“Tenho a sensação de que vamos começar uma nova aventura”, me diz Iaia, vestida como uma perfeita empresária, no final da missa fora do salão de La Thuile. É 31 de agosto, último dos cinco dias da Assembleia Internacional dos Responsáveis de CL (AIR). Tudo concluído, mas pode ser também o início de tudo. Novamente. Foi uma graça: nos rostos, nos gestos, nas palavras, nos testemunhos simples, eram pessoas que o Senhor havia colocado ao nosso lado. Agora é mais fácil escrever o que, desta vez, me parecia quase impossível. Ler e reler as anotações com aquela frase na cabeça torna-se o reflexo de uma experiência de amizade atraente. Um dom.
O QUE TEMOS DE MAIS CARO. No jantar da primeira noite, recém-chegada, encontro irmã Caterina, missionária há quase trinta anos na Nigéria, que me diz: “Estou contente de ver você aqui”. Poucas palavras, como é do seu temperamento, mas os olhos, porém, dizem algo mais: sorriem. É um instante: aquele simples olhar nos abraça. E alcança o coração.
À mesa, uma amiga: “Sabia que a Iaia está aqui?”. Procuro-a por entre as mesas. Um longo abraço. “Eu esperava você”, me diz ela. Nós nos conhecemos desde quando, em 1995, doutoranda em Filosofia, na sede de CL, ela organizou o arquivo histórico do Movimento. Vários amigos em comum, sobretudo um: Dom Giussani. Hoje, tem uma firma de consultoria. Pouco nos vimos nos últimos anos. Isso agora não importa. Ela é um espírito arguto, fora dos esquemas. Por isso eu a provoco: “O que está fazendo agora?”. “Você pode não acreditar, mas há alguns meses sou a visitor da comunidade da Bélgica. Desde que estive lá, por causa dos meus estudos, sempre mantive estreitas ligações com aqueles amigos... e agora chegou essa proposta. Fantasias do Senhor, não acha?”. Digo que ela mantém a mesma vivacidade. Juntas percorremos o caminho até o salão, para a introdução.
A frase de Santo Ambrósio destaca-se ao lado do palco: “Ubi fides ibi libertas”. É o título. Onde há fé, há liberdade. Ao lado, o mapa com os 74 países presentes. Cantar, no início, o hino Ó Vinde Espírito não foi algo óbvio porque, como introduz Julián Carrón, é pedir que possamos acolher o que o Senhor quiser nos doar nestes dias. Ele se dobra sobre nós. A geração desse gesto depende da disponibilidade de cada um. Porque, e é a primeira provocação que Carrón lança, retomando o último livro da equipe de Giussani, “o que temos de mais caro?”. O que realiza a vida, agora? Depois de anos de Movimento, a sombra do cansaço, do já sabido, do cinismo, pode ofuscar. Mas a urgência dessa pergunta, se formos sinceros, permanece intacta. E a estrada é uma só, indicada por Dom Giussani, como foi repetido nos Exercícios da Fraternidade: a fé precisa se tornar uma experiência vivida. Só assim podemos entender a sua utilidade. É um caminho, como escreve Ratzinger falando de Santo Agostinho: “A conversão é um caminho, uma estrada que dura a vida toda”. É sempre um início. Nunca considerando como óbvio que foi Cristo quem nos agarrou, “fomos escolhidos para ter o mesmo olhar com que Ele olha os homens”. Ter a humildade de reconhecê-Lo, de estar inteiramente concentrados na corrida para agarrá-Lo. Os nossos olhos fixos nos d’Ele.
DO CAIRO À UCRÂNIA. “Gostaria de ver Deus, mas não é possível”, diz a música que cantamos. Mas não é bem assim: Ele nos envolveu com o Seu olhar. Toda a assembleia é o testemunho, dentro do drama da vida, de um eu despertado. Para muitos, o ponto-cardeal foi aquele 26 de janeiro, com a apresentação da Escola de Comunidade sobre O senso religioso. O impacto com a realidade dentro da experiência de fé nos tornou livres para encontrar quem quer que sinta, de modo diferente, aquelas exigências elementares que o constituem. Foi assim para Alberto, no Meeting, com o reitor da universidade de Al Azhar ou com John Elkann, o chefe da Fiat, com quem nos encontramos durante o jantar, conversando sobre filhos e educação. Não é nenhuma estratégia, trata-se apenas de não reduzir a realidade à aparência. Mas o ponto inicial é tê-Lo presente, como destacou Costantino. E foi o que aconteceu comigo. No momento. Não há mais um a-priori. Cristo não é um a-priori. Essa é a verdadeira surpresa; mesmo que já tenha superado os 50 anos, se tenha um papel de responsabilidade, um trabalho importante... Como foi para Giorgio. E tudo isso nos abre ao mundo. Você é mais do que você mesmo. Esta assembleia nos provoca. É um início.
Lá fora o sol aquece e ilumina as montanhas. Há tempo para um rápido bate-papo. Passa o meu amigo Guido, que há anos está na Califórnia. Dá tempo de perguntar: “Amanhã vamos almoçar com os americanos?”. “Claro que sim!”. Depois do almoço, encontro Rose, da Uganda. Tudo é dom.
À tarde, dois testemunhos para compreendermos que o carisma de Dom Giussani é para todos, vai ao encontro de todos. Wael Farouq, professor de literatura no Cairo, agradece pela amizade nascida com algumas pessoas do Movimento, “sem a qual eu não poderia me definir”. Para ele, muçulmano, a presença de Deus na sua vida tem nomes precisos: Carrón, padre Ambrogio, Emilia... Essa amizade o levou para esse evento miraculoso que foi o Meeting do Cairo, em outubro do ano passado. Aleksandr Filonenko, professor e teólogo ortodoxo na universidade de Char´kov (Ucrânia), jamais esquecerá aquele dia de maio de 2002, quando conheceu os amigos da Rússia Cristã. E, depois, o convite para o Meeting, para apresentar a mostra dedicada aos “Jovens da praça Majakovskij”. Ali, no olhar, na atenção daquelas pessoas, encontrou pela primeira vez Dom Giussani. De quem jamais ouvira falar antes. Há uma correspondência imediata. Porque, como escreve São Paulo, “nós somos de Cristo”. Fala de vulnerabilidade, da disponibilidade para se deixar atingir, como condição simples, mas necessária para a caminhada cristã.
Depois do jantar, padre Ignacio Carbajosa apresenta o segundo volume do livro de Bento XVI Jesus de Nazaré, uma obra que se insere na grande batalha para superar a fratura entre saber e crer. O Papa, como teólogo perspicaz, examina os estudos que gradualmente foram feitos sobre Jesus. E refuta as teorias que, a partir do século XVIII, procuraram separar o Jesus da fé do Jesus histórico.
A FOLHA PRESENTE. Manhã de segunda-feira: “marcação dos pontos”. Foi o título dado por Carrón. E na medida em que vai ao fundo da questão, fica claro que está acompanhando nossa caminhada, como só um amigo sabe fazer, para sermos mais humanos. Examinando a estrada indicada por Dom Giussani no décimo capítulo de O senso religioso. O coração da nossa proposta é o anúncio de um acontecimento surpreendente. Um acontecimento que potencializa o núcleo de evidências originais a que damos o nome de senso religioso. “A fé torna o homem, homem. Nós, que participamos desse acontecimento, somos mais vulneráveis frente ao ser das coisas. Só fazemos experiência no impacto com o real”. Mas nós estamos acostumados a olhar como Presença uma folha presente? Não. É a vibração do Ser que nós normalmente não conseguimos captar. Isso é vertiginoso para a razão. Mas fascinante. “A cultura do poder ofuscou, ocultou esse real mais real”. Isso acontece por dois motivos: “Um: uma razão frágil, pela qual estamos de acordo abstratamente, mas não somos provocados. Dois: uma divisão entre o reconhecimento e a afetividade. Podemos afirmar o a-priori de Cristo, mas sem vibração”. A única saída é a nossa experiência, observar o eu em ação. Desse modo se desencaixa a obviedade do real. Que, então, se impõe com um dado, como um dom. Portanto, a primeira atividade é uma passividade. Isto é, “perceber essa inexorável Presença”. Só a partir dessa posição é que pode florescer a admiração; como o córrego que nasce da fonte. “Do mesmo modo é o reconhecimento de uma dependência desse Tu que me faz. Que a tradição religiosa chama de Deus”. É a contemporaneidade de Cristo. O positivismo imperante bloqueia esse impacto original com o real. E como vemos que somos positivistas? “Se sufocamos; se você for sufocado pela circunstância”. O caminho indicado por Dom Giussani é um só: viver o real. E é totalmente fascinante, porque exalta a razão e o coração. O eu.
O CHAPÉU NO CUME. No final da tarde, Giorgio Vittadini fala sobre o Meeting de Rímini recém-concluído, Ilaria Schnyder conta os resultados do trabalho de doutorado sobre o projeto Avsi em Salvador e a Associação de Cleuza e Marcos Zerbini, em São Paulo, e padre Ignazio testemunha o que viu na Jornada Mundial da Juventude, em Madri. É o relato de uma experiência em ato que se torna pública, que tem incidência sobre a história.
À noite, a apresentação da mostra sobre a Eucaristia é a documentação do coração da tradição cristã.
Terça-feira de manhã. Passeio. Em fila, rumamos ao cume da montanha. No caminho, a meu lado está Stefano. Há vinte anos que a gente não se vê. Falamos do trabalho, da família, dos três filhos que estão sob a guarda provisória dele. Conversamos sobre a vida. Damos risada. Vamos juntos e fazemos breves paradas de vez em quando, pois a subida é cansativa. Lá em cima, porém, o espetáculo nos deixa de boca aberta. O dia está limpíssimo; com o dedo, a gente pode desenhar o contorno das montanhas. É um presente. O presente de um amigo. Diante daquela beleza impõe-se uma Presença dilacerante. E tudo isso para mim. Foi criado para mim. Não estamos fora do lugar, como diz Javier Prades durante a homilia da missa.
Ecoam os cânticos de montanha. Alberto se aproxima: “Olha, no topo do Monte Branco há um chapéu”. Observo, e no cume da montanha há uma pequena nuvem; eu, talvez, nem teria notado isso. Ou melhor: não teria pensado num chapéu. Há sempre um amigo que nos indica o caminho, que nos alerta: “Olhe”. E a gente admira. Na descida, atrás de mim um jovem africano canta baixinho Se tu mi accogli. No estacionamento, enquanto aguardo o transporte, encontro padre Giovanni, do Peru. Este ano, não conseguimos almoçar juntos. Pergunto como vai. “Abrimos outras quatro sedes da universidade católica Sedes Sapientiae de Lima. Uma delas, na selva. É uma obra de Andrea (Aziani, morto há três anos) que vai em frente. Um dom”.
O reflexo dessa beleza fica visível na assembleia da tarde. Durante as intervenções retornam palavras que se tornaram carne: experiência, fé, razão, afetividade, passividade. Emerge o laço com realidades às quais a razão se submete. Porque acolhe. Carrón desafia sempre a darmos um passo adiante. Estes dias são paradigmáticos. Não pelo que a gente entendeu, mas pelo que aconteceu. Estamos caminhando.
PRETO E BRANCO. Lá fora, procuro Franco. Estou curiosa para encontrar padre Stefano, missionário há mais de trinta anos em Madagascar. “Amanhã vamos tomar o café da manhã juntos. Ele é de poucas palavras. Essenciais. Você precisa conhecê-lo. Talvez depois a gente possa ir a Madagascar juntos”, me diz Franco. Ele me conta como se conheceram, numa viagem pela ilha. Mas por que o aprecia tanto? “No encontro com ele, eu me tornei mais consciente da nossa experiência. De tudo aqui”.
À noite, piano e violinos, obra 67 de Dmitrj Shostakovich, som ao vivo que enchem o salão após o jantar. É uma música que transmite tristeza, angústia. Mas tão bonita que nos leva a concluir: o desespero não é a última palavra.
Último dia. Síntese. A experiência destes dias provocou-nos para o trabalho. Foi reacesa a vontade de trabalhar. E para continuar, Carrón indica algumas sugestões. “A relação entre razão, liberdade e afeição com a realidade. Para que a razão possa ser de fato afetiva é preciso que alcance o real. Porque sem esse reconhecimento do real a minha afeição não é ligada”. E nos leva a dizer: “Isto é preto, aquilo é branco”. Foi o que fascinou Carlo Wolfsgruber, colegial da primeira hora, dos primeiros dias de escola de Giussani. Um homem livre, porque verdadeiro. Outra sugestão: “A relação entre acontecimento e liberdade. A liberdade pressupõe que nas decisões fundamentais cada homem seja um novo início. O que nós temos é um tesouro, mas não se tornará nosso sem nós”. A novidade de visão que o carisma tem nunca se tornará nossa com a repetição de conceitos. É uma atração que sempre é gerada. “A verdadeira decisão é se estamos dispostos a deixar-nos gerar pelo carisma”. Por Cristo.
A partida é jogada todos os dias.
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