar isso, porque o que a Grazia vive é o cristianismo”. A outra coisa que eu me lembro é que, nessas três horas, eu estive de verdade diante de Deus, porque naquelas três horas, depois de 5 minutos que eu estava sentado com ele eu entendi que eu estava sendo perdoado. Olhem, isso é uma coisa que a gente tem que ter experimentado no olhar de alguém. Para Dom Giussani, naquelas três horas, eu não era o meu mal, não era o meu pecado. O meu pecado presente, passado e talvez o futuro, não existia. E eu percebi fisicamente que aquele homem, naquele momento, daria a sua vida por mim, assim como eu era, sem pedir que eu mudasse. E eu senti confirmada aquela intuição inicial sobre o cristianismo como perdão, e entendi que a educação é isso, esse perdão. A educação começa quando um adulto olha uma criança, um aluno, um filho e o ama antes de pedir-lhe para mudar.
(Notas não revistas pelos autores da palestra)
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón