Era o ano de 1954. Em março, eu celebrei a minha primeira missa como frade capuchinho. Na época vigorava uma norma da Congregação pela qual era preciso fazer mais um ano de Teologia, após a ordenação. Como não estávamos mais na praça Velasquez, em Milão, onde se localizava a nossa faculdade, nos mandaram para Musocco, no convento em frente ao cemitério Maggiore. Uma manhã de setembro, eu estava sozinho no convento – todos os meus colegas estavam no cemitério, cantando durante a missa – junto com o frade porteiro, o qual, a certa altura, me chama e diz: “Aqui está um padre que quer se confessar”. Eu respondi: “Nós, padrini (frades recém-ordenados; ndr), não temos autorização para atender confissão de padres!”. Houve um momento de desacordo com o porteiro. Ele poderia ter dito: “Tudo bem” (até porque sabia que nunca se manda um frade jovem atender confissão de padres... inclusive para não deixar o padre encabulado), mas ao invés de disso ele me disse: “Eu sei, mas não há nenhum outro frade aqui”. Houve mais um entrevero entre nós dois: ele me acusou de recusar um gesto de caridade (“Então, não vale a pena estudar tanto”, comentou). Ele estava quase saindo quando me disse isso; então, eu lhe respondi: “Está bem, vou atender o seu padre”.
No bonde para Milão
Fui atender aquele padre, e nem olhei no seu rosto. Até hoje eu fico meio embaraçado ao atender confissão – preferia dizer os meus pecados... O fato é que entrei no confessionário, atendi a confissão e saí. Nem sequer nos olhamos. Ele, porém, deve ter captado, nas duas ou três palavras que eu lhe disse, alguma imprevista sintonia. Saí do confessionário e fui para a minha cela; peguei minha bolsa e saí para ir à cidade; subo no bonde e ali está um padre, que me pergunta: “O senhor sempre foi daqui do convento?”. Entendi o que ele queria saber. “Não, vou ficar aqui talvez só por um ano”, respondi. E ele começou a me falar de iniciativa sua, porque percebera que o cristianismo, aquele Fato, aquela Presença, não existiam mais entre os jovens (dali a poucos dias começaria a dar aula de Religião no liceu Berchet de Milão). Não nos largamos mais.
A vida toda se torna bela
De cara me impressionou a paixão de dom Giussani pelo Mistério da Igreja, pela Encarnação, que sempre foi o fato mais decisivo. Recordo o que ele me disse durante uma viagem de trem; estávamos indo a Bréscia e ele começou a tamborilar no vidro da janelinha, dizendo: “Se a pessoa não se compara, não se compromete, não se envolve com este material, não pode entendê-lo”, e falava do envolvimento com a realidade, com o fato do cristianismo. Para ele, o detalhe sempre foi importante, nunca uma coisa que pode ser deixada de lado. E isso pela percepção da presença sacramental, isto é, sensível, do Mistério. Quando terminava os encontros com os jovens, recolocavam-se as coisas em seus lugares, as cadeiras em ordem; em seguida, dom Giussani mandava recolher alguma coisa para as missões, enfatizava a pontualidade. Durante as férias na montanha, depois de uma determinada hora ele girava pelo acampamento, e não porque estivesse apreensivo quanto aos perigos, mas para ver se reinava o silêncio. Sem falar da missa. Quando terminava a celebração, ele sempre voltava para a sacristia reclamando dos cânticos: o que houve, por que não soltaram a voz? Na recitação das Horas, enfatizava a pausa, a harmonia, porque – dizia – “se a oração não se torna um gesto belo, as pessoas terminam por rejeitá-la”. E assim toda a vida se tornava bela.
Montini intuiu
Entre as lembranças daqueles primeiros anos há uma que carrego comigo com emoção. Um dia, o cardeal Montini escreveu ao meu convento dizendo que queria me ver. Quando o encontrei, me perguntou como estava a situação da Gioventù Studentesca (GS; primeiro núcleo de Comunhão e Libertação, ndr). Nunca me esqueci da resposta que lhe dei: “Olhe, Eminência, o senhor sabe que eu sou o único que confesso os jovens; sabe do que eles se acusam no confessionário? Algo que o senhor jamais ouviu na confissão de alguém: pedem perdão porque, por exemplo, ao invés de ir fazer a refeição numa mesa onde talvez estivesse uma pessoa que tinha mais necessidade, estava mais triste, um pouco mais sozinha, que ainda não conheciam, foram tentados a ir à mesa com a pessoa com a qual tinham mais facilidade de relacionamento. Alguém que se acusa disso entende que deveria, missionariamente, ir almoçar com aquele ou aquela, e quando não o faz, reconhece isso como pecado...”. O Cardeal me ouvia e intuía que por trás disso havia alguma coisa, e ficou satisfeito. Padre Giannantomio, um dos nossos frades capuchinho (que milagrosamente retornou dos campos de concentração da última guerra, era confessor em línguas estrangeiras na Catedral), havia aconselhado dois dos seus sobrinhos a freqüentarem GS e me dizia: “Quando as pessoas, que em geral passam por um monte de lojas, decidem ir a uma determinada loja, quer dizer que ali existe algo que vale mais”. O cardeal Montini também captou isso.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón