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OS FATOS

Ser "deus" ou pedra

por Lucia Beltrami
14/02/2013 - Aniversário do Centro Juvenil de Almaty, dez anos nos quais “tudo foi útil”. E, hoje, apenas um balanço: “Não estamos na mesma posição”. Basta ler para entender o por quê
O concerto de encerramento do evento.
O concerto de encerramento do evento.

Aniversários são, para todos, tempos de balanço. Mas para nós, aqui, as contas não importam. “Não estamos na mesma posição”, pois o que vimos acontecer é muito maior do que podíamos imaginar. É isto que festejamos no décimo ano do Centro Juvenil Alfa&Omega de Almaty, no Cazaquistão. O Centro nasceu do desejo de algumas pessoas, em particular de padre Eugenio Nembrini (sacerdote italiano que foi missionário aqui de 1995 até 2005), de que pudesse haver um lugar bonito e digno onde qualquer pessoa, especialmente os jovens, pudesse se sentir acolhida, valorizada, ajudada: uma casa para todos. Durante estes anos, os 1200 metros quadrados do Centro foram preenchidos de vida pelas iniciativas da MASP, a ONG local, que, graças à colaboração com a Fundação AVSI e outros doadores, se ocupa da educação e formação profissional para os jovens que vivem situação de risco ou têm problemas com a Justiça.
Para festejar os dez anos, entre 28 de outubro e 4 de novembro de 2012, realizamos uma semana de encontros com o título “O eu, o ideal, a realidade”, num gesto proposto a toda a cidade. Foram realizados momentos de festa e de encontros, uma exposição, um concerto de música ao vivo, e um jogo de futebol entre os jovens do Centro e os guardas do reformatório masculino de Almaty.

Desde o primeiro dia, graças às palavras do bispo José Luis Mumbiela-Sierra durante a missa de abertura, ficou claro que o que estava em jogo não era apenas “uma celebração”, mas, sim, nós mesmos. Com ele refizemos todos os passos desses anos, mesmo os momentos de dificuldades, os erros e as lágrimas que levaram a fazer com que o Centro fosse verdadeiramente uma casa. O bispo usou a palavra dzhadirà, a estepe florida. Fez-nos ver como Deus, verdadeiro pai e amigo, se fez presente e tornou tudo útil, a fim de que o árido florescesse. No terceiro dia de festa, enquanto lá fora se jogava o futebol, no salão do Centro, junto com alunos de língua italiana, assistimos a uma aula especial da professora italiana Mariella Carlotti sobre a Catedral de Milão. Passaram os slides da Catedral, que alguns viram pela primeira vez e ficaram fascinados; escutamos a história da construção: guiando o empenho daqueles homens estava a consciência de que tudo encontrava a sua fonte e seu objetivo num ideal de bondade e beleza que atingia até a estátua mais escondida. Isso nos mostrou que é preciso ter um horizonte aberto a fim de que a fadiga cotidiana construa algo de bom e verdadeiro para si e para o mundo.

À noite, no jantar, ressoavam ainda na mente as palavras ouvidas e levadas pelo entusiasmo para preparar-nos aos encontros seguintes, apresentamos às nossas convidadas algumas folhas cheias de perguntas. Mas, enquanto as colocávamos, Tatiana Kasatkina, convidada para falar sobre Dostoiévski, nos deteve: “Por que vocês se perdem em mil voltas, em milhares de questões marginais? O centro de tudo é o título escolhido para este evento. Compreendi ainda melhor ouvindo a aula de Mariella sobre a Catedral... O ponto é ‘a pedra’. Por isso eu inverterei o título: ‘O ideal, o eu, a realidade’. Nestes dias pensem nisso. Eu também farei assim”. Literalmente nos derrubou. Começamos a nos fazer perguntas sobre o título que nós mesmos havíamos escolhido. Com essa postura, não de “organizadores”, mas de “pesquisadores”, foi que preparamos e vivemos os dois encontros seguintes.
Na quarta-feira, na Academia Cazaque de Ciências, junto a mais de uma centena de convidados, fizemos um encontro sobre afrescos da cidade de Siena (Itália), do artista Ambrogio Lorenzetti sobre Buongoverno, Malgoverno e seus efeitos, nos foi recordado por Mariella que a vida vê “a oposição dramática entre o bem individual, origem de toda a violência, e a tensão ao bem comum que, enquanto realiza uma convivência harmônica, salva o eu, conservando-lhe as próprias dimensões, não reconduzíveis a uma pequena posse desproporcional ao seu espírito”. Numa sociedade como a deste imenso país onde, após setenta anos de comunismo, dominam hoje o individualismo e a corrupção, é lançado o desafio: só a tensão ao bem comum é a dimensão adequada a toda tentativa humana, a única que tem por efeito a geração de um mundo mais bonito. Foi admirável ver as reações dos presentes e escutar seus comentários. Uma senhora idosa nos dizia estar impressionada pelo “acelerar do tempo”, como se uma ponte tivesse sido colocada entre séculos e culturas para descrever, de maneira tão profunda, o homem e a sociedade local. O mesmo desejo de justiça, verdade e beleza que sentiam os habitantes de Siena, de 1300, anima o coração verdadeiro de cada homem, em qualquer latitude.
Retomando o fio de um discurso ininterrupto, Tatiana Kasatkina, em seu encontro, contou a experiência humana do escritor e a sua própria. “O ideal, o eu e a realidade”: assim quis renomear a manifestação “porque o eu é aquele ponto do universo onde os outros dois fatores se encontram”. O ideal é obra das mãos humanas, uma beleza criada à própria imagem e semelhança, como era para os pagãos, e o mundo destinado a implodir em si mesmo; ou, é uma Beleza que vem “de fora”, o homem a encontra e a escolhe. Ou “deus” do seu mundo ou “pedra” de uma Catedral. O seu lugar no mundo é único e irrepetível. Ali onde você está, naquele ponto do espaço que só você ocupa, “vê” a realidade como nenhum outro, e ali é chamado a moldá-la, a colaborar com a obra de um Outro. Assim, o mundo não é um mecanismo para ser organizado ou do qual você deve se proteger, mas uma novidade com a qual você continuamente se depara.

Na sexta-feira, alguns protagonistas dos projetos da MASP, testemunharam que as circunstâncias, mesmo as mais dramáticas e dolorosas, são uma ocasião positiva para a vida. O primeiro a falar foi um senhor que contou como foi ajudado na educação dos netos, depois da morte de sua filha. Vendo os netos felizes e desejosos de coisa belas (como a mais nova que quis aprender violino e que se apresentou naquela noite), quis conhecer o Centro e nele permaneceu dizendo que em Silvia, a responsável pela MASP, vê “uma mãe para todos nós”.
A certo ponto me descobri olhando o que acontecia com o sorriso de Sara, esposa de Abraão, como se dissesse: “Não é possível, aqui se está exagerando! Procuremos ser razoáveis”. Com tremor, me descobri pensando em quantas vezes, diante de Cristo, seus contemporâneos O repreendiam dizendo: “É um exagerado”. Naquele momento, eu era como eles, procurando reportar em “termos normais e conhecidos” o excepcional diante de mim. Dei-me conta de que o meu “mecanismo” é mais administrável, enquanto que a Beleza que vem “de fora” é sempre “exagerada” e, assim, “não minha”. Irrompe o Infinito no finito que pensava conhecer. Desde aquele dia, rezo de maneira diferente: peço uma só coisa, um coração pobre e dócil, que não interponha nada entre si e o Mistério; um coração disposto a ceder ao conhecimento verdadeiro e novo que a sua Presença prepara para mim dentro de todas as circunstâncias.
Essa grande festa continuou no sábado com cantos, danças e jogos e culminou, no domingo, com um concerto de música clássica, com trechos de Mozart, Beethoven e Chopin. Os dias passaram, a comemoração pelos dez anos ficou para trás e estou na sala de aula. Falo com uma dezena de estudantes sobre trabalho, motivações para escolher a profissão: salário, oportunidade de carreira, relacionamento com os colegas. A certo ponto intervém uma aluna, Assia: “Trabalho como modelista em um ateliê. Outro dia, com uma colega, estava envolvida com um vestido muito complicado. De repente, ela levanta a cabeça e ofegante, começa a lamentar-se, perguntando-se o porquê de toda aquela fadiga. Olho-a e digo aquilo que ultimamente penso, enquanto corto e costuro: ‘O meu trabalho serve a algo de grande, é um pedaço de Catedral que se levanta, logo, não é um nada’”. Fico admirada. Ela era uma entre as tantas presentes à festa. Compreendo aquilo que Mariella dizia na última noite, despedindo-se: “Estando com vocês nestes dias, entendi que o Movimento não está nos números, não está em quantos vêm à Escola de Comunidade, mas é mais parecido com uma pedra jogada na água, que cria círculos sobre círculos. É o movimento dos corações mudados que arrasta consigo outros corações”.

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